Tomava-lhe conta dos ombros nus uma brisa frouxa ao mesmo tempo que, do chão, a lentura do orvalho matinal lhe arredondava os passos. Sempre que a cidade grande a não obrigava à formalidade do fato e os dias ensolarados lho permitiam, Etelvina dava asas à rústica que a habitava. Nesses dias chamava a si as tarefas mais pesadas, simultaneamente as que lhe conferiam mais prazer. Depois da casa, o jardim de cheiros (nem sempre por esta ordem), onde se inebriava de aromas - o funcho, a cidreira, a hortelã, o cebolinho, os coentros ... gostava de, uma vez concluÃdas as tarefas a que se impunha, gozar do reluzente dos espaços, lavados, arejados, desbravados e embelezados por suas mãos. Coisas prosaicas e materiais, sabia. Acrescia-lhe o gosto óbvio pela terra, pela água, o gosto por, como lhe dizia a voz de dentro, chafurdar-se de si mesma e das raÃzes até mais não poder — mais tarde seria ainda a água a sua inefável companheira, quando, liberta de todos os espartilhos, se deixava possuir inteira. A entrega, o culto, a cadencia lenta, algo egóica, o esbracejar contra a indiferença, a rotura audaz com a certeza da sua própria impermanência.
Tudo, até a água, era transitório e por momentos não era, sendo textura palpável de instantes apoteóticos, seus, de plenitude e de quietude, no caos da vida.
Num rasgão súbito viu-se reprojectada na parede do fundos entre a lei e um colo de pertença. Viajava na nostalgia saudável de um ciclo de partilha em que o tempo se dilatava muito além da demarcação dos ponteiros de qualquer relógio, e, apenas os bagos debulhados na pele dos olhos (dos que em emudecimento beijava) contavam de notÃcias que, sem se saberem aforismos e metáforas, eram-lhe alimento, ambrosia, e saberes inultrapassáveis. Histórias simples, inverossÃmeis, como a daquele dia em que se viu ali, sob um chapéu cinzento, o Elba ao lado – havia sempre um rio que lhe corria lateral à s veias, a medir-lhe o pulso –, tomada pelo braço, conduzida ou conduzindo, nunca saberia, num passo certo e ritmado, redescobrindo vestÃgios da sua própria existência — Dentro do possÃvel. Dentro do possÃvel, repetia-se, porque é nele, disseminado, que se delimitam o umbral de rosas bravias, as coroas de louros, os espinhos tangenciais à face em que, e segundo Woody Allen, se divide a humanidade "entre o miserável e o horrÃvel" (discordava), o cheiro das aspas, as reticências, a essência citrina, igual à que lhe chegava agora, algo almiscarada a lavanda e a baunilha, o céu e o inferno.
Do purgatório, num patamar intermédio, nem se inquietava em expurgações antes do tempo. Directa,
o céu e o inferno. E o fogo, capaz de transformar as frutas mais robustas, mais sadias, em pastas, em doces, geleias e compotas,
No labirinto das memórias repartidas do canto perdurado, quase pássaro, quase bicho, desatou os nós górdios da insónia. Rumou-lhe, letárgica, tomada na jangada das suas gotas. O sol do meio-dia, a pino, irradiava-lhe a pele tornando-o quase transparente. Afadigada, encostou-lhe a cabeça,
o corpo em arco glissando os dedos na demora, num ruÃdo de fricção dolente, espécie de
fret noise de notas intermédias de um violão antigo,
buscou uma nesga de sombra. Semicerrou as pálpebras. Gemeu baixinho, tão baixinho,
(em que lugar de si morria primeiro? havia tempos que este pensamento a atormentava...).
depois mais alto. Por fim, como se não houvesse nem hoje nem amanhã, deixou de controlar o caudal do grito. Acordou a cal do muro que, farrapo a farrapo, chorou dos olhos das paredes fronteiriças,
aninhou-se quanto pode, Ãnfima formiga,
desejou que a afagasse, lhe repusesse num gesto de verdade o sentido da vida — o limoeiro, baloiço da sua meninice, era, de todas as árvores, a sua preferida. A par com o pé de lima.
"Que canto há de cantar o que perdura?
A sombra, o sonho, o labirinto, o caos
A vertigem de ser, a asa, o grito." Hilda Hilt