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Autor Tópico: Diplomacia no Rivungo (parte II e última)  (Lida 2316 vezes)
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Antonio
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« em: Março 04, 2008, 14:32:52 »

Este é o sexto artigo de uma série em que escrevi sobre as minhas experiências em Ãfrica

Nota prévia:
Este texto baseou-se em mais um episódio ocorrido durante a minha permanência de dois meses (Outubro e Novembro de 1974) como comandante interino do Destacamento de Marinha do Cuando, localizado no Rivungo, Cuando-Cubango, Angola. É o quinto desta série. Antes, coloquei em exibição:
“Sobrevoando a savana"
“O cortador de carnes verdesâ€
“Cena de caça no Bambangandoâ€
"Diplomacia no Rivungo (parte I)"


Partimos às oito. Só o Neto, o sargento, o Lima e outro grumete ficaram em terra. Cobrimos a metralhadora Oerlikon, a única arma pesada que havia a bordo, com um pano branco e o João ficou de se meter debaixo dele quando estivéssemos perto do local onde a lancha abicaria. Todos tínhamos armas, mas escondidas. Atamos um pano branco a uma vassoura para acenarmos, dando assim sinal de que a nossa presença era pacífica.
Ao fim de cerca de uma hora e meia de navegação estávamos bem perto do local combinado.
De repente avistamos dois homens. Começamos a agitar o pano da vassoura.
O João escondeu-se com a arma preparada para fazer tiro de rajada.
Dei ordem ao cabo Zé para abicar.
Paramos.
Já havia cinco ou seis tipos à vista.
Mandei baixar a prancha da frente da lancha. Atravessei-a e fui para terra. Seguiram-me dois homens. Aquilo já era território zambiano.
De repente já não eram cinco nem dez, nem quinze.
Estariam ali uns vinte "inimigos" ("ex-inimigos", felizmente). Mais tarde disseram-me que escondidos estariam mais uns trinta polícias da Zâmbia para ripostar em força, caso tivéssemos uma atitude hostil. Mas nós tínhamos a noção do risco que corríamos. Portamo-nos bem.
Cumprimentos, abraços, sorrisos, e foram embarcados dez homens. Eles queriam que fossem vinte, mas entendi que seria gente a mais. Comprometi-me a vir buscar mais dez passados cinco dias. Era preciso saber como as coisas iriam correr no Rivungo.
O chefe do grupo era um rapaz novo, uns vinte anos, dono de um olhar vivíssimo com aquele brilho que só as pessoas muito inteligentes tem. E era dinâmico, também. E sensato. O nome de guerra era comandante Cow-boy. Falava bastante bem português. Uns meses mais tarde, já em Luanda, li num diário que fora morto aquando de um ataque da UNITA ao posto do MPLA de Serpa Pinto, no qual se encontrava. Tive pena do rapaz!
Mas havia um problema a resolver.
Os “turras†estavam todos armados com uma Kalachnikov, a metralhadora soviética exportada para todo o mundo. Um deles tinha um lança-foguetes. Só o chefe tinha uma pistola. Vestiam uma farda verde-azeitona escura (não sei se existe esta cor mas acho que dá para imaginar). Nós estávamos com camuflados e G3´s. Eu tinha também uma pistola Walter. Ainda tenho uma foto com uma Kalach e ao meu lado o comandante do grupo com a minha G3.
Chamei de lado o Cow-boy e disse-lhe:
- Caro amigo! Há uma situação que é de alto risco. Se vocês forem armados para o Rivungo, estando-o nós também, a possibilidade de haver tiroteios é enorme.
Ele escutava-me com toda a atenção. Os olhos bem abertos. Estava a perceber tudo, por isso continuei:
- Proponho-lhe uma coisa: quando chegarmos à aldeia, vocês entregam-nos as armas que ficarão guardadas no paiol da Administração de Posto. E porquê vocês e não nós? Porque ainda é Portugal que detém a soberania sobre Angola. No dia da independência ou antes, se nós nos retirarmos de cá, o que é o mais provável, as armas ser-vos-ão devolvidas e a segurança será da vossa responsabilidade. Até lá, será nossa.
O jovem negro fez uma longa pausa.
Claramente não estava à espera daquela proposta.
Mas eu não tinha dúvidas, como aliás se provaria mais tarde, que tinha razão.
E, felizmente, o rapaz teve o bom senso de perceber bem a gravidade do problema e respondeu:
- Sim! Estou de acordo.
Eu respirei fundo e ele, quasi imediatamente, começou a falar com os seus homens sobre a nossa decisão.
A viagem demorou outra hora e meia (como seria de esperar, já que o rio pouca corrente tinha). Foi animada com conversas, fotografias, risadas, vivas a Angola e a Portugal.
Um “turraâ€, no entanto, desde o início da viagem que vinha a ler um livro fininho, muito concentrado e sem entrar na animação geral. Aproximei-me dele e perguntei-lhe o que estava a ler. Sorridente nos seus dentes brancos mas desalinhados, mostrou-me uma gramática de português e comentou numa linguagem dificilmente entendível:
- Para falar com o povo preciso de saber bem português.
Fiquei tocado. Dei-lhe uma palmada nas costas e disse:
- Fazes muito bem! Continua!
Quando chegamos ao Rivungo uma multidão estava à nossa espera. Nem sei donde saiu tanta gente nem como a notícia se propagou tão velozmente. O administrador Lebre entrou para a lancha e deu as boas vindas como entidade civil mais destacada (a malta pensou em tudo).
Logo lhe disse que fosse abrir as portas do paiol para guardar o armamento “terroristaâ€.
Pedi ao Cow-boy para seguirem o Sr. Lebre e depois ele arrumaria as armas e ficaria com as chaves.
Como disse, esta decisão foi de grande importância. Alguns dias mais tarde, e sobretudo depois de ter vindo o segundo grupo, alguns menos garbosos guerrilheiros começaram a beber uns copitos a mais e, sobretudo à noite, lançavam frases provocatórias para os meus homens que estavam de sentinela. Sim! As medidas de segurança começaram a ser levadas mais a sério.
- Sr. Tenente! Estes filhos da puta estão a provocar-me e a insultar Portugal! Eu ainda lhes mando uma rajada que os fodo a todos!
- Calma, Nunes! Lembra-te que eles estão desarmados e tu estás armado. Tens de ter auto-controle – disse, procurando sossegar o moço.
- Tem razão, Sr. Tenente, mas às vezes quasi que me passo.
Felizmente os conflitos não passaram deste e de alguns casos similares. O meu argumento era sempre o mesmo.
Voltando ao dia da chegada com os dez guerrilheiros a bordo, o Cow-boy perguntou-me se podia fazer uma sessão de politização (era a expressão usada) para a população, na manhã seguinte. Pediu-me também para improvisar um palanque.
Aceitei! Pois se eles tinham querido ir para lá fazer propaganda…
Estive a assistir ao comício que tinha imensos assistentes. As palavras proferidas foram sensatas e propícias a gerar um bom ambiente. Fiquei satisfeito.

Passadas umas duas semanas sobre este acontecimento, e em mais uma luminosa manhã de Novembro, começou a ouvir-se um barulho estranho. A pouco e pouco esse ruído foi-se aproximando até que alguém gritou:
- É um heli!
E poisou no ponto de encontro das duas “avenidas†do Rivungo. De lá saíram um oficial da Marinha que eu conhecia da Messe dos Oficiais e um do Exército.
- Foi daqui que mandaram uma mensagem a perguntar se podiam ir buscar uns soldados do MPLA? – perguntou o capitão-de-fragata.
- Sim! Fomos nós! Mas a questão foi resolvida nesse mesmo dia. Não havendo ordens superiores, decidimos nós o que fazer. Estão a ver aquele homem ali? E aquele acolá? E aqueles dois junto daquela casa? São guerrilheiros! – disse num tom firme.
- E tem corrido tudo bem? Quantos homens estão cá? – perguntou o major do Luso.
- Está tudo controlado. Trouxemos vinte – retorqui.
Mais um bocado de conversa, uma voltinha pela terreola, uma ida ao destacamento onde ninguém estava com farda.
- Peço desculpa de ninguém estar fardado, mas as condições climatéricas aqui recomendam que as pessoas andem mais à vontade – procurei justificar-me.
- Não há problema nenhum – disse o visitante da Armada.
Mais umas tretas e lá se foram com a missão cumprida.
- Quinze dias depois! – rimo-nos todos com a eficácia dos superiores.
Deixem-me fazer um aparte para dizer que o oficial de Marinha que nos foi visitar nunca chegou a regressar a Portugal. Uma noite, em Luanda, foi assassinado com dois tiros nas costas. O corpo só foi encontrado na manhã seguinte. Questões de saias com mulatas, foi o que constou. Era casado e tinha uma filha que eu conheci pois toda a família estivera bastante tempo na messe.

E com esta conversa toda esqueci-me da Rosa. Ou melhor, não esqueci, pois uns dias depois da chegada dos “turras†fui falar com o Lebre para se registar a bebé como filha do tenente Vieira.
- Ó Sr. Tenente! É melhor esperar mais algum tempo para vermos se a rapariga é mulata. Pode não ser filha dele.
Eu ainda tentei rebater o administrador, mas ele estava tão renitente que cedi.
E acabou por nunca mais ser feito o registo. Não sei se isso ajudou ou prejudicou a Rosa e a filha nos meses e anos que se seguiram. Ou se foi indiferente. Mas ainda hoje tenho a desagradável sensação de não ter cumprido uma promessa.

Finalmente, em finais de Novembro, chegou um camião para nos levar de regresso a Luanda.
Fizemos uma pequena cerimónia de arriar a bandeira, já bastante rota e debotada, despedimo-nos da malta do Exército, do Lebre, dos agentes da PSP, do outro “pideâ€, que o era para ter emprego e não por convicção, da miudagem, enfim…um pouco comovente.
Uma velhinha que me lavava a roupa todas as semanas chegou-se a mim a chorar e disse:
- Sr. Tenente! E agora o que vai ser de nós sem a tropa portuguesa?

(escrito em 3 de Setembro de 2005)
« Última modificação: Março 05, 2008, 09:38:10 por Antonio » Registado
Goreti Dias
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« Responder #1 em: Março 04, 2008, 20:31:28 »

Uma descrição primorosa, um recordar ou um ensinar a vida que foi no Ultramar...
Um  abraço
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Goretidias

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britoribeiro
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« Responder #2 em: Março 05, 2008, 12:34:07 »

A narração é excelente, pelo detalhe, pelo ritmo. Senti-me levado até ao Rivungo como espectador de mais um episódio da guerra colonial.

Abraço
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Antonio
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« Responder #3 em: Março 07, 2008, 14:53:04 »

Obrigado pelas visitas e pelas palavras aqui deixadas
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Obrigado, Administração, por avisar!
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Bom dia. O site vai migrar para outra plataforma no dia 23 deste mês de setembro. Aconselha-se as pessoas a fazerem cópias de algum material que não tenham guardado em meios pessoais. Não está previsto perder-se nada, mas poderá acontecer. Obrigada.

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Boa noite feliz para todos
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Olá! Boas leituras e boas escritas!
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Boa noite a todos.
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Bom domingo para todos.
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Boa tarde a todos.
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