Vitor da rocha
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« em: Julho 30, 2010, 13:14:06 » |
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LENÇO DE PAPEL 2º
Mal humorado, por ter de descolar o nariz do ecrã, viu entrar o casal, pelos vidros que separavam o seu gabinete apertado do salão onde diversos automóveis dormiam, à espera de dono. Olhou ainda para o ecrã, onde tardava em aparecer a resposta, e decidiu-se, por fim, a ir ao encontro dos clientes. Que desejavam, que não desejavam, era, naturalmente um carro que procuravam, ou não fosse esta loja de Gustavo de Sousa um stand de vendas de automóveis usados. De dois a cinco, dez e mais anos de muitos cus sentados ao volante, milhares e milhares de quilómetros rodados, que, no entanto, raramente ultrapassavam os sessenta, setenta mil, ainda que a máquina fosse do tempo em que os afonsinos reinavam. Se tinha dois ou três anos, era fácil convencer o cliente que os trinta mil quilómetros se deviam ao proprietário que só usava o carro ao fim-de-semana; se os anos iam além de sete, nove, dez ou mais anos, a arte de convencer o comprador de que os cinquenta e cinco mil, sessenta mil, no máximo setenta mil contabilizados pelo carro se deviam à proprietária, que era uma professora que só levava o carro para as aulas e no restante do tempo tinha motorista particular, isto é, o marido. Para que o conta-quilómetros condissesse com a sua história, Gustavo tinha sempre o cuidado de telefonar ao Acúrcio, seu amigo de longa data, mecânico numa oficina ali para os lados da estação, para vir cortar na conta, eliminar um um na sexta casa, à s vezes até o dois. Mal fazia negócio com um cliente e este deixava um carro velho em troca de outro mais recente, Gustavo não o metia dentro do stand enquanto o amigo não lhe fizesse a alquimia do tempo, retrocedesse as muitas voltas à Terra dadas pela máquina para a deixar em apenas uma, uma volta e meia. O pior eram os carros das frotas, que, ainda que sem barba de adultos, nem ferrugem nos ossos, já apresentavam os cascos mais comidos que boi velho escravizado atrás do arado, ou drogado com muitos êxtases curtidos. As duas partes do casal eram ambas jovens. Altos, esguios, modelos. Ele de cabelos curtos, espetados no ar pelo gel, óculos escuros, casaco e calças escuras. Ela de cabelos escorridos pelas costas, lábios pintados a cereja preta, calças de ganga e casaco de couro, de cereja rubicunda, a roçar a cinta. Procuravam um carro. Não tinham ainda filhos, tal como não tinham ainda uma moradia no Algarve, nem um carro potente e recente, uma mota de água. PossuÃam, sim, o apartamento, cujo financiamento de entrada dos bolsos dos pais de ambos saiu. Dois empregos. Ela numa loja de marca, a vender roupas caras, procuradas avidamente pelos mais jovens. Ele a montar parques informáticos, a instalar programas, a copiar programas, a esfaquear as máquinas pelas costas, a descobrir o caminho por onde destapar o cobertor com que ás vezes as máquinas amuam e teimam em nada fazer. Tirara um curso de informática, vocação que desde que começara a mexer nos teclados logo percebera. Nascera com intuição para os mecanismos da linguagem binária, tal como um verdadeiro mecânico sente que um motor de carro é a sua bÃblia que sabe de cor. Procuravam um carro. Ele queria uma bomba com look sportivo, jantes largas, de alumÃnio, vidros opacos do exterior, saias dos lados, aileron na traseira, rasteiro ao chão, como lagarto, para comer a estrada. E as últimas inovações: tecto de abrir eléctrico, vidros também eléctricos (v.e.), fecho centralizado (f.c.), espelhos eléctricos, travões abs, injecção electrónica (i.e.), 150 cavalos (cv.) 1600 centÃmetros cúbicos (c.c.), turbo. Ela queria um modelo banal, com espaço interior apreciável, estofos confortáveis e giros, um bom espelho na pala contra o sol para mirar a maquilhagem. E que pudesse olhar de longe para o carro e dizer que gostava dele. Lindo! Está aqui um modelo, apresenta Gustavo, ainda destituÃdo do seu habitual jeito comercial, capaz de pôr os clientes à vontade, de esticar a conversa sobre os dias, os tempos e o tempo, a sociedade, as polÃticas sempre erradas do Governo, o custo de vida para saber dados sobre a bolsa donde sairão as mensalidades. Dados sobre o tipo de vida. Sobre os modos de ser e agir. Gastador? Poupado? Unhas de fome? Iludidos? Irresponsáveis? Bem empregados? Funcionários públicos? (Estes são os mais seguros, porque, embora dotados de ordenados medianos, têm-nos mais certos que a própria saúde.) Que constará na declaração de IRS? Esta é o primeiro e principal documento pedido pela financiadora. Ela tem de reconhecer no papel entregue, carimbado e autenticado pelas finanças que o saco é suficientemente fundo para dele sair a mensalidade, de forma a não haver necessidade de retomar a viatura. Necessidade que não interessa nem ao menino jesus. O negócio fechado, a venda concretizada e segura, isso sim, é que é a essência da função, o objecto de acção tanto do stand como da financiadora. Ela olhava o aspecto exterior, medindo as curvas. Ele olhava o motor, medindo os cavalos. Depois, quis cheirar o escape, para ver se eram dois. Ela apalpou os estofos, onde viria a sentar as suas esplendorosas ancas, assim classificadas por Gustavo, que, enquanto ia satisfazendo as perguntas de um e outro, media os centÃmetros da cintura e ancas da mulher. Fabulosas. Uma autêntica cavallina rampante. Que como a marca automóvel nasceu para atrair olhares e deixar rastos de desejo nas costas. Fruta que ninguém desdenharia comer, nem que por uns breves minutos. Dar uma volta. Experimentar. Provar
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