antónio paiva
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« em: Dezembro 07, 2007, 15:00:37 » |
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São tantas as vezes que abro um livro e invariavelmente detenho-me nas mesmas páginas. Actos ilúcidos de uma lucidez que se anseia. O saber da existência de escritores que nunca escreveram uma palavra, que nunca publicarão um livro, mas que dia-a-dia registam nas páginas da vida, escritos dignos de um prémio Nobel da Literatura. Neste estruturar da existência, feito de leituras, entre frases e parágrafos inteiros. A memória devolve-me os anseios de tantos que viram os seus sonhos virar pesadelos. Quando os sonhos se desordenam, o espÃrito fica difÃcil de soerguer. É nestes momentos que desejo confundir-me com a terra, para que não me perturbem o pensamento. Sempre que me apetece desistir, verifico que somos feitos de incoerências, contradições e outras particularidades singulares. Na eminência de pronunciar o meu nome, multiplica-se o segredo das palavras. A procura de algo mais ajustado à inexistência da perfeição consome-me o sono, complica-me os dias, dificulta-me de algum modo, o comunicar com os da minha espécie.
Permaneço parte dos dias a ler, sempre presente está a consistência de algumas palavras, mesmo quando os gestos as ignoram. Identifico com naturalidade as crianças pelos olhos, reconheço o olhar dos mendigos, habitantes de todas as ruas do abandono nas cidades. O seu pedir de esmola deixa-me assustado, sinto o medo a percorrer-me o cérebro em arrepios. Nenhum medo nos prepara para outro medo. Todos eles são diferentes, isolados, violentos, devastadores. Proferimos tantas palavras desnecessárias à nossa sobrevivência, facilmente nos tornamos eternos amantes da culpa. Sempre que o sol aquece, o brilho das folhas das árvores fica mais intenso. É quando me lembro que só por existirem árvores, devÃamos agradecer à vida. Observo-as, sinto haver em mim um universo de palavras adormecidas, que um dia hão-de despertar. O anseio das longas tardes de Verão, serenamente a olhar o mar, o submergir na vida interior de cada um de nós. O murmúrio de uma palavra, por alguém que luta desesperadamente pela vida, impressiona de tal modo, que se torna impossÃvel alguma vez esquecê-la.
Assim se compõem livros sem escrever uma só palavra, ficando dispensada logo à partida toda e qualquer revisão de texto. As análises crÃticas e literárias, revelam-se inúteis, tal como o são sempre. O ideal era que os livros não precisassem de sair do imaginário. Não haveria registo, dizem-me. Pois que digam. Eu respondo: AprenderÃamos a ler com mais interesse nos olhares que nos são generosamente oferecidos. EscutarÃamos com mais atenção aquilo que nos querem dizer, quase nunca escutamos, porque achamos que o que temos para dizer é sempre mais importante. Entre mim e nós, a beleza da palavra partilhada, é um lugar de privilégio. Atarefados e atolados em banalidades estéreis não damos conta disso. Acabamos por sucumbir na abstracção do pensamento. Debato-me na luta obscura entre a palavra e a narrativa. Nesta ânsia obstinada de me tornar perceptÃvel. Cada vez mais me convenço, que nada posso fazer contra a espessura da existência, senão escrever. É redutor eu sei. Mas deste modo vou recolhendo instantes privilegiados do essencial da vida, em cumplicidade permanente, com escritores que nunca escreveram uma só palavra, mas que deixam a brilhante obra da sua existência.
Seremos nós apenas ecos e sombras? Viveremos as dúvidas até um sinal que nos ilumine a razão?
Embora eu não tenha a certeza se a vida é isto ou outra coisa qualquer, vou registando pormenores, as coisas mÃnimas a que poucos dão atenção. Na verdade as pessoas são por natureza distraÃdas, de si e dos outros, sobretudo naquilo que as revela.
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