Vitor da rocha
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« em: Setembro 03, 2010, 16:32:35 » |
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PrÃncipe já tenho, senhor Augusto, olhe bem para ele e veja se não é mais guapo que o senhor, mire-o bem, que a mim me vem buscar, vê como eu sabia que ele vinha, senhor Augusto?, e a minha mãe com ele de certeza me deixa casar ainda que seja nova, que de um prÃncipe ela já não tem medo que me faça mal, sabe que ele me vai amar muito, mais ainda que a minha mãe, e eu vou também amá-lo muito, apaixonada por ele, meu amor é maior que as fragas do Cabeço, mais forte que a máquina do comboio, mais duro que uma maça de ferro. Agora nunca mais se meta a mangar comigo, senhor Augusto, senão eu digo ao meu prÃncipe e ele corta-lhe a lÃngua com a sua espada de lâmina de prata e rubis no cabo, ou espeta-lha no rabo como o senhor faz à s suas vacas com o aguilhão, e eu, apesar de o senhor se meter tanto comigo, a mangar do meu prÃncipe e do meu amor por ele, não lhe tenho raiva, e não quero que lhe façam mal. Por isso, deixe-me em paz, senhor Augusto, que vou ser uma mulher casada e honrada, a rapariga mais bem casada de toadas cá da terra. E os homens, quando, enfim, tiram os olhos do cartaz e se entreolham para começarem a comentar a chegada inesperada dão com a Leopoldina já desviada ao cimo da rua, a saltar e a dançar com as suas ovelhas, mais alegre que um miúdo em dia de feriado, que duvidaram se o seu pouco siso se lhe tinha de vez gasto por entre os dedos como areia imaterial. Na certa, está a dançar com o seu prÃncipe encantado, comentou, solidário e terno, o senhor Augusto, pobre rapariga, se não fosse a mãe, o que seria dela?, o pouco juÃzo que Deus lhe deu aplicado a inventar o seu prÃncipe, como se não houvesse nada mais importante, nem que ganhar a vida, nem que desistir de sonhos impossÃveis. Tão perfeitinha como qualquer uma, e só na cabeça Deus se esqueceu de se aprumar na sua tarefa. Que Ele me perdoe, mas à s vezes a crueldade parece condizer mais com Ele do que a misericórdia de que o padre fala na missa. Leopoldina, vai ordenhar as ovelhas, Leopoldina, traz a lenha para a lareira, Leopoldina, não deites petróleo na lenha que ainda queimas as mãos, Leopoldina, cuidado com a candeia, que ainda pegas fogo à roupa, Leopoldina, olha os cabelos, que os metes no caldo, ai que cruz a minha, rapariga, sorte teve o teu pai, que largou prò além e deixou os cuidados todos para mim de tratar uma filha mulher como se fosse sempre catraia, ai e vais sê-lo sempre, Leopoldina, que mal faria eu a Deus? Leopoldina ouve, mas não ouve, que as palavras de queixa da mãe são como as letras da escola, sem forma na sua mente, e cumpre todos os mandamentos ainda mais aprumada que nos outros dias, lá indo com o balde nas mãos para nele verter o lÃquido espremido dos úberes das suas companheiras do monte do sonho, depois da ordenha cumprida, sobe as escadas com balde, tapa-o com a rodilha embrulhada em cÃrculo de cortiça e arruma-o debaixo da mesa, onde a mãe vê que não há perigo de a Leopoldina, nas andanças sem tino pela casa, o derrubar, desce logo as escadas e volta à loja, de braço dado com o prÃncipe, lá rá lá lá lá, ele chegou, vem-me buscar, lá rá lá lá lá, o prÃncipe do meu coração, lá rá lá lá lá, apanha um braçado de giestas secas e alguns tocos mais grossos e regressa pelas escadas e pelo braço do prÃncipe, para o andar superior, onde na lareira deposita a carga; parte então os ramos em gravetos, apara as hastes dos tocos e arma uma cabana sobre as cinzas da véspera, volta a ouvir a mãe, Leopoldina, não deites petróleo na lenha, risca um fósforo com as suas mãos reboludas e tenta dar vida à fogueira, lá rá lá lá lá, ele chegou e pró seu palácio me vai levar, lá rá lá lá lá, Leopoldina, olha a candeia. Quando estavam as duas com as malgas das migas na mão, Leopoldina, olha o cabelo que o metes no caldo, a mãe saiu-se com a novidade, tão fora do seu hábito que a albina logo cheirou o prenúncio da mudança na sua vida, Leopoldina, hoje à noite, queres ir ao circo?, chegaram uns artistas de não se sabe onde e colaram cartazes na praça, no adro e no café a anunciar a jogralada pra esta noite, queres ir ver, Leopoldina? Outra coisa não quero eu, mãe, ver o meu prÃncipe encantado, Quero, quero. De que estás para aà a falar, rapariga? cala-te com a lengalenga do prÃncipe para aqui, prÃncipe para acolá, que ainda dás mais motivos de se mofarem de ti, desgraçada, vê se tens algum siso nessa cachimónia vazia, e descobres que dos prÃncipes encantados se acabou a raça. No fim da janta, a mãe deu-lhe um vestido lavado prà s mãos, veste-te, Leopoldina, de lavado, podem dizer que és falha de siso, mas não hão-de caçoar-te com o mau cheiro, que isso posso evitar, quando morrer é que não sei o que vai ser de ti, se ao menos aprendesses a tratar das tuas trouxas e a cozinhar umas migas já me deixavas mais descansada. O vestido cheira a sabão, belo cheiro para o seu amado se deleitar, chamar-lhe rosa, açucena, alecrim, manjerico, pegar-Ihe na mão e levá-la por entre o magote do povo embasbacado e com ela subir para a sua carruagem colorida, flor da minha vida, lhe sussurrará ao ouvido quando estiverem sentados lado a lado nos bancos de veludo, anjo que ao mundo desceste para me encontrares, formosa pomba do pombal de Deus, trevo do meu futuro, abelha que exalas delicioso mel de ternura, minha andorinha do beiral do meu ser, rubor da minha palidez, lábios da minha saliva, olfacto do meu nariz, seara da neve que já me cobre o cabelo, azeite das minhas batatas, malmequer entre os cardos da minha corte, fogo do gelo que me entorpece, e de nariz pregado um no outro, como num espelho, de olhos diluÃdos nos olhos, de lábios trocando gotas de amor, as campainhas nos quatro bicos da carruagem tocando a marcha nupcial, desaparecerão para lá da escuridão do horizonte que a cerceada imaginação da Leopoldina não consegue alcançar. De braço dado com a mãe, rocha de protecção da albina, descem as escadas para a rua, a mãe tranca o postigo e bate a porta contra o umbral, que os ladrões ainda não chegaram à terra, e embrenham-se pelo túnel da noite, a espaços rasgados no tecto pela claridade advinda dos olhos dos candeeiros empinados na valeta da calçada. Leopoldina, vais portar-te bem, estar calada e apreciar as palhaçadas, e deixares-me entreter, que nesta vida as canseiras são como carreiro de formigas, um nunca mais acabar delas, e dos entretenimentos, se os tive, perdi-Ihes o retrato na minha lembrança. Por isso, vê lá, Leopoldina, como te comportas, não dês trela ao senhor Augusto, que ele só quer mangar contigo, nem aos outros, que do mafarrico homem nunca se deve esperar nada de bom, mormente uma inocente de alma e um naco de juÃzo como tu, minha filha. E deixa-te de falar em prÃncipes, que só serve para fazerem mais mofa do teu modo de andar no mundo. Que eu já não sei se não preferiria ser como tu, minha filha, ter o mundo num desenho de que eu gostasse do que vê-lo tão cru como ele é. Anda, Leopoldina, agarra-te bem ao meu braço e encosta-te ao meu tronco, que o friasco já vai aguçando as unhas. No meio do ovo de paralelos da praça, a aldeia em peso aguarda a aparição de Sua Majestade, assim pensa a albina, de olhos esbugalhados pela surpresa de ver tanta gente junta, que nem mesmo nos dias de feira a reunião é tão imponente. Um fio cruza as estrelas duma banda à outra, amarrado a dois postes da luz. Do lado oposto à manada de gente, a carruagem já lá está, altivamente especada, fechada e de pálpebras descidas nas janelas, a vedar a entrada e o olhar devasso e coscuvilheiro dos mais rebeldes à vassalagem devida. E uma lâmpada assente no beiral da carruagem lança mais claridade sobre a passadeira onde o prÃncipe vai aparecer.
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