Nação Valente
Contribuinte Activo
Offline
Mensagens: 1268 Convidados: 0
outono
|
|
« em: Janeiro 09, 2015, 19:54:54 » |
|
E depois do adeus
Levantei-me às sete horas e dirigi-me à cozinha para tomar o pequeno-almoço. Fazia este ritual todas as manhãs quase de olhos fechados. Tomei uma chávena de cevada quente, preparada pela dona Mariazinha e acompanhada, invariavelmente, por pão com margarina vaqueiro. No balcão da cozinha, um antigo rádio de válvulas, estava sintonizado na emissora nacional. Como todos os dias. O único tom dissonante vinha som emitido pela telefonia. Difundia estranhas canções que não me lembrava de ter ouvido,
Grândola vila morena terra da fraternidade
De quando em vez interrompia a música para passar um comunicado de um autodenominado movimento das forças armadas,
Aqui posto de comando…
Era um dia de primavera onde conceito de estação do ano se confundia com o conceito polÃtico de primavera Marcelista. Senti que uma nova primavera estava em movimento. Fiquei expectante, e contrariando a sugestão do comunicado dos militares resolvi sair de casa e dirigir-me ao meu local de trabalho. Apanhei, como sempre, o carro eléctrico 24, tão ou mais sonolento que a minha pessoa. Nos passeios caminhavam como formigas atarefadas, transeuntes indiferentes a qualquer possÃvel alteração nas suas rotinas. Sentei-me no banco onde já tinha lugar cativo. Abri o livro que me transportava para paisagens mais agradáveis durante a viagem. Ao meu lado sentou-se outro passageiro da madrugada. Durante o percurso apercebi-me que estava a partilhar a minha leitura. Os seus olhos sorviam gulosamente as letras acantonadas naquelas páginas. Fiquei confortado por alguém estar sintonizado com os meus gostos literários. Abstrai-me da leitura e mostrei-lhe o tÃtulo do livro. Disse que tinha tomado nota e agradeceu-me. William Reich e “Escuta Zé Ninguém†tinham ganho mais um leitor. Possivelmente mais um zé-ninguém, com consciência da nossa pequenez.
“Não são os maus conselhos os responsáveis pela sua desgraça persistente, mas sua própria pequenezâ€
Às oito horas entrei no departamento de análise de dados de circulação, da empresa onde trabalhava. Na sala só estava o Chefe, o primeiro a chegar e o último a partir. Cumprimentei-o por cortesia. Sentei-me na minha secretária junto à janela que tinha vista para o rio. Espraiei o olhar pelas gruas do porto. Um cargueiro que trazia no seu bojo sabe-se lá o quê, deixava que estivadores num vaivém coordenado lhe esvaziassem as entranhas. A minha observação foi interrompida pela entrada da menina Maria Ana. Quando chegava não deixava ninguém indiferente. Pelo porte altivo, pelas formas generosas, pelo vestuário arrojado, pelo perfume forte que a precedia como um cartão de visita. O Chefe levantava os seus olhos sexagenários, libertava-os das lentes graduadas e espreitava por cima dos aros massa, com cucupidez os seios prenhes de desejo da menina Maria Ana. Ao apertar-lhe a mão, o Chefe, levantava-se numa espécie de mesura e tinha dificuldade em segurar os olhos dentro das órbitras. Parecia que gostariam de viver, permanentente, naquelas mamas. Ao regressar da últimas férias a menina Maria mostrou a todos os colegas as suas fotos tiradas numa praia indefinida. O Chefe quase teve uma apoplexia. Correu mais tarde –boato ou realidade- de que o Chefe pedira, com o máximo sigilo, a uma funcionária intima da Ana, para lhe conseguir uma fotografia onde as mamas desafiavam a solidez do biquÃni.
Nesse dia de Abril fomos executando as tarefas determinadas. As conversas seguiram o rumo de todos os dias normais. Mas, para mim, não era assim. Ansiava pelo fim do trabalho. Às dezasseis horas dirigi-me para a zona onde decorriam as operações militares. Subi a rua do Carmo. Gente apressada circulava pela calçada. Ao aproximar-me do largo com o mesmo nome, vi soldados imberbes acantonadas nas esquinas, acompanhados por metralhadoras e morteiros. Reparei que os canos das espingardas exibiam cravos. Impressionou-me o contraste entre a escuridão do metal e a luminosidade do vermelho.
Em frente do quartel da GNR estacionavam tanques. Uma multidão enchia o espaço. As árvores, nuas de pássaros, estavam ocupadas por pessoas sem asas, mas que sonhavam voar para outra realidade. Um capitão, dessa outra realidade, em cima da chaimite, exigia a demissão do senhor Presidente do Conselho. A situação arrastava-se. O comandante da força mandou os seus homens disparar. Uma saraivada de balas esburacou as paredes e introduziu-se, no interior do quartel, sem autorização, desflorando vidraças. A multidão continuava impávida e não arredava pé. Os soldados tinham como missão principal conter a multidão fora do perÃmetro de actuação. Às dezoito horas, o que restava do regime, rendeu-se. Veio um general para receber o poder não cair na rua. Mas o poder estava na rua.
Eufórico, integrei-me num grupo eufórico, que seguia para a sede da DGS. Gritavam palavras de ordem:
O povo unido nunca mais será vencido, Morte aos pides,
A rua da DGS estava repleta de gente. Exigiam a rendição da polÃcia politica que continuava firme no seu posto. Subtilmente, um cano de metralhadora, espreitou por uma das janelas. Descarregou fogo e morte. Quando as balas voaram na direcção dos manifestantes pacÃficos, um jovem excitado passou à minha frente. Parou, dobrou-se e caiu. A minha roupa recebeu salpicos do sangue que saÃa do seu corpo. Como ele caÃram mais alguns. Fugimos dali. Lembrei-me dos anos da guerra, quando éramos atacados em emboscadas pelo inimigo. Mas isto foi pior. Estávamos indefesos. Apenas querÃamos um paÃs livre. A mancha vermelha simbolizada pelos cravos foi regada com sangue inocente.
Cheguei a casa com uma estranha sensação de alegria e tristeza. Um contentamento descontente, como disse o poeta. A dona Mariazinha ,ao ver-me entrar, ficou estarrecida. -Mas está ferido? -Felizmente não. Fui salvo por um escudo humano. Estou bem. E a senhora em breve poderá ver o seu filho em liberdade.
Naquela primavera de 1974 vivi dias muito intensos. Não consegui ficar indiferente. Increvi-me num pequeno partido de esquerda, a FSP. Era dirigida por um revolucionário romântico, proveniente dos católicos progressistas, e que conhecera num protesto contra a ditadura na capela do rato. A actividade polÃtica absorvia-me. Foram tempos de grande entrega. Conheci gente que queria ajudar sem exigir nada em troca. Não era carreirista. Havia vida para além da polÃtica. Também convivi com outros, então desconhecidos, que haviam de vir a exercer altos cargos na estrutura do Estado. E fizeram por isso. São contas de outro rosário.
Continuei a exercer a minha actividade profissional. Na sala de trabalho respirava-se mais alegria. O Chefe, à espera da reforma, usava e abusava de um frase tipo para se referir ao futuro: “quando chegar o meu vinte e cinco de Abril, é que serei livreâ€. A menina Maria Ana estava cada vez mais espampanante. Um dia, levantou-se da sua secretária, que ficava ao lado da minha, aproximou-se e colocou uns gráficos à minha frente. Disse: -Ó democrata (era assim que me tratava, por causa da minha actividade polÃtica) podes ajudar-me a esclarecer uma dúvida? Ao mesmo tempo encostou a sua anca farta à minha cadeira e deixou que as mamas pousassem no meu ombro. A sua cara deslizou descuidada pela minha barba de pretenso revolucionário. Dos seus lábios salientes adivinhei um sabor indescritÃvel Tive a sensação que circulação sanguÃnea estacionou no rosto. Um calor abrasador ruborizou-me as faces. Pensei que os pelos faciais se iam incendiar. Tive vontade de a deitar na secretária, como fazia um detective de romances policiais, chamado Ross Pin, à s suas garotas. Respirei fundo. Olhei de soslaio para o Chefe. Senti o impacto dos seus olhos como setas envenenadas. Sacudi delicadamente a menina Maria Ana. -Volta ao teu lugar, disse. Vou analisar e depois dou-te a resposta. E darei. Nunca deixo cair uma promessa.
Saà da empresa e caminhei durante uma hora à beira do rio. Uma brisa suave refrescou-me as ideias. Precisava de reflectir. A mente não me ajudava a encontrar uma saÃda. Entre a imagem do Chefe e o corpo da menina Maria Ana não lobrigava uma terceira via. Recorri à memória de cinéfilo e lembrei-me de “tudo o vento levouâ€.
- Amanhã penso nisso.
Ao regressar à hospedaria tive uma agradável surpresa. O Toni tinha aproveitado a amnistia que o novo governo tinha concedido aos desertores, e ia regressar para visitar a mãe. Devia chegar a qualquer momento. A mesa do jantar tinha mais um prato. Não seria suficiente. O Toni chegou com companhia. Abraçou a mãe e disse: -Trago-te uma surpresa! - Não me digas que trazes uma francesa? --Negativo. Trago um espanhol. Espero que o trates bem. Entra Paco. . Do escuro do patamar saiu como um D. Sebastião, o avantajado Paco Caballero. -Como es la senhorita? -Tomei a decisão de trazer o Paco que nunca tinha saÃdo da raia e queria conhecer Lisboa. Era o mÃnimo que podia fazer, para retribuir o que fez por mim. Mãe, trata-o bem. -Seja bem-vindo, disse Mariazinha, sem conseguir evitar um ligeiro rubor.
-Ao chegar ao meu local de trabalho tive uma surpresa anunciada. A expressão facial do Chefe, aquando do episódio com a menina Maria Ana, previa borrasca. A minha secretária fora deslocada para longe dos seios que o obcecavam. Perguntei-lhe: -Porque mudou a minha secretária. Respondeu: - No lugar onde estava influÃa no seu rendimento profissional. Considerei-me desconsiderado mas amochei. Não valia a pena alimentar uma discussão com um indivÃduo perturbado por mamomania. Sentei-me no meu novo lugar. Conversa acabada. A pesar disso, iniciei uma espécie de pré-namoro com a menina Maria Ana. Quero dizer que, não era carne nem era peixe, nem sim, nem sopas. Ãamos ao cinema ver filmes tipo Lagoa Azul. CurtÃamos o sol à beira-mar. Jantávamos em restaurantes discretos. Sempre acompanhados do seu irmão. Pelos vistos, a dama queria dar uma de moça recatada, à procura de aconchego para o futuro.
Em determinada altura comecei a estranhar a sua ida ao gabinete do director, o engenheiro Casanova, um pinga amor, solteirão, que se deslocava num MG descapotável de dois lugares, em qualquer estação do ano. Eu sabia que ela ia em funções profissionais. O que se tornou anormal foi o aumento das visitas para despacho. Também o Chefe começou a questionar tal vaivém. Um dia seguiu-a. Entrou de supetão no gabinete e ficou chocado. A menina Ana estava a despachar no colo do engenheiro e sem a presença do irmão. Talvez por falta de cadeira. Seja como for, o acontecimento começou a circular à boca pequena pelo departamento. Tirei uma conclusão imediata: a Maria Ana sonhava alto e jogava em vários tabuleiros. Claro que se tivesse sido menos dotada de dotes fÃsicos e um pouco mais de raciocÃnio lógico, teria percebido, que com aquele cavalo não saia do estábulo. Pela parte que me tocava não estava disposto a ser o burro que carrega. Concentrei-me de novo no estudo para me abstrair. Matriculei-me numa turma de preparação AD-HOC, para me candidatar ao ensino superior.
Continua
|