gdec2001
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« em: Setembro 09, 2009, 19:36:59 » |
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A 2ª visita
Nem poderia deixar de referir também a minha ida à "Experimental Prisão Modelo da Ilha Deserta". Devo advertir que esta palavra deserta, para chamar a inesperada ilha da minha visita é a mais apropriada. De planta ou animal em vão se procuraria ali qualquer vestígio. Explicaram-me porquê : De forma quase perfeitamente circular, a ilha é, como a maior parte, o cimo de uma avantajada montanha cavado há muito pela cratera de um vulcão extinto e submarino. Ao emergir, por via de algum dos geológicos cataclismos que usam fabricar as ilhas, a cratera ficou rasa de água que apenas um bem definido círculo rochoso enrodava. Possuindo o lugar -como privilégio- um microclima muito caracterizado -a pluviosidade, de 6,5 microlitros, é praticamente nula- este lago teria desaparecido depressa se a evaporação não fosse compensada pelas marés mais vivas que o reenchiam todos os anos. Foi assim que a cratera ficou cheia de sal -a riqueza da ilha- em cuja extracção, limpeza, refinamento, embalagem e carregamento se empregam os presos. Ouvi estas minuciosas explicações do director da prisão que não deve tardar para ser devidamente apresentado. Mas antes deverei contar sobre a recepção que me estava não preparada mas guardada naquele sentido em que se diz "guardado está o bocado..." Saibam que cheguei acompanhado de uma adequada comitiva mas desapareceram todos na hora do desembarque; talvez nos tivéssemos perdido uns dos outros na confusão que acompanha, inevitavelmente, estes acontecimentos.Mesmo o navio que me trouxe abandonou o porto sem me dar tempo de tentar alguns passos no interior. Encontrei-me só e nostálgico da companhia que, notava-o agora, me fizera o expansivo transatlântico. Comecei a caminhar dando as costas ao Oceano e incomodado por isto, por aquilo, caminhava mal. Os meus movimentos desgraciosos deviam exteriorizar bem o meu abatimento porque logo apareceu por ali um homenzarrão empunhando um engenhoso chicote com o qual começou a zurzir-me esforçada e alegremente. Não fazia propriamente doer como é costume, fazia o medo da dor inadiável crescer a cada chicotada. O director apareceu na última hora da minha resistência; caí-lhe nos braços mas ele amparou-me carinhosamente com grande surpresa do homenzarrão, a quem dirigiu estas palavras : Vai mas é bater no teu paizinho, minha flor, que este não precisa. E para mim: Trato sempre bem o pessoal que me é dedicadíssimo, sem vaidade! Perdoe-me caro condiscípulo -permite-me que ainda o trate assim?- mas cheguei atrasado e o rapaz, que vê mal, confundiu-o com um dos nossos pupilos mais perigosos, nada menos do que um larápio, que anda fugido -pergunto-me para quê, numa ilha circular e deserta -; mas asseguro-lhe que este guarda é precisamente o melhor que temos, e digo-lhe que bem confirma o ditado de que de um mau ninho pode sair um bom passarinho. O pai é o nosso preso mais antigo mas receio que seja irrecuperável; apesar dos nossos esforços é indisciplinado e desordeiro; mas tem uma saúde de ferro, concluiu um tanto inesperadamente. Perdoa-nos, sim ?, perguntou com ansiedade: Signifiquei-lhe que até achara o seu quê de pitoresco no episódio e recebi um sorriso de reconhecimento com o que se encerrou a minha recepção de maneira que não tive oportunidade para o meu discurso. Caminhando -e como eu caminhava melhor agora seguindo o director que, por deferência, me dava a dianteira !- chegámos junto de um trenó que, tirado por cinco presos, nos conduziu por uma pista brilhante de sal polido, percebi- até às instalações. Não encontrei um acampamento como esperava. Havia três edifícios de bom aspecto. O maior, elucidou-me o anfitrião,é o destinado aos serviços burocráticos, chamemos-lhes assim : Direcção, secretaria, laboratórios, arquivo, posto médico,etc. Acolá é a residência comum do pessoal e ali a minha casa. A organização é estritamente militar e temos um guarda permanente aos edifícios que aliás são construídos segundo as melhores técnicas das prisões, embora as grades não pretendam impedir que se saia, mas sim que se entre neles, sorriu. Deve perguntar, disse no momento em que eu ia fazê-lo, onde estão as instalações dos presos . Não ficam muito longe mas são subterrâneas -se é que se pode empregar tal palavra num mundo de sal até quase cem metros de profundidade. Foi então que me contou sobre as origens da ilha e elucidou: Devido à baixa pluviosidade a ilha está sujeita a uma intensa desidratação. O endurecimento daí resultante faz com que o trabalho de extracção tenha toda a semelhança com o de uma pedreira, ou melhor com uma mina, porque resolvemos respeitar a superfície, para evitar a formação de uma cova que, mais tarde ou mais cedo, uma maré reencheria de água. A fim de não desperdiçar o trabalho dos presos numa tarefa anti-económica como seria a construção de moradias, distribuímos-lhes como primeira obrigação , cavar uma cela subterrânea. As celas ficam de um e de outro lado de um corredor comum; cada novo hóspede deve também continuar o corredor, o suficiente para construir a sua cela. Queremos que cada um construa, por assim dizer, o seu próprio lar. As celas que ficam devolutas aproveitamo-las para ponto de partida de novas minas. Temos assim uma única saída para o exterior o que facilita a vigilância. Assim falando tínhamo-nos encaminhado para a boca da mina e entráramos no túnel cavado no sal que procura o interior da ilha em declive acentuado. Os presos que puxavam o trenó eram de vez em quando estimulados pelo director com uma breve chicotada. Vamos vê-los trabalhar, disse; temos agora cerca de oitocentos; setecentos e oitenta e três para ser preciso, era o número hoje de madrugada. Estão sempre a chegar mas a mortalidade também é elevada e alguns sempre acabam por sair depois de completamente recuperados. Saiba que esta prisão é a única que pode orgulhar-se de fazer recuperações perfeitas dada a feliz aplicação da aliás impropriamente chamada lei das medidas de segurança. Esta lei permite-nos manter o prisioneiro até que seja considerado como de personalidade impecável. Mas não se trata das medidas de segurança da velha teoria da prevenção, que está ultrapassada. São antes verdadeiras penas aplicadas à culpa dos criminosos pela inadequada formação da sua personalidade, ou nos casos de deformação hereditária (como também nos devidos a causas exógenas) à culpa pela negligência na correcção indispensável; e peço para notar, notou, que só a sua natureza de verdadeiras penas nos permite usar sobre os criminosos os nossos eficientes meios de correcção. Quero ainda salientar, salientou, que obtemos assim uma graduação mais rigorosa da pena, pois quanto maior é a deformação ou culpa (devemos entender estas palavras como sinónimos) maior o período de recuperação. Entretanto havíamos chegado junto de um pequeno grupo de prisioneiros que acorrentados uns aos outros, como é costume, trabalhavam sob a vigilância do guarda meu conhecido que me acenou um cumprimento. Brandia a intervalos regulares o seu chicote distribuindo correctivos com invulgar sentido de justiça entre todos os prisioneiros. Estamos a assistir à extracção de sal, declamou o director com uma ponta de indisfarçável orgulho; ocupamos nesta actividade cerca de metade dos prisioneiros, os mais perigosos : desordeiros, todos os violadores dos direitos de propriedade, blasfemadores, abusadores da liberdade de imprensa, agitadores, pacifistas, antinacionalistas e outros intelectuais, poetas, filósofos e outros visionários, pretos e todas as demais castas inferiores, etc. Sabemos que são raros os recuperáveis neste grupo mas é mais uma razão para tentar recuperá-los com mais afinco. Quando, algum deles, consegue passar para outra actividade, é porque está no caminho do bem, concluiu com unção. E depois de uma pausa: Embora o método que aqui usamos pareça à primeira vista muito primitivo, posso afirmar-lhe que não é nada disso, é "estritamente científico" segundo reza o nosso regulamento. Aplicamos pura e simplesmente a conhecida pedagogia baseada nos reflexos condicionados. Se bem atentar no ouvido direito de cada prisioneiro há um pequeno objecto que é um receptor transistorizado contruído para captar apenas a nossa estação emissora que transmite continuamente, excepto no pequeno intervalo da refeição, os preceitos indispensáveis a uma boa formação cívica e moral : Admiração pelos superiores, obediência às autoridades, respeito pela propriedade, crença religiosa, etc., condensados em fórmulas simples e directas do género: "Deves crer que F. é o melhor e mais inteligente dos dirigentes, deves estar-lhe grato e admirá-lo". É absolutamente proibido retirar o receptor do ouvido, seja em que circunstância for, e a destruição dele é punida com a morte ( já tivemos de aplicá-la mais do que uma vez, digo-o entre parêntesis) disse. Esta fase da recuperação considera-se completa quando a um desagradável estímulo físico exterior se suceda automaticamente a emersão à superfície da consciência dos princípios morais fundamentais -desculpe a rima- que regem a nossa sociedade, pela ordem do ensinamento que é também a da importância. Infelizmente a demência completa sobrevém muitas vezes antes de termos conseguido resultados satisfatórios e para a demência a pena é a morte -culpa na formação da personalidade, lembrou-me- mas algumas vezes esta antecede aquela. Nós sabemos, disse após um breve recolhimento, que a consciencialização dos deveres não deve apenas obedecer a um estímulo violento; por isso os outros aspectos da vida exterior são também aqui artificialmente reproduzidos nas secções aonde estão os presos menos perigosos . Andando, passámos junto de outros grupos de extractores de sal; grupos de cinco ou seis prisioneiros dirigidos por um guarda. Cada grupo trabalhava numa mina diferente. Os guardas revezavam-se frequentemente. A temperatura mantinha-se bastante elevada mas o ambiente era seco, muito saudável, dizia o director ; a sede enchia-me a barriga mas um terror muito primitivo, impedia-me de perguntar por água. Suponho que temia que não houvesse. O director disse: Creio que terá sede, como eu . A água é extremamente preciosa aqui. Importamo-la como tudo o mais -excepto o sal claro, sorriu - e o orçamento prevê uma verba muito limitada; temos de racioná-la rigorosamente aos prisioneiros. O nosso médico calcula para cada caso a dose mínima diária suficiente para que a desidratação não atinja o nível mortal dentro da duração provável da pena. Mas venha daí beber qualquer coisa. Retomámos o nosso trenó e voltámos ao lugar das habitações. Bebeu e ofereceu-me uma bebida, preferi apenas água mas a minha garrafa secou antes de poder levá-la à boca. Ninguém reparou. Fomos depois visitar outra secção. Esta é a dos "pedreiros" disse-me; os grandes blocos de sal extraídos são aqui reduzidos a pedaços cada vez mais pequenos até, que por último, o sal fica reduzido a pó. Nesta secção trabalham, além dos que sobem da secção anterior -actualmente sete ao todo - os réus de culpas menos graves : Difamadores, caluniadores, autores de crimes passionais açambarcadores, os que se apropriam da propriedade pública, alguns homicidas etc. Possuem também o seu transistorzinho para ouvir a emissão mas os estímulos são aqui de natureza mais subtil : Insuficiência alimentar -a emissão cessa na hora da refeição - a sede, a incerteza quanto á duração da pena, supressão das actividades sexuais, o isolamento -só podem falar nas horas da refeição - etc. Não sofrem castigo corporal excepto se violarem algum dos nossos rigorosos preceitos regulamentares. Compreendi que isso se dava muitas vezes porque os guardas se apresentavam munidos do seu inseparável chicote. Nesta secção ainda são mais os que se perdem do que os se salvam. A loucura arrebata-nos a maior parte, mas temos de pagar algum preço pela eficácia do aparelhozinho, afirmou carinhosamente. Esta secção é também a encarregada do carregamento dos navios. Caminhando sempre, havíamos chegado à secção de empacotamento instalada à superfície. A secção de empacotamento é a nossa privilegiada. Nela se encontram os casos menos graves de deformação da personalidade, além dos que sobem das outras secções —e note que subir, aqui, não é uma mera imagem -. São quase todos condenados por violência; uma grande parte deles homicidas; admiramos muito a coragem e costumamos dizer que desta massa é que se fazem os heróis, disse sorrindo. Trata-se apenas de canalizar-lhes o carácter no sentido de os tornar bons seguidores, e às vezes até guardiães, dos nossos sagrados princípios cívicos e morais. Note que desta secção têm saído quase todos os nossos guardas que, afirmo-o sem vaidade -disse orgulhosamente - são cidadãos exemplares. Na verdade os seus actos criminosos - referia-se novamente aos presos da secção de empacotamento como me fez saber indicando-os - só o foram pela circunstância fortuita de não serem dirigidos às pessoas adequadas, não sei se me faço entender...duvidou. Todos os presos desta secção são recuperáveis mas alguns não resistem ao tratamento. Usam apenas o aparelho de dia e podem tirá-lo uma hora antes, durante, e até uma hora depois da refeição. Quanto aos estímulos, são de natureza puramente psíquica e bastante elaborados, do género injustiça e frustração. Posso afirmar-lhe que esta sorte de estímulos é a mais apta a provocar, quando estiverem lá fora, a salutar consciencialização dos ensinamentos que lhes ministramos. Temos um psicólogo especialmente encarregado desta tarefa. É especialista em distribuição arbitrária de recompensas e castigos, protecção dissimulada mas patente aos menos aptos, promessas sempre adiadas de melhoria da situação para os melhores e sabe como ninguém distribuir uma humilhação — a humilhação mais adequada a cada caso — no momento mais oportuno. É o chefe desta secção e o subdirector da cadeia; lamento não poder apresentar-lho mas foi ao continente escolher material para o seu laboratório; é um precioso colaborador, concluiu. Voltámos ao nosso trenó. Tivemos necessidade de procurar os presos para os aparelhar. Encontrámo-los pastando descuidadamente pelas redondezas. Percebi que dois deles haviam adormecido, unidos numa cópula que o director desfez com uma chicotada complacente. Levaram-nos a bom trote para junto das habitações. Quando estávamos a chegar o director disse apologeticamente : São tão bons que só lhes falta relinchar ! Disse isto e desapareceu sem qualquer explicação deixando-me o chicote. Continuei em direcção ao porto com os olhos fitos num sol que antes de falecer de todo, vomitava sangue sobre o mar. Estava pálido... pálido. O preso que trotava mais perto de mim disse a meter conversa : Não te deves esquecer de nos chicotear ! Chicoteei-os e eles relincharam de contentes e em uníssono. Relinchavam: «Ele diz que só nos falta relinchar". Chegamos ao porto. O meu navio ainda lá estava. Parecia entediado depois de uma tão longa espera mas animou-se só de me ver. Encontrei todos os da minha comitiva prontos para o embarque. A comoção própria dos reencontros e das partidas apanhou-me desprevenido de modo que mal consegui articular o meu discurso dirigido a todos os habitantes da ilha deserta que com o meu amigo, o director, à frente, ali estavam para se despedir. À última hora apareceu por ali, porventura à procura de algum preso que se evadira, o guarda meu conhecido. Dirigi-lhe um sorriso mas percebi que não me reconhecera. Volteava engenhosamente no ar o seu chicote e, como via mal, o porto ficou deserto no mesmo instante. Corri para o navio; também ele parecia não se sentir seguro e começou a afastar-se com a lentidão que lhe é própria. Mas via-se que estava ansioso por me ajudar porque me lançou uma escada pela borda da proa na qual fiquei agarrado suspenso sobre o abismo que já o separava do cais. Consegui acomodar-me melhor sobre ela enquanto o navio, rodando sobre si, se apressava a caminho do continente. Sentia-me demasiado enjoado para sair dali. Durante a viagem o sol resistiu ainda muito tempo vomitando sangue sobre mim enquanto eu vomitava sobre o mar...
Fim
Geraldes de Carvalho do meu livro "O caminho"- Lourenço Marques 1974
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