Portista portuense ( excertos)

Morávamos no quarto andar dum austero prédio de cantaria com o nº 107, por cima da casa do meu avô, que habitava o terceiro. No primeiro funcionava a sede dos escuteiros (ainda há poucos anos lá estava) onde aos sábados à noite uma barulhenta máquina de 16 mm passava filmes mudos projetados num lençol que pediam emprestado à minha avó. Aqueles filmes vindos da América eram tremendamente maçadores, porque o argumento era repetitivo: Baden Powel, Baden Powel e Baden Powel…
O meu pai cada vez que íamos a uma destas sessões de cinema, perguntava-me sempre se eu sabia o que eram os escuteiros. Tantas vezes me dissera, como é que eu não havia de saber? Mas não me deixava responder e adiantava ele próprio a resposta, com um sorriso malandro; “É uma quantidade de meninos vestidos de homem, comandados por um homem vestido de menino”, dizíamos em coro e ria-se, ria-se enquanto descíamos as escadas. Quando lá dentro, com o ar mais sério deste mundo, cumprimentava o “homem vestido de menino” , piscava-me o olho, e eu não aguentava o riso. Ele encolhia os ombros e desculpava-se “ O miúdo passa a vida a rir-se por tudo e por nada”.

No segundo andar havia uma loja que vendia acessórios e montava bicicletas. Era aí que eu me refugiava, embevecido a observar os carretos e pedais cromados e reluzentes, as porcas e parafusos cadmiados, os pneus de diferentes medidas que se alinhavam nas prateleiras e que exalavam aquele cheiro inesquecível a borracha nova, os guiadores cromados, os selins de molas com caixa de ferramenta, os faróis Miller etc . Ao princípio ficava ali à porta, de pé a espreitar lá para dentro, mas o Sr António mecânico, moço ainda novo que montava as bicicletas e mais tarde os “cuciolos”(uma espécie de bicicleta com um pequeno motor), um dia perguntou-me se eu o queria ajudar. Claro que eu não queria era outra coisa! A partir daí, “nomeado ajudante”, passei a receber as ordens:” Ó rapaz chega-me aí a 12/13, a chave de fendas, os serra cabos, os pneus 26 etc “ E ele rindo-se para os colegas, exibia os meus conhecimentos, fruto dos seus ensinamentos e vaticinava retorcendo as pontas do bigode preto:” este rapaz ainda vai ser um mecânico famoso”.

Esteja lá onde estiver Sr António, o meu obrigado pela felicidade que proporcionou à criança que eu era. Não, não fui um mecânico famoso, se calhar nem famoso fui noutros campos para onde as encruzilhadas da vida me dirigiram, mas a mecânica continua a ser, como foi ao longo de todos estes anos, o meu refúgio e paixão. A si o devo em grande parte.
Tantas vezes, quando hoje por puro divertimento recupero os meus carros e motas antigas, mãos sujas, cara enfarruscada de óleo queimado, de chaves ou martelo na mão, me lembro de si Sr. António e do que o senhor diria ao ver-me em tal estado. “ Eu não te dizia, Toninho? Eu sabia que tinhas queda para a mecânica! “
Um abraço bem grande para si!