Maria Gabriela de Sá
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« em: Março 10, 2015, 20:40:22 » |
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Mais um cigarro e uma nuvem de fumo pela sala. Esta rapariga é uma chaminé ambulante, fuma como uma condenada sem amanhã. Na verdade, não o tem. Perdeu-o no dia em que se apaixonou por Carlos, o colega casado de quem engravidou mal se deitou com ele, na cama onde a mulher não tinha ainda arrefecido. Não sei o que a Nora viu nele. Um rapaz meio fuinhas, de óculos encovados, cinco cêntimos de altura. E, já nessa época, pelo tempo que passava no bar a emborcar cervejas secas sem amendoins nem tremoços, era de prever o bêbado em que se tornaria. Já era bêbado, então, julgo eu e talvez julgasse toda a gente, mas ainda disfarçava. Ou talvez ninguém quisesse ainda atribuir-lhe esse estado por puro preconceito com a palavra.
Talvez não tivesse sido a Nora a apaixonar-se por ele mas o contrário. Ela era bonita, inteligente, teria dado uma investigadora competente, capaz de lhe fazer frente e de o ultrapassar pela força de uma competência que sempre lhe fora reconhecida. Mas não se permitiu isso. Se Nora algum dia sonhou com uma carreira brilhante na investigação do cancro, mal, depois do divórcio, casou com Carlos, viu, quase de imediato, evaporar o seu sonho junto com o bafo das panelas onde passou a cozinhar a vida dos dois. Entretanto, vieram as febres, as vacinas e os médicos, nas noites em que ele parecia não dar pelo choro da bebé, quando Nora tinha de se levantar para lhe mudar as fraldas e medir-lhe a temperatura. Já ouvi dizer que não era Carlos de quem Nora gostava mas sim de Sérgio, um homem bonito, alto, com os olhos verdes acutilantes e igualmente casado. Nora deve ter sofrido desde sempre da tentação da vertigem, gostar de labirintos, de vidas complexas de que depois pudesse ter coisas para contar. E Sérgio, se algo queria dela, não passaria de encontros fortuitos e que não lhe pusessem o casamento em perigo. Até a paixão se esgotar no último sémen do derradeiro encontro.
Depois, a Nora, veio a união com Carlos e, a seguir a Luísa, a filha, dez anos mais tarde, o Bernardo, enquanto ela, morta no casamento e na profissão, sofria, ano após ano, de uma nova doença, como se tudo não passasse de terrível maldição. As cirurgias sucediam-se, a uma coisa ou outra. Enquanto isso, o alcoolismo de Carlos tornava-se num dado adquirido, tratado ainda a eufemismos, e ela perdia a beleza para uma magreza que a transformara num esqueleto sem graça que ela tentava adornar com roupa comprada compulsivamente nas lojas de marca.
Agora, Nora fuma como uma chaminé ambulante, enquanto Carlos se tornou no previsível alcoólico que emborcava cervejas secas no bar e que lhe bate há muito por Nora já não gostar, também há muito, de ter relações sexuais com ele. Num dia de nervosismo e vergonha, ali junto com a nuvem de fumo, no meio de inconfidências, disse-me que só suporta o marido que foi de outra, talvez então já bêbado, não por causa dos filhos, já adultos entretanto, mas por ser constantemente ameaçada de morte. E é também por isso que ainda tem relações sexuais com ele, juntamente com o nojo que isso lhe provoca…
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