Lenço de Papel 7

Lenço de Papel 7

Dois homens apenas manchavam o mar sereno e uniforme de cabeças femininas, louras, arruivadas, semilouras, negras, castanhas, acajuadas, donde os cabelos ora brotavam em fluente correnteza até aos ombros e costas, ora morriam à nascença, mal saíam do ninho, decepados pelo entre-pernas da tesoura e da vontade de se masculinizarem que a moda promove e a que crescente número de mulheres obedece. Sobre cada uma de duas dessas cabeças, alourada e castanha, abraçava-se de orelha a orelha uma ponte circular, semelhante a elástico de touca sem tecido. De fones nos ouvidos, elas ouviam o que um fio fino lhes trazia de cada gravador erguido de patas no ar, sobre o qual, de instantes a instantes, debruçavam a mão direita, como afagando as orelhas do cão, para pressionarem os botões, acto imediatamente seguido pelo mergulho voluptuoso sobre as teclas do computador. No ecrã, despontavam, então, soldados enfileirados, como se, escondidos atrás da paliçada do monitor, fossem de repente trazidos à luz da existência, à ordem dos dedos, irrompendo sob as lâmpadas fluorescentes.
   A jornalista alourada, bruscamente, retirou os pilares da ponte dos ouvidos, ergueu a touca sem tecido e atirou-a, sem respeito pelo seu custo, sobre a secretária, gesto logo seguido pelo enterro dos dedos por entre os cabelos longos, junto das têmporas, erguendo-os, para tomarem ar. Sem ventoinha, o cérebro aquecera de mais e precisava de descanso. A mulher soltou um sincero suspiro e recostou-se na cadeira, pfff!, estou farta de escrever. Assim se deixou ficar uns minutos, suspensa entre o cansaço da escrita e o vazio do pós-escrita. Mil passos dera para chegar ao resultado final. Contactos com os envolvidos, ouvir as duas trincheiras. Ligar pelo telefone, não ser atendida, desligar, religar, esperar que ligassem para o senhor doutor, desligar, esperar, iniciar a escrita duma peça a partir dum press release, religar, dez minutos depois, quando o senhor doutor, presidente, gerente, secretário de Estado, ministro, administrador já poderia ter chegado, suplicar a atenção do homem, o comentário, a aceitação duma entrevista, a resposta às suas questões, verificar, entretanto, se a ventosa do gravador está bem fixa no bocal do telefone, depois ouvir as declarações gravadas e amassá-las para as transformar em bolo comestível.
   Glória é uma apaixonada da sua profissão, iludida por partilhar uma migalha do quarto poder. Concluíra o curso de Relações Internacionais e ainda no último ano do mesmo começara a colaborar com o jornal, escrevendo uns textos manchados de adolescência tardia e cheia de fé. O curso revelara-se uma inutilidade, num país em que a relação internacional se limita a pedinchar esmola e a vergar a cabeça. Saindo-se bem do período experimental, foi ficando no jornal, com ligação de recibo verde, enquanto terminava o último ano do curso, o que lhe demorou três anos. Entretanto, o tempo parcial dedicado ao jornalismo foi engordando e tornou-se inteiro. A profissão entusiasmava-a cada vez mais, sentindo ainda satisfação em cada texto publicado.
   Exactamente na última estação antes de a carruagem dos vinte passar para a dos trinta, com meia dúzia de anos de jornalismo, acabou por casar-se com aquele que, pelas suas contas, devia situar-se entre o seu décimo e décimo quinto namorado e talvez ainda mais o número daqueles com quem se fora deitando – nem sempre acordando - nas andanças atrás de acontecimentos que dessem notícia. O marido fora aquele que estava à mão de semear no tempo em que decidira assentar, largar o ninho dos pais e ter poiso próprio.