“…É impossÃvel ficar sem nenhum amor, mesmo que só
existam as palavras, o amor vive-se na mesma…â€
Marguerite Duras, A vida material
Era daqueles dias em que se questionava sobre o sentido do seu voo e nisso não residia novidade. Sentia-se absurdamente constrangida. Absurdamente solitária. Desamparada seria o termo mais correcto. Como os álamos que despidos se enroupavam agora de novas folhagens. As asas, as que um dia jurara que lhe nasceram, pesavam-lhe agora toneladas, presa que estava ainda ao chão de suas palavras.
Reluzia nos seus tons cinzentos. Metálico. Entrou. Largou o casaco no banco de trás, não sem antes o dobrar meticulosamente. Sentou-se, colocou o cinto, ligou o telemóvel em alta voz, ajustou o volume da rádio. Antena 2. Ouvia invariavelmente a Antena 2.
Maquinalmente desenhou o percurso. As paragens, os afazeres. LogÃsticas e trivialidades. Em primeiro lugar, a recolha das roupas na lavandaria. A ida ao sapateiro de seguida. O supermercado ao lado esquerdo, próxima paragem. Olhou os montes à direita e o rio por detrás dos pavilhões industriais que alojavam um sem número de actividades comerciais. De repente, os tinteiros. Não podia esquecer de providenciar novos tinteiros para a impressora…
Dois anos. Dois anos que diariamente fazia aquele percurso sempre sozinha. A solidão era-lhe, dependendo do seu estado anÃmico, um bem ou o seu inverso. Naquele dia estava neutra. Reflexiva, contudo. O tempo passava num somatório de viagens entre o ontem e o agora. Sucediam-se as estações como nas linhas do caminho de ferro que avistava a bordejar o rio. Similitudes em que não podia deixar de pensar.
A Primavera já se fazia sentir em colorações bastas e na sua pele.
Coupe rose…. Nada lhe faltava, reconsiderou. Nada. Absolutamente nada. Até aquela “maravilha†de florir com a Primavera o destino lhe reservara. Como adolescente. Sorriu. De si, das ideias estapafúrdias que, a “des†e a propósito lhe varriam as têmporas em latejos febris. Como bruma seca provinda do deserto e que varria a Ilha do Sal, em Cabo Verde. Assim agora. Por momentos, tudo se toldava. Depois o pó assentava e a calma das coisas certas voltava ao seu lugar.
Ouvia agora a rádio. “Baile de Máscarasâ€â€¦ Fazia tempo que arrancara a sua. Não dos outros, mas de si mesma. Que se enfrentara nas suas fragilidades e nas suas mais cruas certezas. E, se certezas havia, eram as de que o amava.
“Querida … há tantas formas de amor…â€Amá-lo-ia para sempre. Não sabia ser de outra forma e, no rigor desta constatação, sabia claramente que não desejava que fosse de forma diferente.
“Tinha saudades suas, sabia?â€â€¦Imaginava. Também tinha dele. Muitas. De rir das suas loucuras, de o provocar vagamente, de lhe atiçar os instintos. De sentir a adrenalina do proibido, do oculto. Do que não devia acontecer. De…
Retorquiu:
“Sabe há quantos dias não me ligava?â€â€¦Riam. Pouco importava o tempo. Bastava que a ligação se estabelecesse para que ambos em sintonia soubessem que as suas vidas estavam cruzadas irremediavelmente. Como meninos corriam as cortinas ao tempo, tomavam de assalto as locomotivas carregadas de bens raros e, mutuamente, se presenteavam: Amavam-se nas palavras. Esbatiam-se distâncias. Da Bizâncio antiga à moderna Istambul. Constantinopla no entretanto. E Sophia pelo caminho.… Vinham de longe. Viajam no Expresso do Oriente. Paris ali tão perto … E o Danúbio. E a Floresta Negra dos dias escuros …
“Conhece o Danúbio, querida?… gosto da Europa Antiga!…â€Viajavam as rotas da ternura e da seda. E da sede de beber os dias claros. Dançar a valsa azul dos dias claros... “Danúbio Azulâ€. A obra-prima de Strauss estreada num baile de Carnaval, tocava agora na rádio …
As máscaras... Os percursos. Os passos sincopados. Os pares alinhados em linhas paralelas. E depois a dança. Em braços …
Porém, inversamente ao Expresso, que tantas e tantas vezes vira as suas rotas alteradas por questões logÃsticas ou polÃticas, ambos sabiam que era demasiado tarde para alterarem as suas…
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