EscritArtes
Março 29, 2024, 10:02:39 *
Olá, Visitante. Por favor Entre ou Registe-se se ainda não for membro.

Entrar com nome de utilizador, password e duração da sessão
Notícias: Regulamento do site
http://www.escritartes.com/forum/index.php/topic,9145.0.html
 
  Início   Fórum   Ajuda Entrar Registe-se   *
Páginas: [1]   Ir para o fundo
  Imprimir  
Autor Tópico: Tartã  (Lida 2724 vezes)
0 Membros e 1 Visitante estão a ver este tópico.
Djabal
Membro
***
Offline Offline

Sexo: Masculino
Mensagens: 191
Convidados: 0



WWW
« em: Julho 14, 2009, 20:43:24 »


Se pudéssemos ver o homem, o entenderíamos.

Ascídio desce a escada que ascende do subsolo. Trabalha lá embaixo. Perna esquerda mais curta e braço esquerdo mais longo. Gosta de comer ouriço do mar, sempre diz que são parentes entre si, mas não é canibal, o parentesco é distante, tampouco se considera um marciano, talvez uma deformação de estrela marinha. Queda-se lá, mesa cheia de papéis que passam, param e tomam outro destino. Guarda alguns para suas anotações naqueles sem mais serventia. Dentro do gabinete resta como paisagem, enterrado em uma pedra submersa, apenas aparecendo em festas e reuniões com muitas pessoas. As tarefas do trabalho para o qual foi contratado terminaram, entretanto sua movimentação constante, sua atribulação aparente e seu ar sempre ocupado simulam a sua indispensabilidade.

Em tempos passados usou um boné pensador, chamando a atenção sobre si de maneira inconveniente. Todos o olharam e viam algo que o conduziria à morte. Pessoas desconhecidas, tendo ouvido falar do chapéu, vieram vê-lo; não assim frente a frente, mas, arranjando algo para fazer no departamento, olhavam para ele de soslaio. Ascídio compreendeu, então, o destino dos olhados em demasia. Todo examinado é uma cópia fiel do examinador. É a si próprio que o outro vê. O chapéu é um acumular dos ódios alheios. Teve apenas um amigo no passado, já distante, um boxeador. Depois dele, seus amigos residiam no futuro. Não conheceu, ao longo da vida efêmera, outro alguém que o olhasse para compreendê-lo, para pensar sobre diferenças.  Considerava-se um ponto fora da curva, desprezado para efeito de análise ou consideração. Era o raciocínio que lhe dava segurança. E foi assim que deixou de usar o seu chapéu.

Consultou um ortopedista. Queria saber se havia alguma maneira de tratar o crescimento ímpar de seus membros. Sonhava em ter um aspecto normalizado.  Foi atendido pelo assistente do Doutor Nicolau Capote, tirou suas roupas e deitou-se na maca do médico. O assistente apalpou, examinou, consultou os reflexos por todo o corpo, perguntou de sua ascendência, de seus hábitos, analisou todos os exames de laboratório pedidos preliminarmente. E, passo a passo, passou suas impressões ao doutor Capote. Este, de repente, levantou-se e fez algumas considerações a respeito daqueles resultados ao residente. Uma pergunta ou outra, e deu o seu diagnóstico. O mestre mandou. E disse bem: coloque um salto maior no pé afetado e mande fazer suas roupas sob medida e ninguém notará.

Mesmo insatisfeito com o resultado, conformou-se e seguiu sua vida. Encontrou um galego residente no Brasil, há muitos anos, alto, gordo, calvo, claro e sardento, um negro faiscante no olhar curioso, um ligeiro tremer de mãos, adorador de tangos, dançarino desde moço, aprendeu a costurar e fez o seu primeiro terno em linho ‘cento e vinte’. Altivo e formal,  conheceu aquela com quem se casaria em um baile e se apaixonou. Pediu a ela autorização para ir ao seu último carnaval sozinho. Autorizado, se esbaldou e nunca mais foi boêmio. Só alfaiate. Combinou com ele o preço, a forma de pagamento. Fez provas intermináveis onde contava as gravações do Gardel, do seu acervo de discos de setenta e oito rotações, gabava-se de ter a maior coleção da América, jamais tivera conhecimento de outra que lhe chegasse aos pés. Experimentei o conjunto e percebi que a perna esquerda da calça estava mais longa e o braço esquerdo mais curto. Olhou para o senhor Salvador e disse: “Está fora das medidas, senhor Salvador.†“ É, mando fazer a calça em um calceiro e o paletó é costurado pela minha mulher. Talvez ambos pensaram que eu me enganei nas medidas. Deve ser isso.â€

Ele amarra e desamarra seus sapatos pelo menos uma vez, todos os dias. Os cadarços não chamam a atenção, auxiliam e atacam seus furos, sem reclamo, exigência, eles estão sempre lá no seu lugar, semiprontos para o dia seguinte. Certo dia, o ourelo se racha, o do pé esquerdo. O capuz cônico e brilhante dia após dia vai se desfazendo. Logo pensa em trocá-lo, por outro, mais novo, ele passa a requerer mais atenção. Deve juntar primeiro os fios da ponta, agora soltos, numa forma afilada, para penetrar o buraco do ilhó da aba esquerda que cobre a lingüeta, e preparar o laço final. Ao mesmo tempo passa a olhá-lo com desvelo, concluindo não ser justo atirá-lo fora pelo problema no cabeço. Ele ainda serve. Além de não jogar fora o outro, do par. (A compra é sempre feita aos pares.) Amarrar os sapatos é agora uma tarefa cuidadosa e demorada, não mais automática. Faz uma escultura instantânea e fugaz dos fios.  Existem fios longitudinais e transversais, cada um forma uma estrutura, o urdume ou urdidura, este último a trama, eles se juntam em duas pontas agudas e passam perfeitamente para o outro lado e se encontram no laço final. Olha cuidadosamente para o calçado, e descobre a alma dele, assim como o atacador também. Ele é uma síntese. Durante um bom tempo, ele esculpe todas as manhãs.  Um dia, um dos fios fica mais comprido que os demais, ele se estica à frente colocando o pescoço de fora, talvez um ato de rebeldia, pela torção constante que passou a sofrer. Ele o puxa para fora, e corta com as unhas. No dia seguinte, andava por uma calçada, quando alguém que o acompanhava, parou se abaixou e puxou um fio que aparecia e se arrastava sob a barra da calça, fazendo-lhe o favor. Chegando a casa, Ascídio percebeu.  A trama se desfez até metade do cadarço, ele agora se resume numa rama de fios soltos até a metade. Antes de jogá-lo fora, amarro o meu pé esquerdo com ele pela última vez, apenas até o penúltimo dos ilhoses.

Folheando o jornal, uma notícia de falecimento trouxe à lembrança, a presença quase física do amigo, depois de vinte anos de sua morte.  Um escritor que se exilara de sua terra natal, viveu grande parte de sua vida em uma remota ilha na Ãsia. Escrevia apenas sobre o futuro, o passado servindo para mostrar as várias probabilidades dele. O presente ele vivia apenas para o mergulho e as crianças. Essa ilha e sua Grande Barreira de Coral davam-lhe beleza, o mar tirava-lhe a força da gravidade e ele flutuava, olhava as semelhanças, as diferenças, no silêncio absoluto das eras anteriores ao próprio homem. Via e compreendia como funcionava a natureza, sem intermediários. Acreditava que o mar e o espaço se confundiam. Costumava dizer que deveríamos não acrescentar anos na vida humana, mas, vidas nos anos que faltavam. Nós já vivíamos o suficiente.

Nesta noite sonhou com corais, cores, profundezas, azuis. No dia seguinte, ao se aproximar do trabalho, deu uma esmola a um velho, e ouviu a pergunta: “O senhor é inglês ou americano?†“Por que?†â€Ã‰ o seu paletó.â€



Registado
Dionísio Dinis
Moderador Global
Contribuinte Activo
*****
Offline Offline

Sexo: Masculino
Mensagens: 9797
Convidados: 0



WWW
« Responder #1 em: Julho 14, 2009, 20:53:32 »

" O presente ele vivia apenas para o mergulho e as crianças."
" Costumava dizer que deveríamos não acrescentar anos na vida humana, mas, vidas nos anos que faltavam. Nós já vivíamos o suficiente."

E de tudo o que se pensa, sente e escreve, na sua prosa, o todo é sempre maior que o universo, e as partes essenciais do sustentáculo do seu mágico edifício criativo, são o assizado caminho na demanda de mais arte e mais luz.A sua escrita é absolutamente essencial e deliciosa!

Abraço fraterno.
Registado

Pensar amar-te, é ter o acto na palavra e o coração no corpo inteiro.
http://www.escritartes.com/forum/index.php
Goreti Dias
Contribuinte Activo
*****
Offline Offline

Sexo: Feminino
Mensagens: 18616
Convidados: 999



WWW
« Responder #2 em: Julho 16, 2009, 18:55:09 »

Melhor o sonho que a manhã...
Bom acordar para a sua leitura!
Registado

Goretidias

 Todos os textos registados no IGAC sob o número: 358/2009 e 4659/2010
Tere Tavares
Contribuinte Activo
*****
Offline Offline

Sexo: Feminino
Mensagens: 926
Convidados: 0



WWW
« Responder #3 em: Julho 23, 2009, 22:55:50 »

Djabal,
O poder das coisas deveria atuar à nosso favor; como presentes à vida.
Os diferentes tem a sina de o serem e folgo aos que reconheço felizes mesmo assim; porque o normal não é de admirar, embora tenha o mesmo merecimento. Ponderar, porém, fica distante da beleza perspicaz com que nos brindam as tuas palavras. Parabéns, mais uma vez. Beijos
Registado

Escreve também no blog:
http://m-eusoutros.blogspot.com
Todos os textos registrados nº 540.178 livro 1027 folha 386.
Escritório de Direitos Autorais - Biblioteca Nacional
Páginas: [1]   Ir para o topo
  Imprimir  
 
Ir para:  

Recentemente
[Março 20, 2024, 16:42:39 ]

[Março 19, 2024, 20:20:16 ]

[Março 17, 2024, 22:17:37 ]

[Março 17, 2024, 22:16:43 ]

[Março 12, 2024, 00:13:37 ]

[Março 11, 2024, 23:55:47 ]

[Março 05, 2024, 18:49:49 ]

[Fevereiro 26, 2024, 22:47:50 ]

[Fevereiro 26, 2024, 22:47:13 ]

[Fevereiro 26, 2024, 22:46:34 ]
Membros
Total de Membros: 792
Ultimo: Leonardrox
Estatísticas
Total de Mensagens: 130129
Total de Tópicos: 26759
Online hoje: 732
Máximo Online: 964
(Março 18, 2024, 08:06:43 )
Utilizadores Online
Users: 0
Convidados: 733
Total: 733
Últimas 30 mensagens:
Novembro 30, 2023, 09:31:54
Bom dia. Para todos um FigasAbraço
Agosto 14, 2023, 16:53:06
Sejam bem vindos às escritas!
Agosto 14, 2023, 16:52:48
Boa tarde!
Janeiro 01, 2023, 20:15:54
Bom Ano! Obrigada pela companhia!
Dezembro 30, 2022, 19:42:00
Entrei para desejar um novo ano carregado de inflação de coisas boas para todos
Novembro 10, 2022, 20:31:07
Partilhar é bom! Partilhem leituras, comentários e amizades. Faz bem à alma.
Novembro 10, 2022, 20:30:23
E, se não for pedir muito, deixem um incentivo aos autores!
Novembro 10, 2022, 20:29:22
Boas leituras!
Novembro 10, 2022, 20:29:08
Boa noite!
Setembro 05, 2022, 13:39:27
Brevemente, novidades por aqui!
Setembro 05, 2022, 13:38:48
Boa tarde
Outubro 14, 2021, 00:43:39
Obrigado, Administração, por avisar!
Setembro 14, 2021, 10:50:24
Bom dia. O site vai migrar para outra plataforma no dia 23 deste mês de setembro. Aconselha-se as pessoas a fazerem cópias de algum material que não tenham guardado em meios pessoais. Não está previsto perder-se nada, mas poderá acontecer. Obrigada.

Maio 10, 2021, 20:44:46
Boa noite feliz para todos
Maio 07, 2021, 15:30:47
Olá! Boas leituras e boas escritas!
Abril 12, 2021, 19:05:45
Boa noite a todos.
Abril 04, 2021, 17:43:19
Bom domingo para todos.
Março 29, 2021, 18:06:30
Boa semana para todos.
Março 27, 2021, 16:58:55
Boa tarde a todos.
Março 25, 2021, 20:24:17
Boia noite para todos.
Março 22, 2021, 20:50:10
Boa noite feliz para todos.
Março 17, 2021, 15:04:15
Boa tarde a todos.
Março 16, 2021, 12:35:25
Olá para todos!
Março 13, 2021, 17:52:36
Olá para todos!
Março 10, 2021, 20:33:13
Boa feliz noite para todos.
Março 05, 2021, 20:17:07
Bom fim de semana para todos
Março 04, 2021, 20:58:41
Boa quinta para todos.
Março 03, 2021, 19:28:19
Boa noite para todos.
Março 02, 2021, 20:10:50
Boa noite feliz para todos.
Fevereiro 28, 2021, 17:12:44
Bom domingo para todos.
Powered by MySQL 5 Powered by PHP 5 CSS Valid
Powered by SMF 1.1.20 | SMF © 2006-2007, Simple Machines
TinyPortal v0.9.8 © Bloc
Página criada em 0.12 segundos com 29 procedimentos.