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Autor Tópico: Vida e Morte no Sanatório em 1940 ( 2)  (Lida 2611 vezes)
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Maria Gabriela de Sá
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« em: Março 30, 2014, 00:16:39 »

24 de Dezembro de 1940

      Ã‰ noite de consoada, mais uma longe da família, uma família que, mal vim para aqui, quase se esqueceu da minha existência. Podia ir à aldeia mas não me apetece. Sempre lhes foi difícil conviver com a memória de alguém enterrado numa floresta de ar rarefeito. Por isso nunca tentaram visitar-me… Tinha mulher e quatro filhos quando a maldita doença me enclausurou neste sanatório, sem esperança e como um condenado à morte.
 
      Quase vim inaugurá-lo, ocupando a ala dos pobres. É o que eu sou, um pobre, embora nas partes luxuosas também haja ricos. Mas a segregação é pouca  entre uns e outros. A doença irmana-nos, não há diferenças, somos iguais. Sempre soubemos que o destino era o fundo de uma cova depois de cuspirmos  pela última vez o sangue da morte.

     Ã‰ um edifício bonito da década passada, construído expressamente na montanha para curar a tísica pulmonar. Mas tenho sérias apreensões quanto à  sua sorte… No futuro dele restará apenas o esqueleto, um moribundo que  morrerá dia após dia de pé como uma árvore velha e sem serventia para boa
sombra. Todos nós temos o nosso destino e o dele advinha-se triste...

      Permanecerei aqui para sempre. Não quero sair da prisão a que a amaldiçoada tísica me condenou. Farei desta casa a minha morada, tal como muitos dos meus amigos que aqui tombaram vergados ao peso desta peste cinzenta que nos
maltratou sem dó nem piedade.

      Agora até podemos privar com os vivos com a liberdade que antes não tínhamos. Vamos a todo o lado, atravessamos paredes, deslizamos pelos corrimões, penduramo-nos nos plátanos da entrada e espreitamos para os  claustros junto às janelas de onde eu gostava de ver tremeluzir o sol por entre as árvores. Estou aqui com muitos desafortunados, uma legião de fantasmas de  que faço parte quando o corpo já não é limite. Tenho, porém, memórias eternas da desgraçada tuberculose…

      O Joaquim foi à terra, ao Douro, passar o Natal com a família. Apresenta  melhoras e os médicos deixaram-no ir. Ficámos ambos doentes, depois de  carregarmos centenas de sacos de mercadorias dos comboios para a estação do
Tua e desta para os comboios. Éramos os dois ferroviários.

      Quantas vezes, com fome e enregelados até à alma, não forçamos o corpo até ele nos atraiçoar!?

      A seguir juntamo-nos aqui, onde compartilhámos mágoas. Mas eu tinha de  morrer primeiro…

      Fui a casa uma única vez, antes de a minha mulher se esquecer de mim nos braços de outro homem, um dos meus amigos da taberna onde íamos beber os copos para esquecer a miséria dos tempos.  Mas ficar tuberculoso é uma
maldição ainda maior do que a pobreza.  Ã‰ pior do que matar a família  inteira, ir para à prisão e ser forçado ao degredo.

      Depois, decidi nunca mais por os pés na aldeia. Nem quando morri. Para quê voltar e apodrecer ainda mais no cemitério sem ter ninguém que me pusesse  umas flores na campa de terra em dias de finados?!

      Soube com antecedência que morreria a 15 de Agosto de 1938. O António Norte,  um dos meus companheiros falecido cerca de um ano antes, veio lá do outro  mundo com o cão, o Nestor, sentar-se aos pés da minha cama. Trazia ordens
de me levar. Disse-me entretanto que tinha saudades dos nossos jogos de  cartas quando, junto com o Zé da Moura e o Raul, jogávamos a sueca debaixo  das árvores, mal podíamos sair do interior da nossa prisão para o exterior, na  nossa evasão.

      Mal soube do fim próximo tratei de doar o meu corpo à Universidade de Coimbra. Tive a esperança de andar depois de morto onde nunca pude ir em  vida. Os tuberculosos não passavam de “ os pobres os malditos†que  conspurcavam o ar com inimigos invisíveis tornando-se indesejáveis em todo o  lado.

      Agora levito por aqui e fumo cigarros Definitivos encostado às colunas dos claustros, espreito por cima dos ombros dos vivos os filmes que passam no  cinematógrafo, vou às salas de desinfecção mexer naqueles aparelhos de raio x
com que nos radiografavam e até espio as raparigas. Quantas vezes eu não  senti falta de sexo com a mulher que já não tinha.

      Alguns doentes já notaram presenças etéreas aqui. Já nos sentiram mas não  têm medo. São os condenados a quem a família acha um estorvo querendo-os  ver longe da vista.

     Pobre de quem aqui vive, trabalha e morre. Pobres dos médicos e das irmãs  enfermeiras, todos os dias a lidarem com tanta miséria.

      Ã€s vezes sopramos-lhes para longe o ar que se preparavam para inspirar. É  quando o sentimos carregado com a bactéria maldita. É também uma forma de  agradecimento. Apesar de termos morrido, fecharam-nos os olhos com
compaixão.

      Vou num pulo ver o meu corpo mumificado a Coimbra e peço-lhes que voltem no  futuro, no ano de 2009, quando o Sanatório das Penhas da Saúde for uma  ruína. Apontem a máquina fotográfica para a entrada principal e vejam o
espírito de António Augusto aqui a vaguear para sempre. Mas não se assustem.  Respeitem-me, apenas. E, sobretudo, nunca duvidem da existência de fantasmas… Afinal, sou um deles…

 

« Última modificação: Abril 15, 2014, 18:09:09 por Maria Gabriela de Sá » Registado

Dizem de mim que talvez valha a pena conhecer-me.
Goreti Dias
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« Responder #1 em: Março 30, 2014, 12:33:12 »

Original e pungente. Retrato de uma época desgraçada. Oxalá não volte.
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Goretidias

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Maria Gabriela de Sá
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« Responder #2 em: Março 30, 2014, 13:58:36 »

É verdade, mas graças a Deus, o Sanatório das Penas da Saúde, que inspirou esta história foi, finalmente, recuperado.

Abraço

Gabriela Sá
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Goreti Dias
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« Responder #3 em: Agosto 20, 2014, 19:12:28 »

Ainda bem! Não pode tudo correr mal!
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E, se não for pedir muito, deixem um incentivo aos autores!
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Boas leituras!
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Boa noite!
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Brevemente, novidades por aqui!
Setembro 05, 2022, 13:38:48
Boa tarde
Outubro 14, 2021, 00:43:39
Obrigado, Administração, por avisar!
Setembro 14, 2021, 10:50:24
Bom dia. O site vai migrar para outra plataforma no dia 23 deste mês de setembro. Aconselha-se as pessoas a fazerem cópias de algum material que não tenham guardado em meios pessoais. Não está previsto perder-se nada, mas poderá acontecer. Obrigada.

Maio 10, 2021, 20:44:46
Boa noite feliz para todos
Maio 07, 2021, 15:30:47
Olá! Boas leituras e boas escritas!
Abril 12, 2021, 19:05:45
Boa noite a todos.
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Bom domingo para todos.
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Boa semana para todos.
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Boa tarde a todos.
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Boia noite para todos.
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Bom domingo para todos.
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