Antonio
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« em: Dezembro 10, 2007, 19:51:16 » |
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Isto das histórias do passado é como as cerejas. Tira-se uma e vem logo atrás duas ou três. Ou mais. Por isso vou-vos fazer mais uma narrativa dos meus tempos de escola primária.
Tudo começou no ano lectivo de 1957/58. O ano em que fui gloriosamente eleito chefe de turma. Numa manhã duma quinta-feira normalíssima, a já conhecida D. Ester, dedicada e competente professora, estava dando a sua aula quando se ouviu um truz-truz na porta. A mestra foi abri-la e surgiu um padre. Vestido a preceito, pois naquele tempo não havia padres à paisana. E com coroa, pois claro. Era muito jovem e com boa figura. Como mandavam as regras, a malta levantou-se toda. Era a forma oficial de saudar e de mostrar boa educação. Logo a seguir disse a senhora: - Podem sentar-se. O senhor padre autoriza. Cumprida a ordem, continuou: - Este é o Sr. Padre Rocha que virá aqui à aula, todas as quintas feiras, para vos dar uma lição de Religião e Moral. Durará cerca de uma hora. E portem-se bem! Ouviu-se um burburinho que foi imediatamente interrompido por um mero olhar mais carrancudo da professora. E o padre começou quasi de imediato a falar. Não sei o que disse. Sei que logo nesse dia começou a cativar-nos com a sua forma serena de estar e o modo como se nos dirigia e fazia participar nas questões tratadas. E, a partir daí, a horinha com o padre Rocha era um momento sempre desejado. Chegados ao fim do ano escolar, todos pedimos ao sacerdote para voltar no ano seguinte. Disse que gostaria muito, mas não sabia se era possível. Acabadas as férias grandes, voltamos à escola. Agora na 4ª classe. Numa das primeiras quintas-feiras, apareceu a D. Ester com um ar contristado a dizer: - Hoje vão começar novamente as aulas de Religião e Moral. - Vem o padre Rocha? – gritamos. - Não! - Oh!!! – saiu-nos pesaroso e redondinho este “Oh!!!” - Não pôde ser. Mas o senhor padre que vem este ano também é muito bom. Qual quê! Queríamos era o padre Rocha. Eis que um dos alunos grita: - O padre Rocha está ali escondido atrás da porta. Eu vi-o! Desmascarado, o sacerdote entrou, perante os gritos e palmas de euforia da rapaziada e os sorrisos complacentes dos dois adultos. E, durante todo o ano, essas horinhas foram um regalo. O padre Rocha tinha um verdadeiro talento para lidar com crianças. Terminado o ano, feitos os exames da 4ª e de admissão, começaram as merecidas férias antes de uma nova etapa das nossas vidas ter início. Uma ou duas semanas depois de iniciadas as férias, houve um telefonema do padre Rocha para casa dos meus pais. Foi a minha mãe quem atendeu. Era o jovem clérigo que pretendia convidar-me para um lanche nas esplanadas do Palácio de Cristal. A mim e ao Quim Delgado (este Quim não tem nada a ver com o outro de que falei na história do “esquentamento de consciência”, convém dizê-lo por causa das dúvidas). Após alguns telefonemas, tudo ficou aprazado para uma das tardes seguintes. O Delgado viria ter a minha casa e depois, os três, iríamos merendar. Entretanto, a minha irmã, com os seus oito aninhos, mas sempre muito ladina e desconcertante, ia observando tudo. - Ó Tone! Ainda vais para padre! – e ria-se com ar trocista. À hora do jantar, e depois de posto ao corrente da situação, o meu pai não se mostrou muito agradado: - Já percebi que ele anda a pescar rapazes para o seminário. Mas tu não estás interessado em ir para padre, pois não, meu filho? - Não, papá! E, de facto, nunca sentira a menor vocação para o sacerdócio. Dizia sempre que queria casar e ter filhos. E chegou o dia combinado. O Quim Delgado já tinha vindo e estávamos ambos a brincar na rua. Até que chegou o padre. Beijinhos, entramos em casa, a minha mãe fez o papel de anfitriã e a minha irmã lá estava muito caladinha. A certa altura, o padre fez uma primeira abordagem à nossa ida para o seminário. E a minha maninha não se conteve. Usando uma expressão que ouvira várias vezes, não só lá em casa mas também na de outros familiares e amigos, disparou: - Ele não quer ir para padre porque os padres são capados! Meu Deus! Padre com sorriso amarelíssimo. Mãe aflitíssima. Eu embasbacado. Quim…nem reparei. E a Nandinha com um sorriso de orelha a orelha! A minha pobre mãe desfez-se em desculpas. O padre dizia que era normal nas crianças. E lá fomos para o Palácio que era a melhor maneira de fugir ao embaraço. De resto, tudo correu bem. Estava uma bela tarde de Julho e o nosso amigo sacerdote ainda voltou a falar no assunto, agora de forma mais directa, mas ambos fomos peremptórios a dizer que não era essa a nossa vocação. Regressamos a casa, fizeram-se as despedidas e o clérigo abalou. Durante alguns anos não ouvi falar no padre Rocha.
Cinco ou seis anos depois, estava eu a ler a necrologia (no que imitava o meu pai) d´O Comércio do Porto, que era o jornal diário lido em casa, quando se me deparou a notícia, brutal! Tinha morrido, vítima de doença prolongada, o Rev. António da Rocha Soares. Devia andar pelos trinta anos. Nem tivera tempo de envelhecer. Que injustiça! (acho que ainda verti uma lagrimazita)
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