Nação Valente
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outono
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« em: Fevereiro 06, 2015, 16:15:18 » |
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Já não me espantam as contradições da natureza humana. Do mesmo modo aceito, naturalmente, as minhas. Antes angustiava-me com a ida ao dentista. Agora espero, ansiosamente, que chegue o dia. Chego até, como imitação daqueles relógios que contam os dias ao contrário, a riscar os dias no calendário. E isto desde que a doutora Isabel, a minha dentista, ficou viúva. Ao contrário do que mentes invejosas possam pensar, o meu interesse, garanto, que se limita a prestar solidariedade, a uma alma destroçado pela perda do marido, apesar da sua reputada infidelidade. É certo que a doutora é também licenciada em partir corações, e muitos devem andar alvoroçados, mas isso não pode ser a motivação de um bom samaritano.
Quando entrei na sala de espera o meu coração, de bom samaritano, batia aceleradamente.Tive de respirar profundamente para diminuir a ansiedade. A recepcionista do sorriso brilhante informou-me:
-A doutora ainda não chegou. Depois baixando o tom, como quem revela uma inconfidência sussurrou "continua a ter problemas relacionados com o ex-marido. Partiu mas deixou os sarilhos". A conversa foi interrompida pela chegada da dentista. Reparei no mesmo porte de fazer parar o trânsito, mas a expressão denotava alguma tristeza inesperada. Enquanto me dirigia para o consultório a frase "partiu mas deixou sarilhos" perseguia-me como um fantasma.
-Boa tarde doutora.
Manteve o rosto fechado e um olhar que parecia ausente daquele local. Em fracções de segundos passaram-me pela imaginação os mais desvairados absurdos.
-Boa tarde, disse secamente. Sente-se. Vamos então fazer os moldes?
-Foi para isso que cá vim. De certo não se esqueceu?
-De maneira nenhuma. Desculpe-me mas hoje não estou nos melhores dias...
Notei que procurava ultrapassar a frieza inicial
...recebi uma notícia...que me dilacerou e ...
Senti que estava com dificuldade em articular as palavras, que lhe saiam tão pesadas como chumbo. Recorri à lugares comuns de psicologia de café:
-Mas doutora sou seu paciente à muito tempo, comungamos algumas coisas, como a paixão clubista, e isto na vida acontece o mesmo que no desporto, um dia perde-se, noutro ganha-se. Se tem a ver com o assassínio do seu marido, a vida continua...
- São assuntos pessoais. Vamos ao que interessa.
Acomodei-me na posição que me determinou, e num último olhar, não pude deixar de apreciar a beleza de um rosto prisioneiro da melancolia. As suas mãos enluvadas davam a sensação que recusavam executar a tarefa. Um tremor contínuo atrapalhava a feitura dos moldes.Parecia que uma raiva contida se descarregava de forma involuntária. Respirou profundamente.
-Vamos parar, disse, mostrando alguma serenidade. Fiquei aliviado. Com tanto instrumento de tortura à mão estava a sentir-me em maus lençóis. Nunca se sabe quando alguém, mesmo com cara angelical. perde o controle.
-Hoje, continuou, não consigo concentrar-me. Nem que fosse de ferro conseguiria aguentar. Quem conseguiria depois de saber que uma amante do Ernesto declarou que tem um filho dele e que o vai propor como herdeiro. E ainda acrescentou que tem estudo confirmado de ADN. O meu marido partiu mas esqueceu-se de levar os sarilhos.
Despejou este discurso num jacto, como se aliviasse o estômago de incómodo repentino. Talvez não pretendesse fazê-lo perante um paciente, embora velho conhecido. Contudo, há momentos em que os filtros pessoais, sofrem tão grande impacto, que se rompem inesperadamente.
-Tudo bem doutora. O meu dente pode esperar. O que é preciso é que tudo se resolva da melhor maneira. Foi o que consegui dizer, com a certeza que era uma banalidade sem sentido. Mas que poderia dizer? No fundo, de uma ou de outra forma, resolver-se-à. E então voltarei ao consultório onde espero encontrar a bela dentista a fazer jus à sua beleza e à sua competência.
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