damasco
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Frase é uma palavra. Palavra não é uma frase.
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« em: Julho 10, 2009, 12:05:28 » |
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O poeta 0 mantinha graves discussões consigo sobre poesia. Dizia-se, muito acossado por escorreita divagação, que a função a que a poesia se propõe é ][, sendo cada uma das suas subfunções um desdobramento interno de ][, poeticamente designados por m[ ou por m], sendo m, ] ou [, sinal de presença da musa. Assim, segundo o seu sistema de classificação, quanto mais a elevada a função ][, m] ou m[, maior o grau poético do texto. Para 0, m] indicava a presença dos elementos estéticos clássicos: m]1: equilíbrio; m]2: harmonia; m]3: geometria; m]4: realismo; m]5: profundidade; m]6: sensorialidade; m]7: eficiência; m]8: universalidade; m]9: relação entre elementos; m]10: lógica; m]11: sentido. Por outro lado, para 0, cada desdobramento de m[ reflectia o anverso das funções de m], previsto como portador de elementos pós-modernos: m[1: desequilíbrio; m[2: desarmonia; m[3: fractalidade; m[4: fantasia; m[5: superficialidade; m[6: dessensorialidade (categoria provisória, a merecer ulterior reflexão); m[7: desperdício; m[8: regionalidade; m[9: caos; m[10: absurdo; m[11: polissemia. 0 mostrava-se bastante satisfeito com esta categorização. No entanto, escapava-lhe o lugar exacto do surrealismo. Como tal, criou uma outra categoria acessória e, na verdade, disfuncional, a categoria ]?[, passível de se desdobrar em m[? e m]?, onde o incluiu. Donde: m]?/m[?1: m]?/m[?2: m]?/m[?3: m]?/m[?4: m]?/m[?5: m]?/m[?6: m]?/m[?7: m]?/m[?8: surrealismo; m]?/m[?9: m]?/m[?10: m]?/m[?11: 0 afirmava que a sua categorização continha tanto elementos trópicos como entrópicos, deixando ainda espaço livre para que elementos difusos e não previstos influenciassem a validação de um texto poético. Não era, no entanto, e apesar do esforço que endividou durante longos anos, um sistema consensual. Pelo contrário, muitos dos seus colegas poetas demonstravam aversão por um sistema categorial que implicasse rigidez de aplicação. 0 defendia-se afirmando que, efectivamente, não se tratava de um sistema rígido; antes pelo contrário, mostrava-se um sistema que incluía elementos não só antitéticos, como também conjuntos vazios que implicavam abertura a elementos não previstos, passíveis de serem preenchidos pelo analista. Também era alegado que o sistema se tornava demasiado redutor, já que apelava a uma categorização dualista, com a possibilidade remota de uma terceira via, provavelmente a surrealista, ignorando todas as outras possibilidades, tais como o barroco, o decadentista, o existencialista, o parnasianista, o impressionista, o neoclássico, o realista e o simbólico. Outros poetas, pura e simplesmente, afirmavam que todo o sistema era obsoleto e ridículo, já que cada poeta, ao sê-lo genuinamente, inaugurava a sua própria corrente. Aos primeiros, 0 respondia que todas essas categorizações seriam desdobramentos dentro das principais categorias que propunha; e aos segundos que ninguém, por mais iluminado que fosse, poderia viver fora de um paradigma que o próprio movimento humano e cultural impunha, à excepção de alguns génios, a quem a contemporaneidade devotava cegueira, e que só viriam a ser reconhecidos aquando de uma qualquer mudança paradigmática a que a morte correria em auxílio, invocando correntes logo transformadas em poesia mainstream e ultrapassando o próprio génio criador, transformado em pouco mais que um símbolo-fantoche para bradar a validade do que, amiúde, continha valor algum. Para exemplificar como a morte acudia à fama, 0 dava o exemplo de Luís Vaz de Camões: caso Camões não tivesse morrido, seria famoso não pela sua poesia mas pelo homem que nasceu no século dezasseis e ainda vive, relegando para a obscuridade toda a sua obra; nesse caso, jamais Os Lusíadas teria alcançado o estatuto de obra mundial e, seguramente, sofreria tão incontáveis alterações que não seria a obra que hoje é. Continuando a descrever o sistema de 0, as suas duas principais categorias, m[ e m], serviriam de marcas caracteriais passíveis de enquadrar qualquer poema. Todos aqueles que não contivessem estas marcas cairiam no terreno dos ]?[poemas (logo, impregnados de funções acessórias tais como o surrealismo ou outras atribuídas pelo examinador),e que, não sendo à priori poesia, poderiam ser validados enquanto tal em reunião de especialistas; ou apoemas, que não continham qualquer elemento caracterial da poesis. Assim, um poema clássico observaria as seguintes condições: 0m[=m[»70%; m]«30%; ]?[« 2; um poema pós-moderno observaria as seguintes condições: 0m]=m]»70%; m[«30%; ]?[« 2; um ]?[poema observaria as seguintes condições: 0]?[=m]«5; m[«5; ]?[» 2; e os apoemas obedeceriam aos critérios: 0apoema=m]«3; m[«3; ]?[» 1. 0 aplicou este sistema a milhares e milhares de poemas de todas as eras, de todos os países, de todas as raças e credos. Planeava, se a vida o permitisse, calcular o mais completo poeta de sempre. Na sua mesa de trabalho, livros amontoavam-se, enquanto outros, amontoados ao longo de salas e salas, aguardavam a sua vez. Durante horas, dias, semanas, 0 não fazia outra coisa que não ler e aplicar a sua estrutura de análise. Neste momento, tem um bastante interessante em mãos, e que pensa levar a congresso, porque, embora na aparência se enquadre em determinada categoria, olhando-o mais a fundo, percebem-se as subtis cambiantes e as tonalidades que, indubitavelmente, o incluem numa outra categoria. Talvez, pensa, este seja o exemplo que preciso para demonstrar como as hesitações sucumbem à perícia do meu sistema de categorização. Tal como todos os poemas que julgava importantes, os verdadeiramente clássicos, os verdadeiramente pós-modernismo, os ambíguos 0]?[, e até um ou outro apoema, guardou-o na gaiola do canário. Abriu a estreita cancela, esticou dois dedos e puxou para fora um pequeno compartimento escondido no chão da gaiola. Musa, o canário, esvoaçou espavorido. Está calado, Musa, murmurou firme. Abriu a caixa e depositou o, adivinhava, polémico poema. 0 habitava uma casa onde as janelas rimavam com as portas e as cadeiras se chamavam decassílabos. As torneiras não deitavam água: fingiam que o faziam, e fingiam tão completamente que chegavam a fingir ser água a água que deveras jorravam. Sempre que alguém à porta batia, respondia Batem leve, levemente, como quem chama por mim. Mas isto era muito raro. Poucos lhe batiam à porta. Aliás, até a empregada deixara de o fazer para não ter de ouvir o poema até ao final. Para sua infelicidade, chamava Leonor. E lá vinha ela, pé ante pé, perguntar Senhor 0, precisa de mais alguma coisa minha, ao que o senhor 0 responde Pode ir formosa e não segura, Leonor. Já lhe preparei a mala de viagem, senhor 0. Tem tudo como de costume. É manhã e o senhor 0 vai de viagem para a cidade vizinha, a um congresso de poesia onde, mais uma vez, irá demonstrar aos colegas as virtudes do seu sistema. Está impaciente, roda os pés de um lado para o outro e olha a gaiola do canário. Quer que chegue a hora da partida. Abre a gaiola do canário, retira a caixinha e, de dentro dela, tira o poema sobre o qual falará, e guarda-o num bolso ao lado do coração. Aquele congresso em particular estava adornado com os exemplos mais perfeitos de poesia e um número interminável de curiosos que, querendo ser poetas (sem arte nem engenho para algum dia o virem a ser), rondavam poetas célebres fantasiando que a inspiração obedecia às leis do contágio. O primeiro congressista havia apresentado e discorrido sobre a pertinência da aplicação de um modelo biológico à análise poética, entroncando, com bastante humor e pertinência, um poema que declarava a fúria das endívias. O segundo congressista falou sobre a paixão e o fogo como valores supremos do sentir poético, algo não muito bem recebido porque, inclusivamente, era uma formulação anterior à experiência estética desinteressada de Kant. 0 subiu à mesa de apresentações debaixo de um intenso burburinho. Retirou o poema do bolso e depô-lo em cima da mesa. Como sabeis, começou, tenho defendido um sistema de análise da poesia formado por dois núcleos estáveis e um instável. Mais que racionalizar a poesia tento, através da razão, lançar luz objectiva, talvez crua, sobre a produção poética. Não pretendo com isto deitar por terra o incomensurável sentir da poesia, um sentir que é próprio de cada um e só a cada um diz respeito. Não. Este é um olhar do outro lado, um olhar estranho aos genes da poesia, sendo a própria poesia estranha a si mesma e ao mundo que a cria; não deixa de ser, no entanto, uma criação do seu tempo, que lhe reage, que lhe resiste e a subverte. Assim é, por exemplo, a poesia moderna: apesar de estar na linha temporal do modernismo, é uma força antagónica que repele a própria modernidade e a lança para fora das margens do texto. Gosto de pensar que nesta análise, que transpira secura e frieza racionalista, entra brisa poética pelas frinchas; afinal, até numa esquemática equação matemática cabe poesia. O poema que trouxe para análise chama-se Este homem que transporta o bidé. Pretendo mostrar-vos como, com o sistema analítico que proponho, é possível desnudar o poema e vê-lo abrir-se perante nós de uma forma inesperada. Passo a ler: Este homem que transporta o bidé Fá-lo sozinho pelo próprio pé Este poema, apesar de na aparência ser do mais puro classicismo, tem entranhas pós-modernas. E passo a demonstrá-lo. Na sala, o burburinho que as palavras iniciais de 0 causou rapidamente se agigantou. Como seria possível ver pós-modernismo num poema daqueles, perguntavam uns. Como seria possível considerar aquilo sequer um poema, perguntavam outros. Mas não era evidente que aquele era um poema de puro recorte clássico, nem necessitando de análise, questionavam-se outros. Facto é que a inquietação cresceu e o senhor 0 não teve condições para continuar a apresentação. Dois poetas engalfinharam-se no meio da plateia, socando e agarrando os cabelos um do outro. Gritava um Sua matraca intratável, ao que o outro respondia, com os óculos de esguelha, Da minha boca só sai palavra invejável. Ao lado, um aspirante a poeta abriu a bolsa de couro, tirou o tupperware do almoço e despejou-o na cabeça de uma loira da fila da frente. A loira virou-se para atrás e gritou Sou ferro, fogo e luz, e agora tenho frango no cabelo. E tudo isto com um cotovelo, respondeu o agressor. A confusão varreu o congresso como uma onda gigante e a violência física instalou-se entre os poetas. O senhor 0 saiu pelas portas do fundo.
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