Antonio
|
|
« em: Março 27, 2008, 19:00:47 » |
|
Adorava ouvir as histórias que a minha mãe e as suas três irmãs contavam dos meus antepassados. E algumas das que mais gostava eram as do casal LuÃs de Brito e Joana. Joana era a avó paterna da minha mãe. Viveu no sec. XIX, em Segadães, juntinho da vila raiana de Valença do Minho. Obviamente que eu nunca a conheci, nem mesmo nenhuma das quatro netas. De aparência franzina, era uma verdadeira mulher eléctrica, com um potencial energético de 100.000 volts. Ela e o marido eram proprietários de uma padaria e pastelaria. E como já adivinharam, ela era quem punha e dispunha. Ainda por cima, o LuÃs era a preguiça personificada. Bem mais corpulento que a mulher, pelava-se por não fazer nada. E, de facto, também não tinha muitas tarefas atribuÃdas. Primeiro, porque a Joana tratava de tudo e ainda tinha alguns criados que a ajudavam nas várias tarefas; segundo, porque não confiava no seu marido. Talvez por não ser suficientemente solicitado, o LuÃs acabou por arranjar uma amante. A coisa não durou muito: uma noite quando o homem chegou a casa encontrou umas malas com todos os seus pertences na rua. E teve de pedir desculpas, de joelhos, com renovadas promessas de fidelidade conjugal, para poder voltar a entrar em casa. Mas, durante uns dias, viveu na habitação de uns parentes. - Mas isso não é nada de especial! – dirão os leitores. E tem razão. Ainda hoje esta é uma prática corrente. Mas serve para definir melhor as personalidades de cada um. Era hábito da casa fazer o pagamento à maior parte dos fornecedores, que eram do Porto, no inÃcio de cada mês. Pois quem Ãa a cavalo, lá de perto da fronteira até à Invicta, com um pistolão e uma saca cheia de dinheiro à cintura e dois criados para ajudar era ela mesma, a avó Joana. Mas que têmpera! Como toda a burguesia dos meios rurais, tinham os seus terrenos para cultivar uns produtos hortÃcolas, plantar umas árvores de fruto e ainda para a criação. De vez em quando matavam um porco.
Eu tive a sorte de assistir a muitas matanças, tendo todos os rituais ainda gravados na minha memória. Eram vários homens a lidar com o bicho. Deitavam-no numa tosca mas resistente mesa de madeira, de pés curtos, de modo a que o leito ficava a uns trinta centÃmetros do chão e longa, para o animal ali ficar estendido. Depois de convenientemente amarrado com fortes cordas e com os carrascos sentados em cima dele, o matador, num golpe certeiro, enfiava um facalhão directo ao coração. Morte rápida para minimizar o sofrimento do bicho e evitar uns abanões que atiravam toda a gente ao chão. Uma vez vi o porco a soltar-se e correr com a faca toda espetada no peito: o chefe da equipa falhara o alvo. Depois, eram queimados os pêlos com palha a arder, lavada a pele com água, sabão e pedras com asperezas para fazer a barba ao corpo da besta o mais bem escanhoada possÃvel, senão o toucinho ficaria com a couraça pouco lisa. A seguir procedia-se à abertura do cadáver ao longo de toda a zona ventral, removiam-se as vÃsceras, que eram quasi totalmente aproveitadas e, finalmente, era pendurado pelas patas traseiras e com o interior cheio de ramos de loureiro para escorrer todo o sangue, durante uma noite. Na manhã seguinte fazia-se o desmancho completo.
Mas voltemos à matança do suÃno do casal. Depois de cumpridos todos os passos que atrás descrevi, havia um criado que ficava de noite a guardar o reco, não fossem aparecer sorrateiros ladrões e levá-lo. Mas, uma vez, não havia nenhum empregado que estivesse disponÃvel e a patroa determinou que fosse o LuÃs a cumprir tal tarefa. - Ó homem! – avisou várias vezes – tu abre-me bem esses olhos, ouviste? E não adormeças! - Ó Joana! Eu sou responsável; sei muito bem o que tenho de fazer – procurava ele sossegá-la. O certo é que, a meio da noite, a avó Joana acordou e achou por bem ir ver se o seu marido estava a cumprir a tarefa correctamente. Quando chegou ao local, o porco estava intocado, mas o pobre do LuÃs não aguentara os ferozes ataques do João Pestana e dormia soltando um ronco de tempos a tempos. E que fez a mulher? Acordou-o? Não! Pegou num facalhão e cortou a cabeça do porco, escondendo-a em sÃtio seguro. Quando o sol despontou, ela levantou-se e foi direitinha ao local. Lá estava o decapitado com o LuÃs ainda a dormir como um justo. - Ó LuÃs! Acorda! Os ladrões levaram a cabeça do porco! E continuou: - Estás a ver? Não posso confiar em ti! Adormeceste em vez de tomar conta do bicho! E o pobre do homem acordou estremunhado e olhava com cara de basbaque, ora para o pescoço sem cabeça ora para a mulher que se ria a bom rir. Tiveram quatro filhos, dois rapazes e duas meninas. Que conste, nunca mais houve ninguém como a Joana na famÃlia, mas o meu avô Abel e o primo Zé, ambos já falecidos, eram cópias bastante fiéis do avô LuÃs.
(escrito em 8 de Dezembro de 2005)
|