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Autor Tópico: Contos da Cidade Baixa: Necros (3 de 3)  (Lida 2301 vezes)
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NunoMiguelLopes
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Não vou gostar nada do dia de hoje, pois não?


« em: Outubro 06, 2009, 14:45:54 »

Poucaterra, poucaterra. O nosso mais alto pico por escalar, o forte que tínhamos de defender até ao último homem. Vem aí, Carmen. O meu olho esquerdo rebentou, mas consigo vê-lo. Poucaterra, poucaterra.

O Doutor disse-me que planeara a sua reforma com algum tempo de antecedência. Passara cinquenta anos a acordar os mortos e um dia, enquanto se olhava ao espelho e se via confrontado com a sua mortalidade pessoal, pensou “espera aíâ€. Tinha setenta e um anos acabados de fazer, e celebrados com uma tentativa sufocada de apagar demasiadas velinhas num bolo mandado trazer à pressa pelos colegas do Consultório, quando decidiu que queria viver para sempre. Não conseguiu apagar todas as velas, nem com o fôlego nem com o cuspo involuntário, mas formulou à mesma esse desejo. Apesar do tempo se apresentar curto, o coração já dava de si e a mente não tinha a frescura de antes, deitou mãos ao trabalho com renovado entusiasmo.

Quando, quase cinco anos depois, morreu agarrado ao peito e à vista de todo o pessoal do Consultório, ninguém imaginou que o velhote tinha descoberto uma forma artificial de vida eterna, quanto mais uma maneira discreta de infligir a si mesmo um enfarte fatal do miocárdio. Ou que munira alguém lá fora com pás, lanternas e uma carrinha alugada para proceder à sua exumação clandestina assim que a noite descesse as pálpebras sobre o cemitério previamente escolhido devido à sua proximidade com a Cidade Baixa. Onde, para mais, e com fundos do Consultório desviados a coberto duma habilidosa manipulação contabilista, adquirira por inteiro e em saldo dois quarteirões debaixo do viaduto da número sete e os mobilara com tudo o que permitisse um cientista louco gozar uma aposentadoria descansada depois de morto. Ouvi-o explicar em detalhe que encontrara uma forma de recarregar a bateria implantada em todos os necros no lugar do coração para que a vida depois da morte não fosse apenas uma breve e confusa estadia entre aqueles que ainda desfrutavam das alegrias de se ter pulsação. Nunca tendo sido dos maiores apreciadores de café e tendo mesmo de tolerar ao longo de toda a carreira os comentários trocistas dos colegas em relação à sua preferência por chá, qualquer tipo de chá mas, em particular, o de jasmim, o Doutor desenvolveu a ideia de um condutor energético que pudesse ser introduzido no organismo com a adição, a gosto, de um ou mais cubinhos de açúcar. O chá, disse-me ele, era preparado com uma infusão à base de nano-reparadores, pouco mais do que bolor inteligente, que ele cultivava em chocadeiras instaladas em todos os andares do prédio do lado. Mais uma razão para optar por viver o resto da eternidade na Cidade Baixa, onde a podridão que prosperava por todo o lado tinha pernas para andar e conseguia de manter connosco uma animada conversa sobre os méritos da obra de Kafka. E, eventualmente, mesmo ganhar esse debate. Ao teu irmão mais velho, ganharia de certeza, Carmen.

Mas nem tudo eram rosas, disse-me ele, desconsolado. A imortalidade tinha propensão para se tornar maçadora, e deu por si algo entediado após a primeira década, e até frustrado. Porque, acima de tudo era um cientista e seu feito maior, ser capaz de ludibriar tanto a morte enquanto vivo quanto a vida depois de morto, merecia ser reconhecido, no mínimo, pelas publicações da especialidade. Essa comichão, sintoma impossível para quem morrera dez anos antes, tornou-se insuportável ao ponto do Doutor considerar que uma execução sumária às mãos da Ordem era um preço razoável a pagar para achatar os altivos círculos científicos com aquela demonstração viva, à falta de melhor termo, do seu espantoso intelecto.

Depois, contou-me algo que eu já tinha descoberto via Marilyn. O assomo de vaidade mental foi interceptado por um telefonema que o Doutor recebeu a meio da noite, na primeira vez numa dezena de anos que o telefone colocado numa mesa de pé alto ao lado da poltrona favorita tocou. Apesar disso, o velho, como se o esperasse, apenas estendeu o braço e, sem desviar os olhos duma edição encadernada de “Os Três Mosqueteiros†disse “estou, sim?†Na outra extremidade, era o homem da pá, da lanterna e da carrinha alugada. Eu conheço-o como apenas a voz no telefone, explicou-me o Doutor. O meu Controlador nos Serviços Secretos, o mesmo que me indicara na direcção dele. Lembraste de te ter falado nele? “Boa sorte, Roque. Que raio de altura para acordares.â€

Boa-Sorte-Roque fartara-se de ser um mero domador de necros. Estava rouco de tanto dizer “lê este livro, é bom, e depois falamos†e uma vez a missão cumprida, activar à distância o killswitch embutido no hardware dos necros, conhecido entre os Controladores como “o botão das boas-noitesâ€, para facilitar a recolha dos mesmos. Queria fazer algo diferente. Jogar uma chave-inglesa nas rodas dentadas da engrenagem, segundo disse, e lixar umas merdas. Palavras dele, que o Doutor se limitava a transmitir-me. O Consultório andava a acordar pessoas que não tinham dado o nome. Iam parar às mãos do Boa-Sorte-Roque professores primários, donas-de-casa, reformados e até crianças. Era imoral. A natureza das operações destes novos necros perdera toda a objectividade e agora servia propósitos cada vez mais nebulosos. E o homem da pá não estava apenas zangado, contou o velho. Pela voz, estava furioso.

A voz e o Doutor começaram então a desviar necros que, com um clássico da literatura na mão e pouco mais, o Consultório e os Serviços Secretos enviavam para as ruas indevidamente. Homens, como Roque, que já haviam pago a sua dívida à sociedade mas que continuavam a ser reanimados para mais uma missão. Que mereciam a paz do repouso eterno. Ou uma reforma anónima e prolongada algures nas gargantas arquitectónicas da Cidade Baixa. A escolha era deles.

“Deles… e sua, Roque†disse o Doutor, sorrindo.

A eternidade em saquinhos de chá, Carmen. Ou a morte, definitiva e escura. Não foi a primeira vez que um Bata Branca me fazia promessas. Não foi a primeira vez que o Doutor me prometia alguma coisa. Ainda me lembro do sorriso do homem, bem mais jovem, quando me disse que um reanimado não sentia dor. “Quer ver?â€, perguntou-me ele, e depois apunhalou-me uma rótula com um bisturi. A dor naquele joelho é a primeira coisa que sinto quando me acordam. Tão forte que me faz chorar. Não, obrigado.

“A minha oferta estende-se à sua irmã†insistiu ele. “Posso remover os vossos localizadores. Há um na base da sua coluna, Roque. É minúsculo, não dá por ele. Ainda está a funcionar. Muito útil para quem não quer perder os seus animaizinhos de estimação. Os Serviços Secretos detestam quando um necro se extravia. Gostam de saber em tempo real por onde andam.â€

“Então, sabem que estou aqui?â€

“Não†disse o Doutor. “Os geradores Maxwell que instalei num dos meus prédios criam à nossa volta um campo de interferência electromagnética que consigo moldar para ganhos pessoais. Entre eles e as colinas à volta da Cidade Baixa, estamos seguros. Assim que se aproximou, Roque, o meu equipamento interceptou o sinal do seu localizador e levou-o a dar uma volta. O Controlador encarregado da sua missão julga que se encontra neste momento de regresso à baía. E mais importante, posso tornar inertes os killswitches que os Serviços Secretos usam para vos adormecer. Tenho chá de jasmim já engarrafado para os próximos trezentos anos e todos os dias cultivo mais. E a Cidade Baixa não é assim tão má. Vocês cresceram aqui, nem sequer têm de passar pelo período de adaptação. O Consultório nunca vos encontrará. Estarão seguros.â€

Carmen, olhei para o velho de cabelos brancos, barbicha e óculos fundo de copo, enfiado no seu roupão efeminado e nas chinelas quentes e pensei como seria a eternidade preso àquele corpo. Imortalidade assim não era um privilégio. Era um castigo. E o Doutor, por tudo o que tinha feito, merecia-o. E talvez o soubesse. Talvez soubesse que merecia aquele corpo, para sempre agachado na Cidade Baixa, metade do tempo com medo que o encontrassem, a outra metade a desejar ser encontrado. Eu não tenho o mínimo interesse numa vida assim. Vivi a minha o mais depressa possível e sem pensar no futuro. Fiz mal a muita gente, muito possivelmente a toda a gente, incluindo a ti, mas paguei por isso em vida e continuei a pagar depois de morto. Por mim, as contas estão saldadas.

“Pense na sua irmã.â€

Como se eu fizesse outra coisa. És o único pensamento vivo na minha cabeça há tanto tempo morta. Do instante em que me acordam até pressentir aquele zumbido com que à distância me adormecem outra vez, assim que faço o que esperam de mim. Do bom-dia às boas-noites, e nos sonhos escuros e longos do entretanto, és sempre tu, Carmen.

Quando me levantei do sofá, o Doutor pareceu desapontado.

“Já viu o que o meu chá é capaz de fazer†disse ele. E depois, comigo já a caminho da porta: “Se for embora, não o posso ajudar a encontrar a sua irmã.â€

Detive-me.

“Já sei onde a Carmen está†disse, sem me virar. “Assim que me disse que o Consultório introduz um localizador na base da coluna cervical dos necros, usei o seu equipamento do quarto andar para a encontrar.â€

O Doutor olhou para mim, sem perceber. A boca dele mimicou “como?†mas a palavra não saiu. Estava de costas para ele mas vi-o pela câmara de vigilância que o velho escondeu no quadro da Jayne Mansfield. Eu era os olhos da diva. Eu estava dentro da câmara. Eu estava por todo lado. As máquinas dele pertenciam-me e eu sabia do seu plano mestre. Recrutar necros e usá-los contra o Consultório numa guerra secreta. Se eu não tivesse desactivado os protocolos escondidos nos nanóides do chá, seria mais um necro armazenado num dos edifícios em volta a dormir à sombra da número sete, à espera, a ganhar teias, a sonhar, até que o Doutor tivesse suficientes para formar o seu exército e enviá-lo para a guerra pela simples razão de se encontrar enfadado com a eternidade. Não, Carmen. Eu tenho um sonho para nós. E é lindo. E está por pouco.

Estou cego, Carmen. Mas consigo ouvi-lo. Poucaterra, poucaterra… Vem aí. O nosso barco de piratas, contigo ao leme. Não o ouves? Não sentes o chão a tremer?

“Como…?†O Doutor conseguia expressar-se, afinal.

“A Marilyn contou-me.â€

“Como?â€

“Consigo falar com as máquinas.â€

“Mas como?â€

“Não sei†respondi sinceramente. “Acordei assim. Acho que o Consultório não se deu assim tão mal sem o Doutor.â€

“Não!†O velho curvou-se sobre si mesmo e apertou os punhos contra as têmporas. “Nunca foram nada sem mim!â€

Uma a uma, desliguei todas as máquinas escondidas para que nenhuma delas me travasse a saída. Deixei-o ficar com o gira-discos a chorar insignificâncias, e vim embora. A cabeça estava a dar cabo de mim. Uma torneira nasceu-me duma narina, o sangue começou a jorrar para cima da gabardina. Sangue negro. Sangue de necro. Precisava de mais chá. Uma vez morto o vírus que nadava nele, e eu podia inactivá-lo com um pensamento, o chá era bom. Fazia o que dizia na embalagem, e muito mais. Sabia onde encontrá-lo. Primeiro andar. Em garrafões de cinco litros. Trouxe dois, um em cada mão, esperando que fossem suficientes, e saí do prédio aos tropeções.

À minha frente surgiu a paisagem juncada, cinzento escura, da Cidade Baixa. Vi as luzes dos automóveis que rodavam no viaduto não muito acima das janelas apagadas dos prédios do Doutor onde necros dormiam ainda à espera da sua guerra. Incontáveis balões meteorológicos concentravam os raios de luar e brilhavam como olhos flutuantes e curiosos alinhados com a altura das colinas, parecendo pirilampos prodigiosos mas amargurados, presos por uma trela. À minha espera tinha também o Jaguar. Sentei-me no banco de trás e disse-lhe para onde queria ir. O volante rodou sozinho, os pedais subiram e desceram sozinhos e o carro arrancou sozinho comigo lá atrás a emborcar a zurrapa do Bata Branca. Estava cada vez mais perto de ti.

Poucaterra, poucaterra.

Todos os necros têm um localizador, disse o Doutor, e eu demorei um minuto, nem isso, a aprender a tecnologia. Não foi tanto aprender, Carmen. Não sei o que me fizeram mas é mais como se me lembrasse de coisas que nunca soube. Como os nossos implantes funcionam, por exemplo. A neurotecnia que nos traz de volta, sei a função de cada componente. Posso dizer-te a frequência da corrente em todos eles. Finalmente descobri porque realmente nos dão livros para ler quando nos acordam mas deixei o meu no apartamento do Doutor e ler é para otários. Não era o que dizias? E tinhas razão. És esperta por nós dois mas acho que te vou surpreender, desta vez. O teu localizador disse-me onde te encontrar. Assim que percebi onde estavas, pensei “perfeitoâ€.

Artérias residenciais largas e sombrias, iluminadas por lâmpadas de baixa voltagem, desbotaram à velocidade louca do Jaguar. A Cidade Baixa perdia os seus contornos quando o nevoeiro que pressagiava a manhã descia as ravinas para negar aos seus habitantes o prazer da luz quente do sol. Nós sempre gostámos mais da noite, Carmen. Como as prostitutas na calçada que se espantaram assustadas à minha passagem, correndo para longe do caminho do bólide prateado, deixando atrás de si sapatos de salto alto desirmanados, bolsas cor de rosa e pequenos novelos de notas altas, que as putas que operavam abaixo do nível do mar deviam ter outro encanto e saber coisas que as suas congéneres da superfície nem sonhavam.

Disse ao carro que continuasse em frente e que não parasse por nada. Resvalámos em ruelas cheias de crianças que tiveram de interromper o jogo de bola para nos deixarem passar. Imaginei-te a estenderes-me o dedo anelar e a pores-me a língua de fora e a levantares a saia para me mostrares a tua virgínia num acto de desafio antes de, às gargalhadas prenhas de palavrões, regressares ao jogo. Uma Carmen que já não eras tu. O que te teriam feito os Batas Bancas?

Com os estofos a tresandar a jasmim, um dos garrafões tombava quase vazio a meu lado, o volante do Jaguar torceu-se todo para apontar os faróis à estrada velha do sul correndo paralela aos carris cheios de mato que crescia desimpedido do antigo caminho-de-ferro. Passei o apeadeiro entregue à escuridão, os silos da água, os portões enroscados da paragem de nível e, por fim, quase um quilómetro mais à frente, vi-a. A Duquesa da Ferrugem, como lhe chamávamos. Os melhores momentos da nossa vida passados em cima duma velha locomotiva oxidada. A nossa nave espacial, Carmen. Parei o carro e saí.

Vi crianças maltrapilhas a brincar encavalitadas na máquina ferrugenta. Vi-nos, o Roque miúdo e a Carmen refilona, ainda em idade escolar mas sem escola melhor que aquela aonde irmos, com os capacetes militares e óculos de aviador grandes demais para as nossas cabecinhas sujas, a atirarmos pedras aos automóveis que passavam, às outras crianças que tentavam conquistar o nosso forte, às lagartixas e aos pássaros. Estava só a recordar, Carmen. A ver coisas. Tu e eu enquanto crescíamos inseparáveis nos carris do velho caminho-de-ferro e adivinhávamos uma vida à margem de tudo, feita de promessas que o mundo não podia nem fazia tenção de cumprir. Chamei por ti. Nada. O recorte da enorme locomotiva, o nosso barco de piratas, parecia abafar tudo.

Gritei o teu nome outra vez. Dobrei o corpo para a frente e vomitei chá de jasmim sobre o cadáver de um homem estendido a meus pés. Nem tinha dado por ele. O topo do crânio estava estilhaçado e o tipo tinha-se cagado todo dentro do fatinho caro. A tua missão estava comprida e eu tinha pouco tempo para te encontrar. Enjoado, afastei-me uns passos para o lado e encontrei o teu livro caído nas pedras em cima dum tufo de erva má. Deram-te “As Flores do Malâ€.

O sopro nervoso do nevoeiro, aproveitando-se com a agilidade própria de um vírus oportunista dos estreitos instantes duma corrente de ar, trouxe-me de longe o som do teu choro abafado. Chegou-me refogado com uma pitada de esgoto que em certas alturas do ano permeia todo o baldio da zona sul da Cidade Baixa. Mas soube logo que eras tu.

Comecei a caminhar na tua direcção, pisando as tábuas podres e cobertas de giestas enfermas que suportavam os carris abaulados onde nunca víramos um comboio passar. O chá sacolejava-me na barriga. Bebi muito mais do que o meu corpo necrótico conseguia assimilar. Mas senti-me bem. Da hemorragia nasal apenas restavam as manchas escuras no meu nariz e queixo, e nas roupas. A dor de cabeça fora-se embora, a força regressava às pernas e aos braços e eu corria sem dar por isso.

Encontrei-te, Carmen. Estavas de pé sobre os carris, quase dois quilómetros à frente da locomotiva que nos transportou ao longo de toda a infância e metade do caminho da nossa juventude. De costas para mim, a olhar para as luzes da cidade, de pistola automática na mão, o cano encostado a uma madeixa dos teus cabelos e um pensamento mau a escapar-se da tua cabeça. Premiste o gatilho mas eu detive a bala. Recomeçaste a chorar.

“Carmen†chamei.

Viraste-te para mim, pude ver o teu rosto. Igual ao que me lembrava, e diferente. Quando morri, eras uma mulher jovem de trinta e poucos. Quando morreste, ias no bom caminho para os cinquenta e muitos. Restava pouco da miúda descaradona, escondida debaixo da pesada maquilhagem necro que eu desisti de usar há muito tempo porque não funciona realmente. Mas eras tu. Aproximei-me.

“Roque…?†Atiraste a arma para longe. Deixei a bala ir. O disparo abafou o teu grito de revolta, mas só por um bocadinho, e depois abracei-te. Os nossos dois corpos frios na noite. Repetiste o meu nome.

“Estou aqui.â€

“Estou tão cansada!â€

Caíste de joelhos na linha e eu fui atrás de ti. Não te larguei. Na minha mente, ouvi o zumbido que vinha chegando, sabendo que era para ti. Tinhas concluído a tua função e eles iam-te desligar. Podia tê-los impedido, bloqueado o sinal, mas olhei-te nos olhos e fiz-te uma última promessa de repouso eterno.

“Carmen†disse eu, e adormeceste para sempre.

Deitado a teu lado nos trilhos, como quando fomos putos, virei a minha atenção para a Duquesa da Ferrugem. Era uma máquina grande. Vinte e nove metros de comprimento. Cento e doze toneladas de metal há muito cristalizado aos carris. Motor a vapor que não ia a lado algum em quase cem anos, mas disse a mim mesmo que era possível. Posso falar com qualquer máquina. Convencê-la a fazer o que quero. Estava apenas a aplicar a filosofia necro à Duquesa. Como paga, as facas voltaram à minha cabeça com ferocidade redobrada.

A dois quilómetros de nós, senti-a mexer-se, Carmen. Juro-te. As válvulas impulsionaram-se para a frente esmagando os ratos aninhados atrás delas. Sopraram para dentro dos cilindros onde aranhas do tamanho dum punho tinham fixado residência. Os braços de metal ligados ao eixo foram empurrados e fizeram mover as varas das grandes rodas. O ruído de todo aquele metal a ganhar vida ecoou como um grito triste pelos baldios. As rodas da Duquesa da Ferrugem moeram as ervas e as pedras caídas sobre os trilhos.

Poucaterra, poucaterra, poucaterra.

A minha boca sabe a jasmim e a sangue. Os meus ouvidos rebentam internamente e estou quase a perder os sentidos. Ainda não. A Duquesa precisa de ganhar mais balanço. Agarro-me à vida agarrando-me a ti e faço um derradeiro esforço. Não restará muito de nós para trazerem de volta. Poderemos dormir. O meu último pensamento és tu.

Carmen.



»»»

parte 1  http://www.escritartes.com/forum/index.php/topic,24728.0.html
parte 2  http://www.escritartes.com/forum/index.php/topic,24729.0.html
« Última modificação: Outubro 07, 2009, 13:15:39 por NunoMiguelLopes » Registado
Goreti Dias
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« Responder #1 em: Outubro 06, 2009, 17:44:20 »

Imaginação a rodos! Excelente!
Beijo
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Bom dia. Para todos um FigasAbraço
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Sejam bem vindos às escritas!
Agosto 14, 2023, 16:52:48
Boa tarde!
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Bom Ano! Obrigada pela companhia!
Dezembro 30, 2022, 19:42:00
Entrei para desejar um novo ano carregado de inflação de coisas boas para todos
Novembro 10, 2022, 20:31:07
Partilhar é bom! Partilhem leituras, comentários e amizades. Faz bem à alma.
Novembro 10, 2022, 20:30:23
E, se não for pedir muito, deixem um incentivo aos autores!
Novembro 10, 2022, 20:29:22
Boas leituras!
Novembro 10, 2022, 20:29:08
Boa noite!
Setembro 05, 2022, 13:39:27
Brevemente, novidades por aqui!
Setembro 05, 2022, 13:38:48
Boa tarde
Outubro 14, 2021, 00:43:39
Obrigado, Administração, por avisar!
Setembro 14, 2021, 10:50:24
Bom dia. O site vai migrar para outra plataforma no dia 23 deste mês de setembro. Aconselha-se as pessoas a fazerem cópias de algum material que não tenham guardado em meios pessoais. Não está previsto perder-se nada, mas poderá acontecer. Obrigada.

Maio 10, 2021, 20:44:46
Boa noite feliz para todos
Maio 07, 2021, 15:30:47
Olá! Boas leituras e boas escritas!
Abril 12, 2021, 19:05:45
Boa noite a todos.
Abril 04, 2021, 17:43:19
Bom domingo para todos.
Março 29, 2021, 18:06:30
Boa semana para todos.
Março 27, 2021, 16:58:55
Boa tarde a todos.
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Boia noite para todos.
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Boa noite feliz para todos.
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Bom domingo para todos.
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