O lado sinistro do universo

Pronto! É Páscoa, não me interessa! Vou dizer qualquer coisa, vou talvez vasculhar nas minhas memórias porque ando com saudade de dizer coisas, hoje que me lembrei de um vestido azul feito pela minha mãe.

Era para eu levar à missa de aleluia no domingo, cedinho, quando já se sabia pelo repicar do sino que Cristo tinha ressuscitado. Eu, juntamente com os meus irmãos, não podia fazer má figura junto do Senhor. A mãe passava uma semana a fazer folares para a festa no forno da aldeia, à custa de muito sono adiado e sem compensação.

Às vezes o vestido atrasava e eu quase o sentia comprometido quando, ao raiar da manhã, ainda havia nele alguns alinhavos ao dependuro. Era preciso arrancá-los à força de dentes ou de tesoura.

Foi o que aconteceu com o meu vestido azul.
Quando acordei, ainda ele andava em bolandas nas mãos da mãe. Havia outro ao lado já pronto, mais pequeno, porque lá em casa era eu a irmã mais velha e as mães, parece-nos, em todo o mundo, têm sempre uma preferência pelas filhas mais novas. É o que diz o meu egoísmo. Talvez nunca me liberte da síndrome de precursora, para quem um carinho ou uma atenção chegavam sempre em segundo lugar.
Já o sino chamava os fiéis para a missa, ainda ela estava a dar a ferro o vestido, de maneira a eu poder vesti-lo quentinho. Eu que sempre fui uma criança de sangue frio e friorenta.

Passados uns dias, já me passeava na aldeia com ele, aconteceu como das outras vezes. Sobretudo as mulheres olhavam para mim e para o vestido fazendo apreciações, que depois faziam chegar à minha avó materna.

– A tua neta mais velha, a filha da tua Amélia, é diferente das outras miúdas. O raio da miúda, tudo lhe fica bem!

A avó ficava toda vaidosa e respondia que não eram os trapos que me faziam brilhar. Era sim a forma como eu os usava: com estilo, com classe. Talvez dissesse ela, se soubesse. Apesar disso, sentia em muitos desses comentários uma enorme inveja, um olho grande capaz até de causar danos, senão à neta, pelo menos ao vestido.

Desde bem cedo a aldeia inteira começou a colocar-me rótulos à medida do frasco que eu seria na cabeça de uns quantos alquimistas apostados em encher-me de qualquer coisa venenosa: eu era peneirenta, doutora, com as aspas da ironia, porque, quando saía da escola, à hora do almoço, levava sempre para casa um livro na mão, e porque não saía desalinhada nem me dedicava a correrias.

Por causa de tantos estigmas, um dia, uma amiga resolveu livrar-me deles, tentando ensinar-me a reaprender a andar. Mais uma vez, disse ela, e dizia toda a gente, eu tinha um caminhar muito ondulante, uma vaidade que não ficava bem numa rapariga. Tudo me fazia parecer uma gaja atrevida para coisas que não devia.

Nunca a Manuela, com a sua boa vontade de samaritana pudica, conseguiu substituir o que era natural por um andar trambalazanas e ajustado aos padrões de uma aldeia onde, quem tivesse algo de diferente, era taxado como eu, a peneirenta a quem muitos admiravam mas de quem nem todos tinham coragem de se aproximar.

O meu vestido novo era aos retângulos azuis e brancos, foi com ele que nessa Páscoa fui à missa e recebemos o Senhor lá em casa. Mas nem a bênção do padre na visita pascal, nem o facto de eu ter depositado um casto beijo na cruz de Cristo livrou o meu vestido azul do “olho grande.

Uma manhã, quando acordei, depois de, à noite, quando o despi, o ter colocado cuidadosamente numa cadeira, reparei com tristeza que a barra da saia tinha sofrido três golpes profundos de tamanhos diferentes. E, segundo a minha mãe e a minha avó, isso era sinal de que eu tinha sido acometida, juntamente com ele, de um temendo mal de inveja que era preciso atalhar.

– Tens de o coser (eu já sabia coser desde bem pequena) – disse a mãe – mas não pode ser com a mão direita.

Nunca mais terei um vestido novo feito pela minha mãe, entretanto no céu com Cristo, que subiu aos céus ao terceiro dia. Mas parece-me que o conselho dela terá de ser interpretado mais ou menos assim:

“Tudo o que for provocado pelo lado sinistro do universo tem de ser forçosamente desfeito da mesma maneira. Porque, nestas coisas, sobretudo em tempo de Páscoa e de fé, mais por mais, ou menos por menos não dão mais e a ciência fica então reduzida a coisíssima nenhuma.”