Maria Gabriela de Sá
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« em: Agosto 03, 2015, 10:54:31 » |
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OS CIGANOS
Tenho uma varanda bonita e florida onde sardinheiras às cores, brancas, vermelhas, rosa e lilás, se debruçam sobre uma das duas entradas de um prédio verde com 10 moradores, distribuídos por outros tantos blocos de apartamentos. Ao longo destes 17 anos de moradora, nem sempre paciente, os problemas têm sido diversificados, bem à medida da cidadania de certos condóminos que não fazem a mínima ideia do que é viver em propriedade horizontal e que tentam, a todo o custo, impor o seu egoísmo individual aos direitos de um todo.
As minhas tribulações começaram, desde logo, com um construtor que, mancomonado com o Deus e o Diabo superintendentes nas construções de edifícios, lhe incrustou dois clandestinos que Deus e o Diabo não viram durante a fiscalização. Mas, adiante, atrás vem gente.
Um dos primeiros "adiantes" com que tive de me confrontar foi quando, um dia, um dos condóminos do rés-do-chão queria à fina força impregnar-me o primeiro andar com o cheiro das sardinhas, frangos, salsichas e costeletas que pretendia assar numa churrasqueira que tentou instalar debaixo da varanda onde as bonitas sardinheiras nascerem passados uns anos e vivem ainda, embora infelizes com o espectáculo que lhes é dado observar todos os dias lá em baixo à boca da rua.
Talvez o segundo "adiante" tenha sido protagonizado pelos cães dos vizinhos e respectivos cocós. De facto, no cheiro da sua inocência e no espectáculo da sua beleza, as singelas esculturas inúmeras vezes decoraram, num estilo decisivamente barroco e cheio de rococós, os jardins frontais, espaços comuns mas de uso exclusivo dos condóminos ou respectivos arrendatários, onde sempre teve origem a minha fama de "megera do prédio".
A administração é rotativa. Mas, mesmo quando não me está atribuída, lá tenho eu de engrossar a voz para suprir a inércia de quem se devia impor em nome da ordem e do bem comum. ( Ou então os olhos das pessoas são felizes na contemplação de merda...) Depois sou acusada de ser pouco diplomática, dura e contundente, quando há muito constatei que nestes casos falinhas mansas é o mesmo que chover no molhado.
O caso recente é o jardim do lado esquerdo em frente à rua. É o tal espaço comum de uso exclusivo de quem lá mora, dois arrendatários que, a primeira coisa a fazer mal chegaram, foi destruir o resto do jardim lá deixado pelos anteriores moradores depois de o desemprego os ter atingido ao ponto de os impelir ao regresso a casa dos pais por não poderem pagar a renda. Um pequeno cão, habitante de uma enorme casota encostada junto à entrada após ter estado já em diversos sítios, também deu uma boa ajuda. Desde sempre, do outro lado da corda, onde vive preso desde que chegou, encarregou-se de escavar o jardim sempre no mesmo sítio. A corda nunca lhe permitiu ir mais longe, digo eu que não entendo muito bem certos amores que os donos dedicam aos seus animais.
Durante um tempo vi, com alguma paciência, mãos e olhos pouco sensíveis à estética das coisas, sachos e pás e arrancarem plantas que ainda perduravam por lá da outra vizinhança e que, depois de serem usadas, ficavam abandonadas por todo o lado com cabos obstruindo mesmo a passagem à entrada do prédio onde se debruçavam como agora as minhas sardinheiras no primeiro andar;
Enquanto isso, as promessas de que ali iria nascer um pequeno oásis relvado, destinado aos primeiros passos de uma criança, davam-me alguma esperança de que as minhas chatices com os moradores seriam coisa do passado.
O oásis demorava em chegar e, no seu lugar, persistentemente e dia após dia, via nascer um estaleiro de vassouras, esfregonas, baldes de lixo, uma mesa com as saias levantadas a toda a hora dias e dias replecta de objectos inúteis que aí ficam depois de usados meses e meses;
Cordas de um estendal que, do lado de fora, aniquilam as vistas às portadas, permanentemente obstruídas por sacos plásticos, toalhas etc. num estenderete de gente que parece não saber movimentar-se senão na desordem;
Triciclos, voadores, chinelas, vasos e o longo role de péssimas vistas que as minhas sardinheiras contemplam diariamente;
Finalmente, as minhas sardinheiras não suportam nem a visão nem o cheiro do cocó que dão uma alma de merda aquele sítio.
Cansada de esperar por uma organização que não chega, tem-me apetecido munir-me de uma vassoura, saltar as grades, apanhar a roupa da corda e cortar aqueles fios onde os sacos plásticos e a roupa dão um mau aspecto gritante a todo o prédio. Apetece-me igualmente arrumar a mesa, tirar de cima todos os trastes, arrumá-los num sítio onde nunca mais os veja, colocar os baldes, as vassouras as chinelas e todo o resto num sítio apropriado, escondido,dentro de casa onde os moradores podem fazer o que quiserem desde que não guardem lá gatos mortos que infestem o prédio com cheiro a cadáveres. Apetece-me, finalmente, remover o cocó interminável do cão, lavar o chão e cortar a relva, a ultima coisa que lá foi colocada, para, pensava eu, o espaço se tornar de novo digno da minha sensibilidade visual e olfactiva. Já para não falar na sensibilidade das minhas sardinheiras...
Mas é claro que, sendo embora o espaço uma zona comum, eu não posso fazer nada do que me tem apetecido.
Recentemente, coloquei a questão ao administrador e instei-o a falar, ou com a proprietária ou com a arrendatária.
A resposta, assim uma coisa tipo "xoninhas", foi a de que não queria chatear-se com ninguém. Como se aquele gritante mau estado de coisas não me chateasse a mim e a todos os vizinhos, especialmente a um a quem, recentemente, um amigo, depois de ter vindo a passar na rua várias vezes e ver a degradação prolongar-se no tempo, lhe ter perguntado se no canto esquerdo viviam ciganos. E chateia-me a mim, a quem a minha esteticista disse que nunca compraria o apartamento que está à venda por causa de semelhante vizinhança.
Mesmo assim, lá ficou de sussurrar uma palavrinha melada à senhoria, nomeadamente sobre o regulamento, minucioso e assinado por todos os condóminos numa reunião convocada para o efeito e a que a maior parte das pessoas parece ligar muito pouco.
Mais de 15 dias passados, nada.
Até que eu, na última sexta-feira, quando ia de fim-de-semana para a cidade do meu coração, ao cruzar-me com a vizinhança, ainda mais ou menos a medo e como quem está a fazer o que outros deviam, interpelei-a:
- Desculpe, O administrador ou a senhoria já falaram consigo? - Não - responde a mulher, com a filha ao colo - . Mas porquê? Há algum problema? - Aconteceu uma coisa chata. Vieram perguntar a um vizinho se no canto, ao fundo, moravam ciganos. - Ah, por causa da nossa confusão - acrescentou. - Sim. Espere então que um dos dois fale consigo... Ah, ela reconheceu e até foi humilde, pensei eu durante toda a viagem, enquanto imaginava o espaço limpo e imaculado quando regressasse na segunda-feira, sem aquelas malfadadas cordas e o estendal sempre cheio de roupa, vassouras, baldes, esfregonas, mesa com as saias descidas, tudo um brinquinho e o chão sem cocó. Mais a relva com as ervas cortada.
E fui feliz no meu fim-de-semana longe dos problemas de vizinhança. Quando voltei, tudo permanecia interminável e igual, como permanece. Juntos, a mulher o e marido, sei lá, estão mesmo à espera que o administrador ou a senhoria lhe provoque umas cócegas nos ouvidos. Ou então talvez esperem mesmo que alguém lhes faça um desenho...
Palpita-me que terei de ser eu porque as minhas sardinheiras nunca souberam nem sequer pegar num lápis...
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