soriano
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« em: Junho 22, 2009, 20:46:32 » |
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Faltavam apenas 2 meses para seu aniversário. Viver em uma metrópole não era bem o estilo de Daremon. Mas enquanto avançava nos estudos, era esse o seu palco de atuação. Seu talento e sensibilidade voltou-se para a fotografia. Enquadrar instantâneos da realidade; capturar as cores das emoções; congelar perspectivas do infinito como se fossem sonhos guardados em uma caixa de sapato. A imaginação elástica de Daremon, se encarregava de expandir seus horizontes de vida. Pura herança deixada por seu pai.
A tarde crepuscular de sexta-feira energizava toda ansiedade de Daremon em partir para a casa de campo que herdou. Resolveu ir mais cedo, logo após sair da faculdade. Despistou os amigos com muito esforço de atuação teatral e se dirigiu rápido para a estação de trem. Os parentes mais próximos já conheciam e entendiam seus hábitos. Queria estar só como sempre gostou de estar quando para lá se dirigia. Havia uma razão muito importante para isso: sábado era seu aniversário de 21 anos.
Chegando à estação de Várzea de San Martin, desceu com sua mochila de lona grossa distribuindo cumprimentos aos funcionários da ferrovia que já o conhecia desde criança quando perambulava e corria pelas instalações acompanhado de seu pai.
Passou pelo primeiro portão giratório e ao se dirigir para o segundo que o conduziria para a estrada em direção à sua casa, pediu licença para um homem alto que quase impedia totalmente a passagem. Usava um casaco e chapéu preto, O homem pôs-se de lado e o cumprimentou com um leve gesto segurando a ponta da aba do chapéu. De soslaio observou um rosto extremamente expressivo com um “quê†familiar. O sujeito tinha o rosto fortemente marcado o que lhe conferia um aspecto duro; a cor dos olhos era de um verde intenso; mas o que mais lhe chamou a atenção foi o olhar. Um olhar enigmático e profundamente sério.
Passando pelo portão e sem olhar para trás pôs-se a caminhar rumo ao sossego, enfim.
A primeira coisa que fez ao chegar, foi tomar um bom banho. Após, preparou uma reforçada e caprichada refeição, estimulado pela fome. Deitou-se confortavelmente no sofá. Procurava manter-se o mais descontraÃdo e espontâneo possÃvel. Mas o hábito de roer a unha denunciava sua incontida ansiedade pela hora do sono. Desligou celular; tirou telefone do gancho. Colocou uma música suave. Sua predileta que considerou adequada para ocasião como essa, era Claire de Lune de Debussy que ouviu muito com seu pai.
Recostado às almofadas, refletia sobre qual seria sua incumbência na vida após a partida de seu amado pai. Sentia-se só mas ao mesmo tempo uma força dentro de si o impelia a seguir adiante pensando em projetos a serem realizados. A música foi envolvendo-o num relaxamento natural até conduzi-lo ao torpor dos sentidos. Adormeceu.
Um barulho seco e pesado vindo lá de cima fez seu corpo saltar do sofá e ficar retilÃneo em alto estado de alerta como se tivesse treinado isso várias vezes. O suor escorria-lhe a face lisa e tensa. De imediato lembrou das palavras de seu pai: “Diante do inesperado fantástico, haja com a naturalidade de uma criança pura e destemidaâ€.
Voltou ao controle de si. Sua respiração aos poucos retomou o ritmo cardÃaco natural. As idéias agora estavam extremamente claras. Uma temperatura agradável e um clima seco dominavam o ambiente. Notou um absoluto silêncio. Procurou o relógio e não o encontrou. Foi até a cozinha para encontrá-lo. Alguma coisa lhe parecia muito estranha. Estava tudo muito sereno. Na cozinha, olhou para a mesa e viu uma caixa branca em cima.
Aproximou-se e abriu a caixa. O que viu causou-lhe um impacto forte na altura do externo: era o bule todo envolto em puro papel de seda branco. Brilhava intensamente como se tivesse sido lustrado a poucos instantes. Sentou-se à mesa e dirigiu a mão para apanhá-lo. Sua boca secou, seus olhos brilharam intensamente diante do que viu: suas mãos não conseguiam segurar o bule; elas o atravessavam. Quanto mais esforço fazia para agarrá-lo mais o nada suas mão tocavam — tal como uma miragem. Notou algumas gotas caÃrem em seus dedos. Eram suas lágrimas que rolavam. Sem perceber, estava chorando. Mas não era um choro de tristeza. Nem sabia por que estava chorando. Fechou os olhos e as muitas conversas que tivera com seu pai desfilavam uma a uma em sua mente.
O que isso significa? Por que o bule? Por que o bule?... repetia para si. Voltou a atenção para os detalhes daquele último olhar de seu pai. Deteve-se no desenho das três portas cravejado minuciosamente no bule. De súbito lembrou do barulho que ouvira e resolveu subir a escada para averiguar. Levou a mão aos olhos para coçá-lo e ao abri-los, um susto o fez perceber que já estava no corredor superior. Só então se deu conta que tudo aquilo era um sonho.
Manteve o controle e caminhou em direção à porta do quarto que havia sido ocupado por seu pai. Hesitou em tocar a mão na porta por achar que isso poderia transpassá-la. Ledo engano. O maciço da madeira estava intacto. Abriu-a lentamente. O som arranhou o silêncio. E arranhou também sua lucidez. Diante de si apresentou-se um pátio em estilo século 18. Parecia um átrio de um colégio. Seu corpo gelou quando adiante lhe surgiram 3 portas de madeira escura, todas fechadas. Eram rigorosamente iguais. De imediato veio-lhe à mente a predição de seu pai: “Filho, daqui há 14 anos, você terá um sonho. Nele se apresentarão 3 portas fechadas. Uma delas, você deverá abrir. Mas não será com as mãos. A forma como irá fazê-lo, estará encerrado no lugar mais nobre dentro de você. Escolhas... é só o que temos de concreto. A conseqüência é o que o torna forte para continuar. Ou nãoâ€.
Continuar ou não... continuar ou não... essa frase rodopiava na cabeça de Daremon. Qual porta escolher? E de que forma poderei passar por elas se não poderei fazê-lo com as mãos? Escolhas... é só o que temos de concreto.
Um odor desagradável desviou-lhe a concentração. Pressentiu uma presença. Seu corpo estremeceu, músculos enrijeceram. Virou-se de imediato. Quase sem ar reconheceu o homem de casaco e chapéu preto que estático, ali o espreitava com aquele olhar penetrante. O homem vagarosamente movimentou a mão direita para dentro de seu casaco. Lentamente e com um meio sorriso sarcástico no canto da boca, foi retirando uma reluzente adaga de grande porte. Apesar do momento de pavor que foi acometido, Daremon pode observar detalhes no punho da lâmina. Havia algo familiar esculpido. Algo que já parecia ter visto em algum objeto. Sim, era isso, um dragão! Um dragão...
Não deu tempo de pensar em mais nada. O homem avançou em sua direção com a adaga em punho. Daremon correu em direção à s portas. As mãos trêmulas tanto quanto seus pensamentos, de imediato agarraram a maçaneta... mas que maçaneta? Não havia maçaneta na porta. Aliás, em nenhuma porta havia. Um pensamento repentino, como um raio lhe iluminou a mente: “isto é um sonho e essas portas não me impedirão a passagem!â€. O resultado foi o encontro de dois corpos sólidos. Daremon, com o impacto resistente de uma porta tão sólida, voltou-se para trás. Parado estava o homem com a adaga próximo a seu pescoço. O medo o deixara paralisado. Conduzido à s últimas conseqüências, resignou-se a uma entrega total.
Nesse momento, o homem com a adaga gritou-lhe bem próximo de seus ouvidos: “vou matar o que corroi a visão de tua alma, seu estúpido e ignorante!â€
Uma delas, você deverá abrir. Mas não será com as mãos. A forma como irá fazê-lo, estará encerrado no lugar mais nobre dentro de você. Escolhas... é só o que temos de concreto. A conseqüência é o que o torna forte para continuar. Ou nãoâ€.
A lembrança acendeu como um sol dentro de si um nÃvel de compreensão como nunca tivera antes: O lugar mais nobre dentro de mim se encontra antes das batidas do meu coração.
Esse fulgor perceptivo não o encheu de coragem mas libertou-o do medo. Quando voltou os olhos para o homem com a adaga, o que viu, só não o matou de susto porque seu estado de consciência pairava acima das sensações. O rosto do homem de negro transformou-se no semblante sereno de seu pai que lhe sorria com os lábios fechados. Um pensamento lhe ocorreu: “Eu sou a portaâ€. “Pai... pai... “Tentou em vão chamá-lo. Estendeu as mãos para tocá-lo mas não haviam mãos. Abaixou a visão tentando encontrá-las mas apenas luz era o que existia. Levantou a visão e à sua frente o rosto já não era mais de seu pai, mas o seu. Calmamente observou que estava com os olhos arregalados tal como estivera seu pai quando do último alento.
Fez um ajuste de aproximação no foco de sua visão como se fora um zoom de uma lente fotográfica. E na Ãris de seus olhos, bem delineados seus detalhes e contornos, lá estava a formação rochosa, palco de tantas conversas profundas com seu pai. A imagem criou movimento. E uma silhueta caminhava pela estrada em direção à s rochas. A silhueta parou e virou-se: era Daremon que olhara para trás como que pressentindo que estava sendo observado. Nesse momento não havia mais sonho, não havia mais realidade. Não havia apenas um homem que trilhava seu caminho, lúcido, desperto. Havia mais do que isso. Havia uma incumbência.
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