anamarques
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« em: Abril 21, 2010, 16:13:17 » |
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- Bom dia Sr. AmÃlcar, como estamos nós hoje? Esse soninho foi gostoso? Ah já está sentado, deixe-me abrir estas cortinas que hoje o dia está tão lindo, o Sol parece rir-se para nós, os passarinhos cantam que nem doidos... - Nós não sei, mas o Benito vejo que está muito...primaveril. - Sr. AmÃlcar dormiu mal? Já vi que sim. Tomou a pÃlula? - A pÃlula, a cápsula, o comprimido, a carteira de pó... Só falta você querer aplicar-me um clister. - Sr. AmÃlcar, as suas insónias são terrÃveis, eu sei. Deixam-no com um humor desgraçado pela manhã. Mas veja lá se não se sente já melhor com esta luz encantadora... - Sim, claro, vejo tudo por outro prisma, Benito, muito obrigado. O chá está muito quente. Não consigo beber assim. -Ai que cabeça a minha, tem razão. Esqueci-me de o arrefecer. Deixe cá ver a chávena. Eu volto já. Vamos hoje tratar das suas unhas dos pés. Encontrei uma lima excelente que vai fazer o serviço que é uma beleza. Não dói nada. E ficam os cantos bem arredondados e macios e as unhas não voltarão a encravar... - Benito, mais do que um enfermeiro, é um poeta. Capaz de transformar cada detalhe de higiene pessoal numa ida ao parque. - Faço tudo com muito gosto. E depois ganho amizade à s pessoas. O senhor para mim... - Sim, sim, vá lá que ainda me molha a alcatifa e esta tem valor sentimental. - Quando voltar quero ouvir a história da Carla Cortesão. - Bote-lhe uma folha de hortelã. - Onde? -No chá, onde haveria de ser?
- Ora aqui está o cházinho com a folhinha do bom cheirinho. - O gato já entrou? - Não. Ele já vem. Está um dia tão lindo. - Os gatos andam de noite. Dormem de dia. Mais ou menos como eu. Se pudesse andar e dormir de dia... - Estamos ácidos hoje, Sr. AmÃlcar? - Você também? - Ora, não desconverse. E então a Carla, a Carla Cortesão? - Carla Cortesão... Mas voltando ao assunto de há bocado... - Qual assunto? - Se não me interrompesse seria esclarecido mais depressa. - Oh eu não tenho pressa, sr. AmÃlcar, temos o dia todo. -Pois aà é que divergimos. Você tem. Eu não sei que tempo terei de sobra. Que tempo pode ter um homem com 110 anos, Benito? - Pois, todo o tempo do mundo, até prova em contrário. - Agora também é filósofo, não querem lá ver! - E cantor, Sr. AmÃlcar, a minha mãe adorava ouvir-me cantar o fado. Então quando ficou acamada como o senhor, chegava a cantar dez fados por dia. - Espero que de noite se contivesse, por causa dos vizinhos. - Claro, era só de tarde e quando chovia, que era quando me vinha à alma a tristeza do fado. Aquela tristeza impregnada de destino tal como a cantou a Amália. - Você faz-me lembrar a Amélia das torres do Técnico. - A Amélia das torres? A senhora que vê os prédios altos a caminharem com ela? - E o Sol e a Lua. Aquilo é poesia à solta, que ela não consegue aprisionar nas folhas de papel e lhe sai da boca para fora. Toda aquela construção, a sua história é poesia em estado bruto. A Lua que cai em cima do carro da amiga só porque ela está lá dentro... - E o que tenho eu em comum com essa senhora, digamos, com um parafuso a menos? - Não se ofenda, nem a ofenda. Ela é uma senhora. - E a Carla Cortesão? - É pena é que interrompa tanto. Se interrompesse menos seria tudo mais fácil. - Isso é porque sou fã das suas histórias. Ontem falou-me da Carla Cortesão e até sonhei com ela. Nem sei quem é, mas vi a Carla Cortesão. Toda vestida de negro, muito triste, muito magra, até acordei sobressaltado. - Você sonhou foi com a Mariza. E também eu acordaria sobressaltado se sonhasse com ela. - Ai Sr. AmÃlcar, não me diga que não aprecia a nova diva do Fado! Aquilo é uma dádiva que nos enviou o AltÃssimo para nos consolar pela perda da Senhora Dona Amália. - Sim, sim, sem dúvida, Benito, não se abespinhe. - Pronto, está bem, vamos ao que interessa, se estiver a magoar o pezinho diga, mas vá contando a história da Carla Cortesão que não me aguento de curiosidade. - A Carla Cortesão, a Carla Cortesão...? Que Carla Cortesão? - Que Carla Cortesão? Que Carla Cortesão? Não me assuste Sr. AmÃlcar, eu sei que o senhor está velhinho, muito velhinho vá, mas nunca, nunca deu sinais de fraca memória. Não vai agora a ficar esquecido. O Senhor tem uma memória de elefante, já me contou a história da sua vida, e da sua famÃlia toda nestes seis meses que aqui trabalho. - Benito, não conheço nenhuma Carla Cortesão. Páre com o histerismo. Eu nunca lhe falei em Carla Cortesão. Não é Carla Cortesão. Não há nenhuma Carla Cortesão. Nunca houve nenhuma Carla Cortesão. Eu disse Clara. O nome dela é Clara. Clara Catalão. E isso é um pormenor muito importante. De facto o nome dela é a história toda. - Peço imensas desculpas, Sr. AmÃlcar. Enganei-me, pronto, cabeça de alho chocho, já a minha mãe me dizia, Benito vê lá se assentas essa tua cabeça de alho chocho. Baralho muito os nomes. - Não pode Benito. Os nomes não. O nome de uma pessoa é um pilar crucial da sua existência. É quem ela é. Não lhe pode trocar o nome. Clara Catalão foi uma pessoa que ficou sem nome muito tempo. Roubaram-lhe o nome durante muito tempo e com isso também lhe roubaram a vida. - Foi assassinada? - Sim e não. É uma longa história. Não sei se consigo voltar a entrar nesse poço de horror. -Uma história de horror! Até já estou arrepiado... - De horror, mas também de ficção. - Não é uma história verdadeira? Ela nunca existiu? - Existiu, existiu. Mas a realidade por vezes não está ao alcance da nossa compreensão. A ficção tem de dar uma ajuda para colmatar as falhas, as pontas soltas e por vezes para maquilhar a verdade. Porque temos de ser poetas fingidores para fingir a verdadeira dor. Dá-nos a distância para poder sobreviver ao horror que se descreve e que no fundo não pode ser dito totalmente, Porque de facto não há palavras para dizer o indizÃvel. Pensar o impensável. Recorre-se à ficção. Faz-se de conta que tudo o que se passou foi uma espécie de filme. Permite-nos uma certa distância. Permite-nos respirar. De outra forma a realidade cairia avassaladora sobre o nosso peito. - Nosso peito, salve seja, Sr. AmÃlcar de tanto fazer troça de mim também já aprendeu a falar na primeira pessoa do plural. - Sim, touché, Benito. Pode ser o princÃpio duma bela amizade. - Sr. AmÃlcar...
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