cada vez mais te pertenço

cada vez mais te pertenço

na arte o tempo escoa sem deixar de existir

à beira da cacimba reproduzem-se os meus olhos
como uma ave deserta
irreal como a erva que concilia o presente

dá-me reflexos inquietos
difusamente melodiosos
a exposição do meu interior complexo
sabendo a violinos de água doce
por mais gotas que minha alma capte
nunca me serás suficiente fonte

soluçam os montes e as campinas
a várzea donde colherei cerejas

dá-me a delicadeza dos frutos também

a face hiemal das folhas onde repousa o amor
que enlaça os bosques
o feliz tumulto da celebração
oculto na minha paz ausente de vestes
no sopé do sol
tudo é prata e o som se esconde nas horas
não há delírios nem tolhimento na perdição dessa cantoria
nem deveres por cumprir no desencontro das amoras
a pedra que habito é de minutos macios
de júbilo
meu calor se propaga insinua-se à minha figura – cintura e mãos –
sequer conheço o esboço a mesura essa porção insistente da vida
a cintilar ametistas no farol que não se adia
ao gosto dos talvezes

no espaldar da contraluz aquieto a vista sem deixar de criar
a placidez de um sorriso

capto a linha horizontal triplicada
desejando serenar
na estrela polar onde me conheço
– o gemer das emas no acaso do musgo

o arco me curva o coração
– escudo-me quanto é possível e te reconheço
pragmaticamente à nudez da fala
e um sem número de ruas outras
breviário de cinza e salmo fleuma

sou terço e conta e prece e nonsense
o iluminado avesso da alma
que vislumbro – umbral a raiar noutro lugar
que somente a mim revela – ou a ti – ébano
alecrim de montanha e deusa mística
no ruído da água – amparas-me os desertos inundados de mim - nenhuma

o idílio de ser-te debrum sobre o madrugar silente dos teus braços
a febre incessante de sentir-te – que outra dádiva não me reservo senão saber-te ininterrupta ambição do sem fim

leve senhora dos filetes lava-me as palavras
antes que o silêncio as deite
numa escultura de arcanjos e avencas
interesse ávido a fundir-se
na eleita espera – universo do teu colo

alguém profere sulcos
dos que cultivam
as linhas gastas que se querem em ti, absolutamente todas
são mais o labor de outrem do que o meu
pelo desdém e desprezo que te causou
pela ausência de entendimento
agruras perdições tudo é obra tua
por mim e por ti

a arte
não a atriz

espreitam-me as marcas sem importância
e se por isso me sentires próxima
será amiúde a minha presença a carregar-te de eternidades
a inexorável revelação das jornadas que nascem aquém dos teus olhos
e são derramadas sem conciliação
inconscientemente escolhidas para compor o jardim
onde acontecerá a dádiva de nos cicatrizarmos

na ondulação das notas semelhantes à minha alma
quero-te sem cuidados
mesmo sem pensamentos
– eles por vezes são dispensáveis, irrefragáveis –
numa proximidade que por agora, me permite o sonho
– lembrança de haver um dia para estar em ti

artimanha esperança imorredoura de quiçá respirar o sol em tua boca
no entanto ainda há uma luz protegida na concha das mãos
a colheita árdua dos arrozais e o princípio dos pássaros
o seio telúrico à espera da gota
serenidade mais ancha de tudo o que é sereno
onde retorno em silêncios de argila e sussurros de ágape
no ardil debruado da linguagem
margem infinita de lume e precipício
por que te chamo nascente
e floresta e poema e música
canto e pintura e felicidade
bordas na abundância das estrelas teu chamado
em trilhas irrecusáveis
em cada ramo em cada orvalho em cada símbolo grafado

então encontro-me
soma de todas as figuras
cores e mordaças
delírio de tangências e chuvas e épocas, reverencio-te

na hachura das estrelas e da terra
e não há pressa na orgia das nossas almas
no gesto nas impressões
nas algas
dos membros onde te sacias e permaneces atriz e leiga
carinho e sinceridade
como se além desse instante
não coubesse noite nem dia

na dialética das horas multiplicadas em alegria
ambas à espera de algo ainda maior do que somos
mínimas porções de sal sobre o céu

rebeldes
temos um arsenal de luzes esculpidas na incerteza d’alma
à frente das nuvens insones
fantasias rotundas à medição do temor
à cena tranquila como numa cascata seca
acenamos às recordações à composição das mariposas
e não pensamos tratados nem verdades – o gesto é quase ligeiro construímos forjado na rocha o nosso verbo
e em cada sílaba existe a pronúncia benevolente dos rios – tudo é sutil
tudo é próximo e insidioso

nos trincos da pedra há a saliva da noite e a brandura das fontes – esperemos a aurora – a luz surge serenamente e nos oferta aberturas sem jamais esvair-se – na clareira que chamamos de sombra e residimos únicos, uníssonos – índoles brandas ocultas nas palavras.

do livro "A linguagem dos pássaros" Editora Patuá (2014)
by Tere Tavares