Nação Valente
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outono
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« em: Março 11, 2019, 23:30:16 » |
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O LuÃs era o mais pobre entre pobres. Chegava à escola sujo, descalço, mal agasalhado e com o cabelo emaranhado e sem conhecer tesoura, nem de tosquiador, há muito tempo. O cabelo vinha muitas vezes enfeitado com a palha do “colchãoâ€, que também lhe servia de travesseiro. Dos vários irmãos com que o pai e a mãe o brindaram, e que eram a única coisa que havia em abundância naquela casa, foi o único que mesmo sem o material escolar básico, conseguiu aprender a ler e a escrever.
Um dia, o professor chamou-o e em frente de todos os alunos disse-lhe:
-LuÃs, vai à barbearia do senhor Penina e diz-lhe que fui eu que te mandei para te cortar o cabelo, e que depois lhe pagarei. O LuÃs saiu tÃmido e obediente, como era prática habitual nessa época, em que a autoridade do professor era inquestionável. E de tal modo o era que quando me cruzava com ele na rua, desejava tornar-me transparente.
O LuÃs voltou passado algum tempo e notei, com total garantia de veracidade, que no seu cabelo apenas existiam umas tesouradas mal amanhadas. E embora o senhor Penina não fosse um artista no manejo dos apetrechos de aparar cabelos, era capaz de fazer melhor trabalho. Com o mesmo ar envergonhado com que saÃra e antes de voltar ao seu lugar, entregou um bocado de papel de embrulho amarrotado, com umas mal alinhavadas palavras, que se senhor Penina não era um artista da tesoura, muito menos era um expert na arte de escrever. O senhor professor leu o que estava escrito, amachucou o papel e deitou-o para o lixo.
Quando se sentava na cadeira de braços onde o barbeiro Penina exercia a sua profissão, o senhor professor, abria as folhas do Diário da Manhã, jornal oficial do Estado Novo, e concentrava-se na leitura, enquanto o Penina lhe aparava o cabelo ou lhe escanhoava a face de pele fina.
Acabado o trabalho o senhor professor perguntou: -Quanto lhe devo pelo corte de hoje e pelo corte que fez ao LuÃs? Vi que não conseguiu concluir a tarefa e compreendo, mas tentou fazer o melhor.
-O senhor professor desculpe não ter conseguido fazer o corte, mas como escrevi no papel que lhe mandei, os piolhos eram tantos, que subiam pela tesoura e me cobriam a mão. Comecei a ficar tão agoniado, que estava quase a vomitar. E olhe que já cortei cabelos de todos os tipos, sujos, casposos, gordurosos, mas como aquilo nunca vi. Portanto não me deve nada.
O LuÃs continuou a viver com o cabelo por cortar e a conviver com os piolhos com alguma naturalidade. Cresceu e fez-se homem. Depois de concluÃda a instrução primária parti para outros lugares e deixei de o ver. Mas alguém me disse que, já adulto, tinha ingressado numa força militarizada. Fiquei satisfeito, porque significa que venceu a batalha contra os piolhos, contra a ignorância, mas que venceu sobretudo a batalha contra a pobreza absoluta, que teve de viver na sua infância.
Estórias reais de um quotidiano que o Cota diano , deseja desaparecido.
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