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Autor Tópico: Conto medieval  (Lida 11628 vezes)
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Goreti Dias
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« em: Fevereiro 06, 2013, 17:22:09 »


.
Há muitos, muitos anos, o dia a dia das pessoas era difícil. Difícil como não somos capazes de supor nos nossos dias.
Em tempo de seca prolongada, os homens ficavam de semblante triste, dor à flor do olhar. As peles do rosto encarquilhavam-se mais e as rugas ficavam mais fundas.
Quando permanecia a falta de chuva, e os campos se tornavam cinzentos ou castanhos da terra nua, os homens bebiam mais e batiam –se com raiva desusada. E se continuava a não chover, organizavam-se procissões, faziam-se rezas e promessas. Tudo esperando que chovesse.
E se a chuva persistia na ausência, começava-se a morrer. Morriam os bois, os cavalos, os cães... E as gentes. Muito tempo sem chuva  e morriam muitas pessoas.
Quando a chuva regressava, havia sempre alguma coisa que se tinha alterado. Alguém tinha, em pleno desespero, vendido os terrenos ao desbarato e agora com chuva não tinha terra. Famílias inteiras tinham morrido à fome e os vizinhos tentavam apoderar-se do pouco que tinha sobrado. Era sempre muito pouco, porque só quem era pobre é que morria.
Era assim, nunca tinha sido de outro jeito. Ninguém considerava anormal. Não estranhavam os ganhadores nem se revoltavam os perdedores. Não que gostassem, não que deixassem de alimentar ódios e jurar vingança,  mas estranhar, não estranhavam.
Custódio era um dos ganhadores. A idade já era avançada, mas continuava a ostentar uma postura altaneira. Robusto de lidar com gado bravo, ancinhos e enxadas, terrenos a desbravar, intempéries e… homens.
Diante dos senhores da Igreja e do palácio, mostrava-se rude, pouco dado a vénias.
Tinha terrenos até ao rio e para lá do rio, comprados um a um, sem pressa. Alguns nas desventuras das secas, outros nem por isso. Nunca roubara nenhum, o que não significa que tudo tivesse sido comprado de forma pacífica. Mas, pacificamente,  jamais se conseguem terras para lá do rio.
Os seus inimigos contavam sempre algumas histórias trágicas, como a do Joaquim e outros que tais. Contavam-nas sempre nas tabernas, noite dentro, em voz sumida e raivosa, deitando olhares enviesados de ódio e rancor ao Custódio.
O Joaquim era um bêbado. Disso ninguém duvidava. Também sabiam ao certo que tinha umas leiras férteis perto do rio. Bem cultivadas, poderiam abastecer a família de quanto bastasse para viverem bem. Mas não. Dificilmente colhia umas couves ásperas e umas batatas mirradas. O seu gado teimava em sair das suas terras e tentar a sorte na dos vizinhos.
Mas veio um dia em que bebeu muito, muito mesmo. Quer dizer, bebeu mais do que todos os outros. Mas ele bebia quase sempre assim.

No dia seguinte, o filho descobriu-lhe os bolsos cheios de moedas de ouro. A custo, arrancou-lhe a confissão de que tinha vendido as terras. Ao Custódio.

O filho do Joaquim era diferente do pai, trabalhador e corajoso. Decidiu pedir  explicações ao Custódio.
Foi recebido de fraca vontade:
- Que vens cá fazer?
- Sabe bem que venho reclamar o que me pertence. Você é um ladrão. Roubou o que era nosso, enganou o meu pai.
- Comprei-as, são minhas e paguei bem por elas. O teu pai não vendia melhor.
- Oportunista é o que você é. O meu pai vai estourar todo o dinheiro na taberna.
- Se o teu pai se porta como um néscio, problema dele.
- E eu? Vou viver de quê?
- Eu até tenho bom coração. Podes trabalhar para mim, pago-te o mesmo que pago aos outros trabalhadores. Comprei uma mata, está cheia de carqueja velha e silvado. Podes começar amanhã.
O rapaz ainda puxou da faca de mato, mas seguraram-no.
Na época medieval, nas terras mais escuras, rondavam as bruxas. Não eram todas más, mas iam fazendo as suas partidas e magias. Havia lugares onde ninguém ia de noite. Dizia-se que elas faziam danças com os espíritos que vagueavam por ali. E que os faziam gritar coisas…mas só em certas alturas. Quando havia seca e o ódio crescia.
Ouviam-se sempre nas secas. Começavam a atormentar os homens fortes e trabalhadores, à volta das mulheres bonitas e gritavam insultos.
Mas era  no Custódio que terminavam:
- “Ladrão, velho, nojento â€. E faziam sentir a sua presença através de uma corrente de ar à sua roda. E continuavam  “Ladrão, velho, nojento â€.
As pessoas pouco ligavam. Não eram ladrões, aquilo não lhes dizia respeito. Mas percebiam a quem se destinavam os insultos.

O filho do Joaquim sentava-se debaixo de uma árvore a ouvi-los.
- “Ladrão, velho, nojento â€.
Por fim, voltou a seca. Não chovia há meses. Tinham-se feito muitas procissões e promessas, nada feito.
Não chovia.
As terras ficaram áridas, o gado começou a morrer. A fome plantou-se na terra. Eis que apareceram mais uma vez os espíritos. Os espíritos gritavam : - “Ladrão, velho, nojento â€. As pessoas juntavam-se em grupos e começavam a repetir as mesmas palavras. Primeiro em voz baixa, depois em gritos sonantes até à casa de Custódio e daí até ao mercado da aldeia onde apenas ele tinha alimentos para vender já que era dono do rio que passava por entre as suas terras. Apenas ele tinha água para regar as plantas e dar de beber aos seus animais.
 - “Ladrão, velho, nojento â€.
Custódio correu em direção ao mercado, sempre rodeado pelo vento invisível da presença dos espíritos e acossado pelos gritos deles e do povo.
Lá chegado, esbaforido, parou, olhou à sua volta, para a multidão que o seguia…hesitou…
De repente, virou-se para os seus empregados e gritou
- PONHAM TUDO A METADE DO PREÇO!
Olharam confusos…
- Estão à espera de quê? PONHAM TUDO A METADE DO PREÇO.
A  multidão gritava:
- “Ladrão, velho, nojento â€.
Os espíritos faziam o pó levantar do chão no seu rodopio.
E .as pessoas começaram a comprar…
Os espíritos calaram-se, os grupos desfizeram-se…
Custódio, em casa:
- Queriam matar-me, mulher. Perseguiram-me até ao mercado. Mandei meter tudo a metade do preço, só assim pararam. Foram as bruxas que mandaram os espíritos. Não sei se da próxima saio disto vivo.
A mulher responde:
- Tens que tomar mais cautela
- Aquilo é uma cambada, mulher.
- Há quem não seja. O filho do Joaquim, só teve azar na vida. Até era capaz de tratar bem das terras e ganhar o seu sustento . A seca e a fome chegaram. Os homens sabem que vão morrer.
- E depois? Eu não sei fazer chover.
- Ajuda-os. Sem fome, não são violentos.
- Sim, alguns. E os outros?
- Os outros não valem nada. A seca e a bebedeira se encarregam deles.

Nada disto aconteceu. Se calhar, foram coisas que eu inventei para vir aqui contar. Coisas antigas que podem vir a ser novas.
Hoje em dia é tudo diferente. É?!

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Goretidias

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Dionísio Dinis
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« Responder #1 em: Fevereiro 06, 2013, 21:02:12 »

Um conto com plena actualidade.Uma prosa urdida com talento.
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Pensar amar-te, é ter o acto na palavra e o coração no corpo inteiro.
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outono


« Responder #2 em: Fevereiro 07, 2013, 15:57:05 »

De facto a história está sempre a repetir-se. Um conto saboroso, com domínio perfeito da arte narrativa.
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Goreti Dias
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« Responder #3 em: Fevereiro 08, 2013, 21:08:47 »

Obrigada a ambos pela atenção e comentários.
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carlossoares
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« Responder #4 em: Fevereiro 08, 2013, 23:35:29 »

Tudo bate certo neste conto, a começar no título. A unidade da obra é isto. E nunca é de mais salientá-lo. Mas a unidade só por si, não é nada, ou seja, não faz de um texto uma obra de arte literária. É preciso mais, é preciso conteúdo e pensamento e visão e sabedoria, tudo humano, profunda e dramaticamente humano. E é preciso arte narrativa, sim. Aqui, de uma forma, quase meticulosa, encontramos tudo isso. A Goreti continua a surpreender e muito bem.
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Carlos Ricardo Soares
Nanda
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« Responder #5 em: Fevereiro 09, 2013, 07:43:29 »

Goretidias,
Pode ser lido como um conto ancestral, mas julgo que inventado ou não, a sua mensagem e chamada de atenção é sempre atual.
Beijinhos
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britoribeiro
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« Responder #6 em: Março 15, 2013, 09:48:40 »

Medieval? Contemporâneo!
Gostei muito.
BR
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Goreti Dias
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« Responder #7 em: Abril 14, 2013, 08:31:59 »

Os contos são sempre atuais. Já repararam?
Obrigada pela vossa atenta leitura!
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margarida
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« Responder #8 em: Setembro 24, 2013, 20:30:19 »

Muito actual :fixe: Muito mesmo :yup:
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« Responder #9 em: Setembro 25, 2013, 21:12:45 »

Ainda e sempre verdadeiro : Infelizmente .
Muito bem contada, a história . Felizmente .
geraldes
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Geraldes de Carvalho
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Goreti Dias
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« Responder #10 em: Setembro 28, 2013, 20:31:52 »

Obrigada a ambos!
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Dionísio Dinis
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« Responder #11 em: Setembro 30, 2013, 09:49:37 »

Relendo.
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« Responder #12 em: Março 11, 2014, 08:28:33 »

Como se repetem os tempos. Isto lembrou-me um episódio recente da nossa "praça" Sad Sad Sad
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Alfredo D
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« Responder #13 em: Março 11, 2014, 19:00:26 »

Aconteceu hoje?Bem podia....
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Maria del Mar
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« Responder #14 em: Maio 09, 2014, 18:40:01 »

Tem acontecido ultimamente Wink Wink Wink Wink Wink
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Bom dia. Para todos um FigasAbraço
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Sejam bem vindos às escritas!
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Boa tarde!
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Bom Ano! Obrigada pela companhia!
Dezembro 30, 2022, 19:42:00
Entrei para desejar um novo ano carregado de inflação de coisas boas para todos
Novembro 10, 2022, 20:31:07
Partilhar é bom! Partilhem leituras, comentários e amizades. Faz bem à alma.
Novembro 10, 2022, 20:30:23
E, se não for pedir muito, deixem um incentivo aos autores!
Novembro 10, 2022, 20:29:22
Boas leituras!
Novembro 10, 2022, 20:29:08
Boa noite!
Setembro 05, 2022, 13:39:27
Brevemente, novidades por aqui!
Setembro 05, 2022, 13:38:48
Boa tarde
Outubro 14, 2021, 00:43:39
Obrigado, Administração, por avisar!
Setembro 14, 2021, 10:50:24
Bom dia. O site vai migrar para outra plataforma no dia 23 deste mês de setembro. Aconselha-se as pessoas a fazerem cópias de algum material que não tenham guardado em meios pessoais. Não está previsto perder-se nada, mas poderá acontecer. Obrigada.

Maio 10, 2021, 20:44:46
Boa noite feliz para todos
Maio 07, 2021, 15:30:47
Olá! Boas leituras e boas escritas!
Abril 12, 2021, 19:05:45
Boa noite a todos.
Abril 04, 2021, 17:43:19
Bom domingo para todos.
Março 29, 2021, 18:06:30
Boa semana para todos.
Março 27, 2021, 16:58:55
Boa tarde a todos.
Março 25, 2021, 20:24:17
Boia noite para todos.
Março 22, 2021, 20:50:10
Boa noite feliz para todos.
Março 17, 2021, 15:04:15
Boa tarde a todos.
Março 16, 2021, 12:35:25
Olá para todos!
Março 13, 2021, 17:52:36
Olá para todos!
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Boa feliz noite para todos.
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Bom fim de semana para todos
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Boa quinta para todos.
Março 03, 2021, 19:28:19
Boa noite para todos.
Março 02, 2021, 20:10:50
Boa noite feliz para todos.
Fevereiro 28, 2021, 17:12:44
Bom domingo para todos.
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