Vitor da rocha
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« em: Julho 30, 2010, 13:31:22 » |
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Lenço de Papel 6
Deu indicações ao funcionário e dirigiu-se para o cubÃculo a que chamava escritório. Uma secretária com computador. Uma cadeira frente ao ecrã. Duas cadeiras atrás do mesmo. Outra cadeira encostada à parede. Alcatifa no chão para amortecer o impacto dos cheques preenchidos. Quadros de automóveis nas paredes. Ferrari, Bugatti, Jaguar. Novos e antigos. Para ajudar o cliente a endereçar o cheque, com o Bugatti, o Ferrari ou o Jaguar na mente. Sentou-se e olhou para o ecrã do monitor. Antes de o casal ter entrado, Gustavo andava à s voltas pela net, ora afundado, ora à tona, sem mapa nem bússola, sem destino nem percurso certo, sem intenção nem móbil. A rede cortara-se, mas ele voltou a ligá-la. Meia hora depois, e muitas esquinas dobradas, já não sabia onde começara, onde meara, onde se situava, clicando, vermemente, no que se dizia ser um chat. Foi, à s apalpadelas, clicando aqui e ali, até que se deu conta que estava a receber uma frase que lhe perguntava “Está aà alguém?â€. Leu. Ficou uns segundos indeciso. E arriscou a resposta. “Estou euâ€, escreveu. Por intuição ia clicar no Enter, mas reparou no erro, meteu marcha-atrás e, chegado ao r, deletou a letra inoportuna e escreveu o t. “Estouâ€. Agora sim, Enter. Esperou uns segundos, de olhar fixo no ecrã. Levantou-se para ver onde andava o empregado, mantendo uma mão assente no tampo da mesa, a outra no bolso. E, então, finalmente, a resposta chegou: “Quem és tu?â€.
********** A tarde arrastava-se, como a tartaruga, molengona, sob a capa fina dos primeiros abraços de calor pré-primaveris, que os bafos dos computadores ajudavam a engrossar. A redacção do jornal trepidava, com uma grande parte da equipa em acção. Duas paginadoras também não tinham tesouras e pincéis a medir, arrumando os textos nas páginas, como doméstica a encaixar porções de comida no congelador, retocando os pixéis, retirando sombras, grãos, defeitos, mulheres de boîte que exagerassem a beleza pelo retoque da maquilhagem. O som das teclas pressionadas por muitos pares de mãos metralhavam o ar, mas já ninguém reparava nem se incomodava, tal o hábito usucapiara o direito ao sossego. Próximos uns dos outros, os sons batalhavam-se como deuses nos céus, uns mais velozes e contÃnuos, crus e laminados como espadas, ao toque de marcha de pensamento mais célere, outros entrecortados e patudos, como se o sentimento que os alimentava fluÃsse em grossas pinguinhas, espaçadas; de vez em quando, a rajada dos primeiros fazia uma pausa para retomar o fôlego. Discreto, um clic do rato tentava empurrar a multidão de tiros do teclado, mas o seu som nem uma mosca pousada no ecrã atemorizava. Ao lado dos teclados, sobre as secretárias, repousavam jornais velhos e recentes, da concorrência e da casa, papéis com nomes e números de telefone e telemóvel, anotações e rabiscos e desenhos feitos nas horas mortas do pensamento, ou então para serem fulminante com que incendiavam a mão que depois levava fogo ao cérebro. Num placard da parede, surgiam crucificadas circulares da direcção, fotos de alguns jornalistas em pose desmanchada, recorte de jornais com menção a jornalistas da casa ou a artigos seus, piadas aos colegas, chamadas de atenção gerais, desde o proibido fumar e trazer animais até ao feche a porta da casa de banho, desligue o computador e conserve o material, curtas e rápidas. Armários grávidos defendiam-se contra a parede, guardando nos ventres pastas e pastas de manta morta, arquivada, livros, dicionários, revistas, cedês, subjugados ainda pelo peso de listas telefónicas, outras pastas, dossiers de jornais da casa e da concorrência, outros livros e mais revistas. Deitados aos pés de cada jornalista, dormiam as suas pastas pessoais, ou mochilas, alguns caixotes nada pessoais e até ecrãs e esqueletos de computadores caÃdos em desuso, como velhos reformados, ainda capazes de serem úteis mas ultrapassados pelas lebres inovadoras, adormecidos como cães fiéis ao calor dos pés do dono ingrato.
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