Sem proferir uma única palavra, com um sorriso irónico e misterioso, ela encarou, um por um , aqueles que a haviam aguardado. A rigidez dos ombros e o comprimento do pescoço davam especial relevo ao ritual de encarar firmemente cada um dos seus companheiros e ,em seguida, inclinar o queixo em jeito de assentimento. O gesto tinha a duração exacta do agradecimento a um acto de vassalagem.
Eram todos mais jovens. Visivelmente mais jovens. Quatro variações de uma palidez que tanto trazia de mau prenúncio como da resplandecência marmórea das estátuas gregas. Os caprichos do fogo e da luz que dançavam na grande lareira presenteavam a anfitriã com a lisura que ainda existia nos seus rostos. Excepto um. Aquele cujo cabelo era desgrenhado e rebelde, a esse sulcava o rosto uma longa cicatriz cuja extensão e fundura do corte mostravam que quem golpeara a face esguia, onde predominavam uns olhos verdes plenos de astúcia e traição, odiava profundamente. À sua esquerda os largos ombros do mais atlético homem do grupo. O pescoço largo e a enorme proeminência do maxilar inferior tinham o formato que as câmaras do cinema de acção apreciam. Envergava um nada discreto fato claro que destoava com o negrume das vestes dos restantes ocupantes da mesa. Os olhos da anfitriã censuraram-no, um pequeno toque dos lábios em que era óbvio o comentário ao mau gosto do atleta.
O cerimonial silencioso foi interrompido pela chegada, junto à cabeceira da mesa, de Amir. Um quase imperceptÃvel burburinho atravessou a sala. A presença do famoso dono do restaurante na sala era , sabiam todos os que conheciam aquele local , privilégio dos mais afortunados; dos grandes “gourmets†que atravessavam quilómetros , por vezes mesmo as fronteiras do pais , para chegar junto aos repastos que haviam granjeado tal fama à cozinha de Amir. Este inclinou-se respeitosamente numa vénia que tanto tinha de teatral como de costume do seu paÃs longÃnquo. Um amplo gesto de cortesia do homem que envergava uma jaleca de cozinheiro e um garrido turbante. Os olhos de imenso azul eram contrastantes com o trigueiro profundo da sua pele e os traços de corsário malaio. Saudou:
- Minha senhora, distintos cavalheiros. Amir agradece a preferência dada à nossa humilde oficina dos sabores. Poderei sugerir, a vossas senhorias, uma entrada de delicadÃssimos cogumelos Matsutake seguidos de fresquÃssimas trutas em cama de amêndoas?
Foi evidente a repulsa sentida pelo homem mais velho do grupo. As farripas iniciais que lhe visitavam a fronte em forma de cinzenta prata indicavam que teria entre os trinta e os trinta cinco anos. O seu esgar foi acompanhado pelo riso quase feminino do homem que menos o parecia daqueles quatro. Os olhos enormes, onde o cinzento imperava ,estavam delineados a traço negro. O brilho dos lábios revelava alguma cosmética e as roupas de sede e cabedal reforçavam a androginia daquele que era decerto o mais jovem de todos . A mulher ao topo da mesa sorriu ligeiramente e encarou Amir. Com uma voz forte declinou a oferta .O dono do restaurante foi , por um milésimo de segundo, cegado pelo brilho da pedra preciosa dependurada no pescoço da mulher. Recuou um inquieto passo acatando a ordem:
- Apenas as carnes mais sanguinolentas e o vinho mais espesso e generoso de vossa adega.
Foram lestos os homens de Amir a cumprir tal desejo. Fumegantes, cheirando ainda à madeira onde haviam ardido e à carÃcia com as especiarias haviam sido aplicadas, as iguarias chegaram em travessas de prata . O jantar daqueles cinco decorreu em quase absoluto silêncio, as frases trocadas em sussurro eram imperceptÃveis, os copos de cristal tocaram-se algumas vezes. Quando o grande relógio de pé, que ocupava lugar de destaque junto a uma das colunas que sustinha o alto tecto, bateu as dez e meia uma intranquilidade invadiu os gestos de alguns elementos da mesa. A maquilhagem foi retocada, os dedos passaram duas vezes pelas têmporas grisalhas em penteares nervosos. A mulher ao topo apercebeu-se da inquietação e sussurrou algo apontando na direcção do relógio.
Ainda a sobremesa não tinha sido servida quando, sem aviso prévio, a mulher se levantou. A azáfama vexada dos empregados foi serenada com o empunhar de uma larga quantidade de notas. O cortejo encabeçado pela bela mulher atravessou a porta principal e entrou no átrio de entrada quando a primeira badalada das onze ecoava nas torres da cidade.
Os agasalhos foram recolhidos e ,mais uma vez, a generosidade de senhora demonstrada. Quando o tacão elegante tocou o pavimento da rua a carruagem, que anteriormente a havia transportado, surgiu em trote moderado. O porteiro do restaurante embasbacou-se, amaldiçoou o vinho e o seu vÃcio. Estava quase capaz de jurar que os cavalos haviam surgido da sombra que ficava numa ruela próxima e que os seus olhos haviam brilhado de fogo quando iniciaram a viragem para a frente do restaurante.
A moeda que lhe aterrou na luva estendida era pesada e granjeou-lhe auto censura por ter tido tais ideias de gente tão requintada. Todavia, quando levantou a cabeça para agradecer, a carruagem e os seus cinco ocupantes haviam desaparecido do seu campo de visão. Desta vez o porteiro teceu pragas à idade que o começava a fazer perder qualidades. Não havia escutado o galope dos alazões negros.
(continua)
Jantar dos Sós – I em:
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