Vitor da rocha
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« em: Setembro 03, 2010, 16:30:53 » |
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A albina bota seu olhar para a dianteira e na ladeira figura de pasmar se lhe planta, de pasmar por de mais vista e ansiada. Lá está o prÃncipe, de inevitável capa nos ombros, penteada de brilhantes, a roupa a dançar entre os vários tons do céu, do azul desmaiado ao seu irmão mais garrido, roupa que se enrosca no corpo como mulher amante, mostrando as formas esguias, pernas de espada, cinta de dançarina e peito de rola, nos pés sapatos de louça fina, ondeando pelo caminho como as ondas para a areia, de asas abertas, seguindo risco de giz em campo de neve. Não a vê, a ela, não vê alma nem carne, olhos fechados dentro dos seus movimentos. Que faz ele? Ensaia o momento da sua chegada, o voo para a lua, a caça do sol, o salto no vazio, a atracção a uma linha, a suspensão sobre dois grãos de areia, a pirueta veloz do pião, o equilÃbrio inefável numa cabriolice equina da bicicleta, a subida prò céu numa corda esticada e presa nas nuvens, o caminhar nas costas de gafanhoto saltitante, o bufar de magia no bojo das notas de flauta e despertar a erecção da cobra para fora do cesto, o despertar do riso na plateia a partir da tristeza nas faces coloridas. A capa e os cabelos entregam-se nos braços do vento, estandartes da total liberdade individual a que só um prÃncipe consegue aspirar. Meia hora esteve Leopoldina encantada na visão do seu desejado, nos seus movimentos de cisne, cobra e raposa, rouxinol e urso, nas suas roupas recortadas das páginas do livro de histórias, no seu ar franzino de mancebo virgem, ainda que nos seus cabelos compridos a farinha já tivesse sido peneirada pelas mãos cruéis do tempo, e tal encantamento só terminou com o desaparecimento do prÃncipe no ventre do monte, lentamente, como navio a ser engolido pelo horizonte, primeiro o casco, a balaustrada e no fim as velas das caravelas, dantes, e hoje os postes dos guindastes e as chaminés vomitadoras de fuligem, vendo Leopoldina como última lembrança a borda esvoaçante da capa e o rabicho escarlarte do cabelo, que se balouçava intrépido ao vento. Mas seus olhos amendoados de menina de Taipé continuam abertos mais uns longos instantes, pregados no oásis da miragem. O meu prÃncipe chegou, veio buscar-me, cantarolou toda a tarde para as duas ovelhas, impávidas e surdas, comigo vai casar na igreja, à frente do padre Eusébio, e na sua carruagem doirada, puxada por seis cavalos brancos como o do Ti EmÃlio Neves, iremos viver para o seu palácio, com torres mais altas que os postes de alta tensão. E no crepúsculo do regresso a mesma cantilena mantinha-se ainda fresca na sua boca, regada pela água da sua crendice, como alface colhida ao nascer do sol, o meu prÃncipe chegou, e vai casar comigo, olarila se vai, senhor Augusto, deixe de me amofinar, que há melhor do que o senhor para casar comigo, que é o meu prÃncipe, o meu rico prÃncipe. Na praça, ao passar rente ao Café Central, um retrato a esperava, sorridente, colado na esquina da parede, quase a lançando para o meio da rua tal a surpresa, sem pinga de sangue na cara, preso a preto e branco no papel. Lá estava ele, em cartaz de má cor, de dentes alvos de miolo de amêndoa, abertos em sorriso largo e seguro, o olhar que adivinhava azul nela se agarrando, os ombros segurando a capa que ela bem vira esvoaçar, e por detrás a sua corte, os cavalos brancos de penacho entre as orelhas, saudando-a de pernas lançadas ao ar, a carruagem onde ela irá entrar, um leão a rugir, certamente o seu cão de guarda, que os prÃncipes gostam de ter, uma condessa de saia curta e perna sem vergonha cruzada, os dois braços erguidos ao alto, apresentando-se presunçosamente, e, espalhadas por todo o espaço deixado vago pelos retratos do prÃncipe e da sua corte, grossas e negras letras, em tamanhos desirmanados, onde ela a custo reconhecia o a, e, i, o, u, meta que na escola ainda alcançara. O senhor Augusto e os outros, desta feita, não repararam na sua candura, não meteram palhinha com ela, embevecidos que estavam também pelo cartaz do prÃncipe, prestando-lhe já vassalagem, a olhá-lo como papalvos submissos e a tentar decifrar os dizeres da Sua Alteza, deixando a Leopoldina ouvir algumas palavras arrancadas à força dos anos de esquecimento dos bancos da escola e das reguadas do professor, casando letra após letra até que do fundo da inexistência, filha da incompreensão, emergisse à tona cara conhecida, palavra ouvida, som vagamente familiar, e os rabiscos ganhassem algum sentido, grandi-o-so cir-co com atrac-ções fantás-ti-cas, incom-pará-veis núme-ros do mai-or artis-ta do mun-do, e as estrelas negras brilhavam nos espaços que restavam, dando o derradeiro ar de realeza ao decreto da chegada do prÃncipe.
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