gdec2001
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« em: Dezembro 05, 2013, 00:01:44 » |
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Oh. Oh ! Sou completamente adulta...julgo eu. Bom...Como muita gente do meu tempo, tive uma educação muito católica . A minha mãe era muito religiosa e assim permaneceu até ao fim da sua vida . Ela ia à missa todos os domingos mas na verdade não me lembro de a ver rezar em casa . Mas falava bastante em deus, e talvez fosse essa a sua maneira de rezar, e creio que acreditava de verdade em tudo quanto os padres diziam. E os padres diziam muita coisa incrÃvel, verdadeiramente incrÃvel mas ela e todos nós acreditávamos neles porque certamente aquelas coisas eram incrÃveis mas vinham de deus e para deus nada era impossÃvel, não é assim? De maneira que quanto mais incrÃveis fossem aquelas coisas, mais nos pareciam verdadeiras a nós. O padre que funcionava lá na aldeia, quando eu era miúdo, era boa pessoa. É o que eu penso agora porque naquela altura não se pensava assim de um padre. Pensava-se que era um padre e isso tinha implÃcito que era boa pessoa , o melhor, um padre. É claro que embora fôssemos bastante ingénuos, não éramos tanto que não soubéssemos que havia padres maus, que faziam maldades , mas isso era considerado como excepção, aquela boa excepção que permite que a regra seja verdadeira. Quando eu fiz seis anos de idade comecei a preparar-me para fazer a primeira comunhão. Na verdade eu já conhecia as orações mais comuns mas ignorava algumas que só se diziam naquela altura, quero dizer, quando a gente se confessava; por exemplo, o acto de contrição. E também precisei de aprender as respostas a algumas perguntas que o padre me faria para ver se eu era ou não era um bom cristão, tal como: Quem é Deus , quais são os dez mandamentos , quais os pecados mortais e coisas assim . E quando chegou a Páscoa eu estava preparado. Com bastante desilusão da minha parte, o padre não fez exame nenhum e admitiu à confissão todos quantos lhe foram apresentados pela catequista, a menina Amélia - menina porque não se havia casado, sendo já bastante velha - pelo menos pelo que me parecia -. Mas não julguem que o padre descurou as suas obrigações no que respeita à primeira comunhão ; não. Na verdade nos três ou quatro domingos que precederam a Páscoa ele falou sempre, nos seus sermões, na primeira comunhão que devia realizar-se no domingo seguinte ao da Páscoa e fez as suas recomendações. Lembro-me apenas de duas, certamente as mais importantes e que foram as seguintes: A confissão deveria ser completa ou seja não se devia esquecer nenhuma das nossas malandrices e para isso era necessário fazer um "exame de consciência" rigoroso; o melhor, dizia ele, era começá-lo ...já. A segunda recomendação era a de que deverÃamos comungar em "jejum natural" ou seja, não poderÃamos comer nadinha "desde a meia-noite até à hora de comungar ". Se transgredÃssemos tais mandamentos era certo e sabido que irÃamos parar à s "profundezas do inferno". A não ser, é claro, que nos arrependêssemos e confessássemos tais pecados. E chegou finalmente o tão esperado dia. Confessei-me na véspera e relatei minuciosamente todos os pecados de que me lembrava os quais eram, principalmente, pecados de intenção visto que eu, sendo nesse altura muito pequeno, muito mais do que eram os meus amigos da mesma idade, raramente me atrevia a passar a actos as minhas intenções de fazer malandrices. Aliás a minha mãe chegava-me quando era preciso e até, algumas vezes, sem razão que eu visse . O padre apressou um pouco a minha confissão e deu-me uma penitência pequena que eu despachei imediatamente. No dia seguinte de manhã levantei-me muito cedo, tomei o meu banho e fui para a varanda ver nascer o sol ainda sem o meu fato novo, da primeira comunhão. Estava um tempo inteiramente mágico, ligeiramente frio à quela hora o que fazia eriçar os pelinhos dos meus braços. O sol nasceu numa silenciosa e lenta explosão. E foi aà que se deu o desastre. O nascer do sol exercia em mim um estranho fascÃnio coisa de que eu nessa altura nem tinha consciência pois tudo o que sabia é que ficava a olhar para ele como um parvo, esquecido de todas as outras coisas. De maneira que, inconscientemente, peguei numa pevide de abóbora das que ali se encontravam a secar espalhadas em cima de um pedaço de papel, e meti-a na boca começando a mastigá-la e a engoli-la devagar. E foi só quando passou pela minha glote o último pedacinho que acordei e me lembrei, estarrecido, que aquele era o dia da minha primeira comunhão. Comecei a chorar e fui de imediato, contar á minha mãe o que tinha acontecido. Ela ficou ... danada. Que parecia impossÃvel eu ter-me esquecido de que aquele era o dia mais importante da minha vida. Que tinha um fato novo e fora a Beja três vezes por causa dele e mesmo assim me esquecia .Que o que lhe apetecia era dar-me uma grande sova para eu aprender e ver se ganhava juÃzo. E mais isto e mais aquilo . Bem, livrei-me de apanhar uns tabefes como, no fundo, eu próprio achava que merecia. Nesse domingo tivemos de ir mais cedo para a igreja para a minha mãe falar com o padre, antes da missa. Pelo sim pelo não eu vesti o meu fato novo e pus o laço no braço esquerdo como tinha sido recomendado. O padre disse que eu não poderia comungar, evidentemente, mas... -olhando para o meu ar desolado- podia ir na forma, atrás, com o laço e tudo. Que a minha comunhão podia ser no dia seguinte pois ele diria uma missa à s nove horas da manhã por alma não sei de quem. Que não, que eu não precisava de confessar-me outra vez pois que, não comungando, eu não praticara pecado nenhum por ter comido a pevide. E aà fui eu mas sentia-me muito mal pois o meu lugar natural era mesmo na frente por ser muito pequeno, como já disse . De maneira que tudo aquilo me parecia mais um enterro do que a festa que me fora prometida e com a qual eu sonhara tanto tempo. No dia seguinte levantei-me muito cedo porque o meu pai foi chamar-me à cama para ir com ele ao chãozinho, que era uma pequena propriedade que possuÃamos, mesmo á saÃda da aldeia. TÃnhamos de ir ali apanhar umas castanhas que estavam caÃdas no chão havia já alguns dias. E aà fui eu, em jejum, evidentemente, ainda o sol não havia nascido. Estava um pouco frio e eu apanhava as castanhas bastante arreganhado. Nisto olho para cima e vejo, por entre as árvores, um bocadinho do sol que tinha acabado de nascer. Esqueci-me de tudo e levei a mão à boca com uma castanha pois quase todos os ouriços já estavam abertos; mastiguei-a , tirei-a da boca para lhe sacar a casca e voltei a metê-la, tudo muito inconscientemente, e acho que ainda lhe dei uma mastigadela, quando me lembrei . Cuspi-a então aterrado. Olhei e o meu pai não tinha dado por nada; estava bastante longe, curvado debaixo de outro castanheiro e quase de costas para mim. Nada disse e regressei a casa acabrunhado o que, no entanto, me preocupei em disfarçar. Em casa nada disse também e vesti-me de pressa para ir à missa comungar. E, com o coração apertado por um remorso antecipado, comunguei mesmo. E, nesse dia o meu coração pequenino estava tão confrangido que parecia nem existir. Felizmente que à noite tudo se esbateu e no dia seguinte mal me lembrava do facto. Porém o hábito era comungar todos os anos na mesma altura em que se realizava a primeira comunhão . Ora acontecia que eu não era capaz de confessar aquele pecado aterrador . E todos os anos eu comungava em pecado que ia crescendo na sua qualidade de pecado dupla, tripla, quádrupla e penta mortal . Ele era o pecado de primeiramente ter comungado sem estar em jejum natural e depois e depois, os pecados de, nos anos seguintes, comungar sem ter feito a confissão completa dos meus pecados. Nos últimos anos, quando tinha já nove ou dez anos, eu era capaz de confessar até as masturbações que fazÃamos meio deitados numas lajes de pedra que ficavam sobranceiras à capela da Senhora da Guia do outro lado da estrada mesmo á saÃda da aldeia. Era só para sentir os gostinhos que fazÃamos, aquelas “gaiolasâ€, nós, os garotos mais velhos, à saÃda da escola e, talvez, também, nos domingos. Alguns já deitavam um pouco de “langonha†que podia estender-se com o dedo, a formar fio. E sabÃamos, uns pelos outros, que aquilo também era um pecado mortal mas, a avaliar pelo silêncio, nenhum adulto parecia saber que tal prática existia embora não fosse invulgar a passagem de homens e mulheres na referida estrada quando nós lá estávamos em cima, nos penedos, agarrados ao “bichoâ€, e rindo-nos . É que pecado mortal ou não, não havia problema em confessá-lo e, portanto, em praticá-lo. O padre mostrava-se bastante tolerante aconselhando-nos apenas a “acabar com aquilo pois fazia malâ€. Que mais tarde faria pior e seria ainda mais difÃcil abandonar tal hábito, dizia ele. Penso, agora que ele devia ter muita experiência pois não lhe era conhecida nenhuma mulher...nem homem... Mas o pecado mortal que começara com a pevide e a castanha é que me incomodava. Quando eu tinha os meus dez ou onze anos o meu incómodo já durava mais do que os dois dias da confissão e comunhão e era na verdade, cada vez mais pungente de maneira que, por essa altura, resolvi libertar-me daquele pesadelo. Armei-me de coragem e contei tudo na confissão. Para enorme espanto meu, o padre não ligou nenhuma. Não fez qualquer observação e deu-me a penitência costumada. Aquilo chocou-me mais e mais profundamente do que eu agora sei contar. Então aquilo era assim? Os pecados mortais e as suas horrÃveis penas eternas podiam ser assim tratadas tão negligentemente ? Que deus era aquele, ou que padres eram aqueles, que tratavam assim, com tanto desprendimento, os seus anátemas, as suas proibições . Existiria de facto, deus? Isto, é claro, eu não o pensava claramente e muito menos com estas palavras. Na verdade continuei a praticar a religião ainda por alguns anos mas a inocência inicial havia-se perdido. No liceu, com o estudo da história, comecei a aperceber-me de como o homem havia sido sempre bárbaro e continuava a sê-lo mas o que na verdade me convenceu que não podia haver deus, foi o procedimento dos animais uma vez que, em relação ao homem, havia sempre a desculpa do livre arbÃtrio. Porque é que um deus que era assumido como infinitamente bom poderia produzir um mundo tão infinitamente mau. Porque é que deus criara um mundo em que uma grande parte dos animais precisavam de comer-se uns aos outros para sobreviverem e eram mortos e usados, mesmo pelo animal homem, com tanta crueldade? Como é que poderia chamar-se bom a um criador que apetrechara os animais não só para comer-se uns aos outros mas para lutarem sobre sexo, sobre domÃnio, sobre território, sobre tudo... E mais tarde pensei ainda que não havia argumento algum a favor da existência de deus. Que havia muitas religiões, e algumas bem diferentes do cristianismo, mas que todas consideravam as outras falsas ou pelo menos, muito imperfeitas senão mesmo, puras superstições. Que quase todas as religiões, ou, talvez todas mesmo, haviam nascido e se haviam alimentado do medo . Que era certo que algumas religiões haviam servido de veÃculo à difusão de algumas boas ideias morais mas que também haviam servido de pretexto para os crimes mais horrendos e as mais safadas patifarias. E assim, a pouco e pouco, fui deixando de acreditar naquelas coisas. Mas desculpe estou aqui a maçá-la...
Geraldes de Carvalho
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