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Autor Tópico: O ANJO E A PUTA  (Lida 1419 vezes)
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Vitor da rocha
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« em: Junho 20, 2010, 01:26:26 »

O ANJO E A PUTA

3º

Foi então que os varões da aldeia, uns já meio secos, outros ainda com a seiva toda, desaparecida a correia que os segurava, caíram em cima dela que nem moscas no mel, especialmente depois de o primeiro espalhar a boa nova de que a porta estava aberta. E esse foi o pastor, de seu nome Albano, sem mulher desde que a sua ficou em carvão, mais esturricada que chouriço na brasa, no incêndio da casa ateado pelo filho mais novo, curioso por apalpar as labaredas das giestas na lareira e sem medo de mijar na cama, como os pais o ameaçavam se mexesse no fogo. Tinha ela ido ao quintal arrancar umas couves prà sopa quando sentiu o cheiro da madeira queimada e, ao virar-se para deitar uma olhadela na tenção de descobrir a origem, já só vê as línguas de laranja e o fumo a assomarem à janela, como a dizerem-lhe daqui ninguém nos tira. A berrar enquanto corria para dentro, ainda subiu as escadas no fito de salvar o miúdo, mas as paredes de estuque pareciam petróleo a atiçar as chamas. Lá ficaram os dois, e o resto da filharada escapou porque, mais velhos, jogavam ao pião e à pedrada na rua com seus pares e os dois mais crescidos seguiam o pai ao lado dos cães de coleira de pregos, a aprender o ofício de guiar o rebanho, a fermentarem a mistela de irrequietude da sua mocidade com a resignação necessária à solidão de pastor. Sete catraios ficaram na mão do pastor, duas donzelas e cinco pintos. As miúdas, verdes e a ressumir leite como as bêberas por amadurecer, mas encostadas uma à outra, lá começaram a governar a casa, para onde o pastor os mudara, a apresentar a ceia ao pai e irmãos, e a lavarem meia-dúzia de peças uma vez por semana nos lavadouros da Fonte do Olmo. Apiedadas delas, não raro recebiam a ajuda das matronas, enquanto eram pasto de comiseração, coitadinhas, tão novas e sem mãe, mas vão dando conta do recado, se não fossem elas que seria feito do pastor e dos seus irmãos?
Pois foi este pastor, transformado em ilha de solidão, sem um carinho nem amparo de mão mais doce que a sua, sem uma leiteira onde verter seus líquidos, que teve a ventura de ser abençoado pela graça da Maria Grila, que com ele iniciou seu ministério de oferecer regalo e redenção a tantos que pelo destino tinham sido marcados a serem apenas bestas de carga e trabalhos, o gozo interdito, por reservado para os ditosos. O acaso quis que se encontrassem no meio do monte, ele a comandar, como sempre, o rebanho, e ela a arrebanhar uns feixes de giestas e galhos secos de carrascos e pinheiros para acumular na loja, reserva para o Inverno, como fazem as formigas. Perante o olhar esfaimado e triste que ele lhe lançou, sabendo-o a pão e água há muitos tempos, desde o passamento da finada, de cão escorraçado pela sorte, envolveu-a tão grande compaixão que não teve mais nada senão deitar-se no chão, levantar as saias e oferecer seu campo para nele o pastor se estender, lavrar e gradar e, por fim, abrir a torrente de águas brancas e salgadas, dentro de si anos e anos represadas. Nesse entarcecer, já com o lusco-fusco a lançar a manta sobre a terra, Maria Grila recebeu, pelas mãos do filho mais velho do pastor, um cântaro de leite, em jeito de paga e gratidão. E, assim, foi recebendo saqueados de batatas, réstias de cebolas, garrafões de vinho e azeite, sempre no segredo da noite, senhora de confiança para actos que não se querem desvirtuados pela luz crua do dia e do olhar malévolo de estranhos, ofertas vindas de todos os quadrantes e mãos, de remediados e de outros sem terem onde cair mortos, que a Grila não fazia distinção pelas posses de cada mendigo que a mão lhe estendia pedinchando um corpo para nele descansar.
Primeiro começaram por ser os sem-mulher, viúvos, solteiros, os que batem com o nariz na porta fechada da mulher, calcorreadores de caminhos, ganhões que vinham ceifar o trigo e o centeio, pedreiros do arco da velha para erguer casa de açambarcador de terras ou negociante, tendeiros, ciganos e marranos, de tralha na carroça, estacionados em palheiro abandonado, e depois vieram os outros, que, amarrados à saia da mulher, dali não sabiam sair para comer em tigela alheia, habituados à mesma sopa desenxabida de todos os dias, até que Maria Grila os convidou a entrar e a servirem-se, a provar mariscos no lugar das batatas cozidas com grelos, suflês em vez de migas de alho, e um dia na vida serem servidos como reis.
Maria Grila cumpria seu ministério com devoção e ganância nenhuma, que pouco era o ganho, os restos que a terra dava a seus fregueses com que endireitava a magra soldada recebida às jeiras em épocas de maiores partos da terra, colheita da azeitona, segadas e malhadas, as vindimas, o varejar da amêndoa e depois o parti-la em noites de Outono, sentados em bancos ao correr de toda a sala, e nestas alturas não tinha mãos a medir, jeira atrás de jeira, à noite mais moída que a azeitona no lagar, obrigada a colocar uma tranca e parar a distribuição de bênçãos. O filho ia crescendo na rua como os demais, à porrada, levando e dando, reguila e saudável, graças a Deus. Cedo começou a ouvir, em jeito de insulto, quando as suas forças eram maiores que as dos adversários, cabrão sem pai, filho da puta, bastardo, a tua mãe dá-a a todos, primeiro sem perceber porquê, até que, aos seis anos, ao entrar para a escola, questionado pelo professor sobre o nome do pai, não o soube dizer, mais mudo que uma pedra, e as risadas dos outros nas costas a atormentarem-Ihe o juízo. Essa bola da diferença cresceu dentro de si com o passar dos anos, tornando-o um cabrito selvagem, aguerrido, pronto a lançar-se sobre o primeiro que abrisse a boca sobre a mãe. Não chegou a terminar a quarta, fugia à escola e corria os montes atrás de ninho da passarada só pelo prazer de lhes destruir os ovos ou matar os pais das avezitas recém-nascidas, ainda depenadas, agarradas ao ninho, e deixá-las a chiar, órfãs. Maria Grila acabou por descobrir as fugas do filho e, depois de obrigá-lo, debaixo de pancada, duas ou três vezes, a regressar à escola, convenceu-se de que não havia nada a fazer e começou a levá-lo com ela nos dias de jeira. O ganapo deitou corpo, espigou-lhe a barba, cresceu-lhe a massa nos braços e pernas, forte como um touro, capaz de vencer qualquer um a escavar uma vinha, ele no fim do valado e os outros ainda no meio, levantando um saco de grão como se estivesse cheio de penas, atirando-o para o ombro só com um braço, e a Maria Grila orgulhosa, a mirá-lo, embevecida, como a uma pedra preciosa. O mal foi que com a idade ele foi percebendo claramente o ofício da mãe, nos murmúrios dos outros sobre as aulas de iniciação que ela dava, e aquilo moía-lhe o juízo a tal ponto que desejava que a mãe tivesse desaparecido como fizera o pai. Não aguentou a carga no peito, pesada de mais para ele, a quem nada se lhe metia pela frente. Ruminava, ruminava sobre o assunto, andasse de sol a sol a cavar ou na taberna a beber uns copos, veneno que se lhe espalhava pelo corpo, lhe tomava conta do juízo, o fazia tremer em segredo junto dos companheiros, sempre de punhos e língua em riste, em permanente guarda e premonição das palavras lançadas por eles. A sua boca foi-se lacrando, pois que se não a abrisse também não se lhe dirigiam, isolado como lobo expulso da matilha. Era capaz de passar um dia inteiro agarrado à enxada ou à foice, lado a lado com os jeirantes, sem dizer que o sol queima nas costas como uma brasa da fogueira, vou beber uma pinga; bebia-a sim, mas sem convidar ninguém, sozinho. Na taberna foi fazendo o mesmo teatro, sentado a uma mesa vazia e o copo à frente, sem taramelar nem com fulano nem com sicrano. Os rapazes da sua idade, no viço da energia, amigos duma boa prosa e reinação, de pielas em conjunto, de batalhas à suecada ou à malha, num canto da praça, junto ao adro da igreja, de medir forças em gabarolices, foram-no pondo de lado, não o chamando para nenhuma paródia. Melhor, assim pensou. Mas, numa bela noite de Verão, o copo transbordou. Ele foi que um grupo de quatro rapazes, embrenhados em despicada sueca, rodada atrás da rodada, ora pagais vós, ora pagamos nós, conforme a vitória ou a derrota em cada vasa, encheram o cabeçalho do jornal de rabiscos em trio encimados por argolas e ao mesmo tempo as veias de álcool, e começaram a espingardar, por pirrice, para a mesa do lado, onde se sentava o filho da Grila, e olha que esta noite vamos lá, vamos fazê-la dançar até cair, os quatro ao mesmo tempo, o teu mal é seres filho e não poderes fazer o mesmo, ó Manel, não ponhas as mãos no fogo por isso, e mal se precataram tinham a mesa virada sobre os seus queixais, as cadeiras a desencolatrarem-se sobre as cabeças e um burburinho de fazer acordar as beatas do seu santo sono, e quando, por fim, pôde, de lanho na testa e amolgadelas em vários pontos, regressou a casa, com os morcegos a cirandarem à volta das luzes, os ralos entregues ao seu jazz assobiado em conjunto, as melgas a rondarem-lhe o nariz e pescoço suado. Maria Grila já estava na cama com os almocreves quando o filho lhe entrou de rompante no quarto a cambalear, Mãe, tenho que me pôr daqui a andar, meter-me de barco para o Brasil e governar a vida por lá, já não aturo mais esta situação, rebento. A Grila não lhe perguntou sequer a causa de tanto transtorno, sabedora que estava há muito disso, e perante o seu silêncio incómodo o filho virou-lhe costas e desandou para o seu quarto, ouvindo-lhe depois o estrondo das botas atiradas em desvario contra a parede de madeira.
Aquilo passou, ou julgou a Grila que lhe tinha passado. Mas, um belo dia, mais lá para a frente, depois de se levantar, não abispou o filho nem na cama nem a preparar as migas, e não era assim tão tarde, e continuou sem saber dele ao almoço e à janta, pelo que se meteu a perguntar a este e àquele do seu paradeiro, durante o dia. Que devia ter ido prà eira ajudar na malhada do Ti Ramiro mas não apareceu, gesto estranho nele que nunca faltava ao trabalho duro. Depois da sopa, entrou a medo no seu quarto, remexeu na roupa e descobriu a falta de algumas mudas e um saco de lona, mandou-se prò Brasil, pensou logo consigo a Maria Grila, que Deus o ajude. E estranhou-se a si mesma pela calma que a invadiu, uma serenidade de quem vê tudo a encaminhar-se para bem. Meses depois receberia uma carta, escrita em letra mal amanhada, que teve de pedir a uma vizinha para lha ler, pois que ela nem a letra do tamanho dum carro de bois reconhecia, onde lhe relatava as peripécias da viagem destemida. A Grila suspirou aliviada e sorriu para o alto, agradecida. Nesse ano ainda receberia mais meia dúzia de cartas, espaçadas, mas depois a nascente estancou, e nunca mais soube notícias do filho.

« Última modificação: Junho 21, 2010, 14:08:30 por Vitor da rocha » Registado
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Sejam bem vindos às escritas!
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Boa tarde!
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Bom Ano! Obrigada pela companhia!
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Entrei para desejar um novo ano carregado de inflação de coisas boas para todos
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Partilhar é bom! Partilhem leituras, comentários e amizades. Faz bem à alma.
Novembro 10, 2022, 20:30:23
E, se não for pedir muito, deixem um incentivo aos autores!
Novembro 10, 2022, 20:29:22
Boas leituras!
Novembro 10, 2022, 20:29:08
Boa noite!
Setembro 05, 2022, 13:39:27
Brevemente, novidades por aqui!
Setembro 05, 2022, 13:38:48
Boa tarde
Outubro 14, 2021, 00:43:39
Obrigado, Administração, por avisar!
Setembro 14, 2021, 10:50:24
Bom dia. O site vai migrar para outra plataforma no dia 23 deste mês de setembro. Aconselha-se as pessoas a fazerem cópias de algum material que não tenham guardado em meios pessoais. Não está previsto perder-se nada, mas poderá acontecer. Obrigada.

Maio 10, 2021, 20:44:46
Boa noite feliz para todos
Maio 07, 2021, 15:30:47
Olá! Boas leituras e boas escritas!
Abril 12, 2021, 19:05:45
Boa noite a todos.
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Bom domingo para todos.
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Boa semana para todos.
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Boa tarde a todos.
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