Todo o mundo brindou dizendo: 2010!!

No dia 31 de Dezembro de 2009,não estava em casa com a minha família, não vestia fato de gala, nem muito menos usava sapatos de saltos glamourosos, não tive jantar de encher a barriga e explodir, muito menos bolo rei ,sonhos, filhós, e milhares de doces.

Às 7 da noite de 31 de Dezembro, estava com o Lucas em frente ao Teatro Nacional de São João no Porto. Noite muito fria, com chuva que ia caindo ao de leve e arrefecendo ainda mais o ambiente.

Ficamos ali um tempo a conversar, à espera do Flávio e dos restantes. Quando estávamos todos juntos, descemos uma rua perto dali, batemos à porta da miúda organizadora de tudo aquilo, subimos 3 andares de íngremes escadas típicas da Invicta, e começamos a preparar a refeição.
Naquela noite, por ser dia da passagem para 2010,acho, (não tenho a certeza) os restaurantes que costumavam dar-nos os restos não o puderam fazer. Então fizemos o que mais barato podíamos fazer. O Lucas e o Flávio iam empacotando a massa com atum nuns pacotes de alumínio, e eu ajudava na cozinha.

Saímos por volta das 10 da noite, em duas carrinhas. E em frente ao Hospital de Santo António montamos uma pequena mesa, onde colocamos os sacos com os pacotinhos de comida. Havia sopa, sumo, e a massa que ia arrefecendo. Eles já estavam lá, formavam uma fila, e iam falando alegremente para nós… um alegremente com fome.
- "Mais um pacote menina! Não me pode dar mais um?"
- "No fim senhor, no fim, isto tem que dar pra todos entende?"
E no fim de todos terem aparecido ,ele levou mais um ,mais dois...
- "Menina, eu tou a levar mais dois mas não é pra mim sabe? Tou lhe a falar sério...Vou levar isto até ao shoping carago !As galerias ,aquelas abandonadas, sabe?"

E eu não sabia. Desmontamos tudo, e fomos a correr para o tal shoping abandonado. Da nada a chuva irrompeu forte, e quando saímos da carrinha, não houve guarda-chuvas que nos valessem, porque para ajudar, o vento da invicta, é invencível.

Ficamos doidos, malucos, estupefactos, quando vimos o pequeno homem, a furar uma rede e entrar numas galerias velhas, na praça de Lisboa, abandonada. Fomos caminhando e passamos por uma poça enorme de água. Estava muito escuro no local,e começamos a ouvir vozes, gatos a miar ,cães a latir.

De repente sobre os nossos olhos, apareceram cerca de 30 pessoas, dentro de um espaço coberto pelas fezes, mijo, roupa suja, comida no chão, colchões onde a água já chegava. Faziam cerca de 2 graus naquela noite, e vi mulheres de t-shirt e saia calçando chinelos de dedo. Era uma comunidade, uma família, unidos, vivendo em condições piores que o meu cão. Uns toxicodependentes que já se tinham cruzado comigo na rua, inventando desculpas falsas em troca de um euro ou dois. Alguns já dormiam, tentando não sentir a dor da fome. Ouvi as histórias de vida de muitos, uns até eram filhos de gente abastada mas que tinham sido rejeitados pela mesma, entraram no mundo da droga, e não conseguiam ter ajuda para poder sair daquele rumo:

- “Menina, eu já tentei várias vezes ,mas não aguento, não consigo”
- “Sabe menina, o pior são aqueles filhos da puta que misturam merdas com a cena, e depois quem se fode somos nós, ficamos aí todos queimados..”
Riam-se, palidamente, seguido de uma expressão séria, e de um olhar de tristeza profunda.
Ficamos por ali a falar, servindo comida, bebida e servindo também de psicólogos!

- Voces já estão aqui há muito tempo? – Perguntei.
- “Eu tou há sete meses, ali o fulano tá há 2 anos já”
- Mas menina…agora vamos ser corrido daqui…o Rui quer restaurar esta merda ou carago…uma coisa assim, ou então não nos quer é aqui na baixa, devemos cheirar mal ou carago! - Riu-se.
- Então e para onde vão vocês depois?
- Ui, agente cá se arranja!

A Chuva continuou…saímos dali, e uma das de nós começou a chorar de tão emocionada que estava. Descemos a rua dos Clérigos, e fomos para os Aliados, juntarmo-nos ao mundo dos contos de fada…Foguetes romperam por todo o lado, rolhas de garrafas de champanhe saltaram, e todo o mundo brindou dizendo:
2010!!

EM PORTUGAL QUASE 9.000 PESSOAS DORMEM NAS RUAS
E SÓ NO PORTO SÃO 685!

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