"The Wire: A Escuta" - Os Autores

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NunoMiguelLopes:
David Simon, o criador da série, veio do mundo do jornalismo precisamente de Baltimore. Repórter criminal do “The Baltimore Sun”, ao longo duma dúzia de anos a sua paixão pela profissão foi colidindo com a viciação das instituições municipais e decadência progressiva da vida urbana. Publicou dois livros amargos sobre a sua experiência antes de, desiludido com o jornalismo corrente, se dedicar ao guionismo. Não por achar que a ficção, hoje em dia, é a melhor forma de fazer chegar às pessoas narrações fidedignas sobre a realidade, mas para que certas histórias, que de outra forma permaneceriam ocultas, possam ser contadas e alcançar um público mais abrangente. Produtor e argumentista de “Homicide: Life on the Streets”, série baseada nos seus livros e produzida por Barry Levinson que passou cá no segundo canal (e mais tarde na TVI às tantas da madrugada), fartou-se das discussões criativas com os executivos da NBC e tentou a sorte no canal HBO, para o qual criou e escreveu (com o co-autor Ed Burns) “The Corner”, sobre os efeitos nefastos da cultura da droga numa família de Baltimore. Nessa série multi-premiada do ano 2000 trabalharam muitos dos actores que viriam a engrossar o elenco de “The Wire”, como são os casos de Lance Reddick, Clake Peters e Corey Parker Robinson, por exemplo.

Continuando a viver em Baltimore e a testemunhar os efeitos da corrupção a alto nível nas ruas, Simon pensou então em “The Wire”, com o intuito de, nas suas palavras, “provocar uma zaragata” com os poderes instalados na sua cidade. Com um período longo de pré-produção, cheio de avanços e recuos, como é típico do meio televisivo, a HBO finalmente deu luz verde e a produção propriamente dita arrancou em 2002. Como parceiro, Simon trouxe consigo Ed Burns, antigo detective de Homicídios de Baltimore com quem escrevera o livro “The Corner: A Year in the Life of na Inner-City Neighborhood” e que conhecia melhor que ele os meandros dos departamentos de polícia. Tanto assim era, que Burns abandonou essa actividade para se tornar professor.

Juntos, com o apoio do HBO, criaram uma história amargurada sobre a dura realidade de Baltimore, vista desde o nível das ruas aos mais alto gabinetes dos cargos públicos, do toxicodependente ao senador. Com alguma ironia e muita honestidade, denunciam o estado das coisas na cidade que sentem ser ainda deles. A obra que fica acaba, contudo, por abordar temas que problemáticas que são universais. Principalmente pela sua humanidade, as drogas, o tráfico, a corrupção, as relações pessoais, a violência, o sistema de justiça, a amizade, a ética, são temas que tocam todos os quadrantes sociais e culturais, não sendo de maneira alguma necessário ter-se uma experiência americana para descobrir, muito facilmente até, tiques institucionais existentes também na nossa realidade sócio-política.

“The Wire” fica assim para a história como um tratado antropológico, um manual de sociologia aplicada às comunidades urbanas, um documentário honesto sobre a cultura do crime e o fracasso a toda a linha da celebrizada “guerra contra as drogas”, que não passa duma guerra às classes mais vulneráveis da sociedade, com uma imparcialidade que nem sempre se vê no jornalismo dito sério, quanto mais em produtos de ficção e entretenimento. “The Wire” apenas mostra as coisas como estas são. Não toma partidos nem empresta glamour a coisa alguma. Não é moralista. Quem vê a série, e gosta, depressa é compelido a tirar as suas próprias conclusões sobre tudo o que ela mostra. Torna-se tão fácil detestar as traficâncias daqueles que detêm altos cargos públicos como aquelas dos hoppers que à força da bala dominam o negócio da droga nos bairros sociais, podemos antipatizar visceralmente com as tácticas torpes do Comissário de Polícia com a mesma prontidão com que os assassinatos e a violência nos causam impressão. Omar, o assaltante de traficantes de droga é tanto um herói quanto McNulty, mas um e outro existem em lados diferentes da barricada. Se é que esses lados existem, realmente.

A série, que pega no que é comummente descrito como o trabalho policial mais chato de todas, a vigilância, nunca alcançou grandes audiências, mesmo para os níveis do canal HBO. As três primeiras temporadas foram quase e só privilégio da crítica que se rendeu em massa e de um movimento de culto que passava a palavra a quem não conhecia “The Wire”. Simon admite que a série, pelo seu ritmo paciente e a sua densidade literária, não era das que mais naturalmente recrutasse novos públicos a meio. Quem tentava entrar a meio de um episódio, qualquer episódio que fosse, era abalroado por dezenas de personagens e múltiplos sub-enredos. Simon sempre defendeu que a série era um produto exigente. Cada diálogo tinha importância para a história e por vezes, uma coisa que se dizia num episódio apenas se desenvolvia noutro, dois ou três à frente. E quando as personagens estão caladas, um espectador chegado a meio da história não estaria atento aos seus trejeitos, aos seus suspiros e às suas expressões próprias, partes integrais do guião e pistas fundamentais para a história no seu todo. “The Wire” exige a nossa atenção, toda a nossa atenção. Exige, tal como aos polícias o fazem no ecrã, que escutemos cada palavra dita pelos intervenientes, tal como aos criminosos que estejamos vigilantes e, a esse nível, é bastante mais exigente que o típico produto de ficção televisiva. Por outro lado, a recompensa para o espectador é, também ela, incomparavelmente superior.

A HBO, com quem tenho o desgosto de ter cancelado “Deadwood” antes da prometida quarta e última temporada, apesar das más audiências manteve “The Wire” no ar e permitiu a Simon concluir a sua história. Valeu para esse efeito o recrutar de escritores consagrados na área do romance policial, como Dennis Lehane (autor de “Mystic River”, por exemplo), George Pelecanos (autor de “Shame the Devil”), Richard Price (autor de “Clockers”) para escreverem os guiões de alguns episódios e servirem de consultores criativos da série. A qualidade da escrita vai buscar a sua força não só aos enredos bem estruturados (muito para lá do entediante Bem contra o Mal), mas principalmente à linguagem cuidadosa e densamente pesquisada ou, no caso de Simon e Burns, que são de Baltimore, experimentada pessoalmente. As personagens, soando reais, validam a história. Os cenários, sendo toda a série gravada em Baltimore, não poderiam ser mais autênticos. Muitas das personagens co-adjuvantes são mesmo figuras conhecidas dos habitantes da cidade. David Simon diz que não arranjou amigos na Polícia, nem na City Hall, nem no sistema educativo ou na imprensa de Baltimore ao ter produzido a série, mas vêem-se antigos políticos a fazerem a sua perninha como actores. Desde um ex-Governador a um ex-Comissário e até antigos polícias, alguns dos quais inspiraram as personagens da série, como Jay Landsman, para citar apenas um exemplo de uma pessoa que existe realmente, e algumas outras personalidades trabalharam ainda atrás das câmaras como consultores.

“The Wire: A Escuta” é uma obra de culto provocadora que tentou fazer elevar os padrões do género, embora David Simon se recuse a chamar-lhe uma série policial. Com razão, porque vai muito além dessa etiqueta. É um produto para quem espera mais das suas séries favoritas e muitas vezes não obtém o que deseja. Funciona muito melhor se visto do princípio ao fim e por isso a sua longevidade nas prateleiras das lojas de DVD’s será superior ao das séries normais. Não me refiro ao seu sucesso de vendas, obviamente, porque não é uma série tºao famosa quanto outras, nem é uma série que nos conforte sobre o mundo em que vivemos, ou nos permita escapar dele durante umas horas. “The Wire” é subversiva na mensagem e no conteúdo tanto quanto o foi nos seus processos criativos e de produção. É documental no melhor sentido da palavra. É estilizada, apenas porque não é normal a ficção televisiva dar-se a tais trabalhos para parecer real. O normal é o oposto. “The Wire” é contrária a tudo o que seja simplificações narrativas e maquilhagens temáticas. Não é um mistério a resolver no fim de cada episódio. Não é uma história em quarenta e quatro minutos. É uma história em cinco capítulos de treze horas cada um. E, muito importante, lembra-nos que a história é o que mais interessa.

Nunca deixando de ser ficção e entretenimento, “The Wire” é também um espelho inclemente da sociedade moderna e das filosofias contraditórias da vida em comunidade. Por ser tão abrangente na temática escolhida, é capaz de falar ao coração das audiências em quase todo o mundo moderno. É ambiciosa a esse ponto, quer que pensemos, não apenas que sintamos. Embala-nos numa crueza panorâmica da realidade, e isso não será para todos os públicos. Mas o seu valor é quase, se não completamente, pedagógico pela sua autenticidade meticulosa e sem concessões. “The Wire: A Escuta” é um momento raro na história da televisão, não só no género de ficção, onde está acima de quase toda a produção disponível ao público, mas também porque consegue ser um fenómeno sociológico de enorme valia até para aqueles menos inclinados a gostar deste tipo de entretenimento.

anamarques:
David Simons e Ed Burns são os grandes heróis da série. Merecem todo o respeito e admiração do público. Aposto que iriam adorar ler esta tua resenha. Mereciam lê-la (em inglês, claro).

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