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Autor Tópico: O Esfaqueador da Régua  (Lida 65129 vezes)
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Maria Gabriela de Sá
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« Responder #30 em: Novembro 02, 2015, 15:02:04 »

( Estranhas achas para incendiar uma fogueira )

          Olha-me só o anónimo Caramelo, armado polícia dos costumes! Falo em anónimo, no masculino, mas também posso tratar as coisas no feminino. Sim porque da famigerada carta não resulta claro o sexo deste anjo papudo! Um tipo apostado em interferir na minha relação com M. e denegrir a juventude do meu pai imputando-lhe a paternidade de um filho bastardo! Se tudo fosse verdade, seria demasiado perverso o alegado filho ser logo o M.! Não havendo impossíveis nesta vida, por muito mulherengo que o velhote tivesse sido, acho pouco provável este azar de duas pessoas, até há pouco desconhecidas. E logo agora, depois de eu baixar a guarda e acenar com os rebuçados ao M., muito antes de saber que ele me iria propor a alternativa da hóstia no meio da ponte... Se eu pensasse como possibilidade dois irmãos envolverem-se num romance, nunca me teria inscrito no passeio pedestre ao longo de parte da morta linha do Tua, ali ao lado da nova barragem, organizado pela Câmara de Carrazeda de Ansiães, em que M. também se inscreveu para filmar para a posteridade uma glória do passado de Trás-os-Montes. Foi o ponto de partida para isto tudo, que também pode ser um triste nada.

          Olhando a anónima missiva sob todos os ângulos, por agora resultam duas possibilidades quanto a tratar-se de um homem ou de uma mulher. Por um lado, parece ser o arrazoado de uma fulana com vontade de me tirar do seu caminho para, a seguir, se encafuar na cama de M. com uma aliança no dedo e com pedidos insistentes para ele lhe fazer o filho com que julgue amarrá-lo ao casamento. E é claro que a minha primeira suspeita recai inteirinha na Menina Aida. Principalmente agora, depois do inócuo jantar, um balde de água fria na cabeça tonta da citadina moçoila, quando a rapariga foi levada a ter de se contentar com rebuçados em cujos papéis M. embrulhou uma choruda promoção. A mudança de local não passa de um pormenor perante o ordenado ao fim do mês bastante mais recheado, quando eu penso que a Aidinha não passa de uma oportunista.

          Do outro ponto de vista, estas afirmações sobre a eventualidade de um incesto parecem vir de um gajo que pretende adoptar na minha vida a posição detida por Aidinha na vida de M.. Quando falei no vinho “Cabeça de Burro” e nas vinhas do Douro, este epistolar anónimo deve ter pensado logo em grandes quintas de Vinho do Porto e, eventualmente, num papel na nova novela da SIC “Coração de Ouro”, depois de nos ter centrípetado aos dois para bem longe um do outro sob a ameaça de uma novela Queirosiana de cunho intimista. E é claro que não lhe passaria pela cabeça eu desatar numa choraminguice indo, de seguida, a Carrazeda de Ansiães, à extensão do tribunal da comarca de Vila Flor superintendente nas questões de direito de todo o concelho, levar um bocadinho do meu cuspe para uma análise à posterior de ADN. No fundo, o que este meu camuflado admirador pretende é saber se entre mim e M. já houve cama. Mas, não tendo ele nada a ver isso, o mais que lhe posso dizer é que, depois de tantos dias passados desde o episódio na gare da Estação do Tua, já lavei demasiadas vezes a cara para ainda lá ter uma amostra, pequenina que fosse, do ADN que M. pudesse ter lá deixado quando aí depositou aqueles dois beijos insossos com que se despediu de mim.

          Agora, prestes a assinar-se entre mim e M. o Armistício, nas questões relativas a este imbróglio vou limitar-me a agradecer-lhe pela mudança de posto da Aidinha e pela sua substituição pelo boy do escritório, o Eduardo. Claro, desde que o rapaz não me faça concorrência desleal se por acaso for gay. Não irei colocar na cabeça de M. minhocas enquanto, adoptando um bom ar de sonsa, sondarei o meu pai sobre a questão levantada em mais este episódio, atrevo-me a afirmar, acabadamente surrealista.

          Depois, agora que já tenho, fresquinha e acabada de sair da forja, a resposta da cartomante, não vejo razão para não ir à Régua confrontar-me cara a cara com M.. A mulher não viu qualquer perigo subterrâneo  nas cartas a ameaçar um namoro entre os dois. O rapaz, Doutor ou Engenheiro não importa quando os títulos académicos estão tão desvalorizados pela banalização, merece uma segunda oportunidade. E importa,  sim,  é M. ter nascido em boas famílias alentejanas e algarvias, dessas a quem a História concede um lugar de eleição e que começou com Remexido, um mártir a quem os descendentes seguiram as peugadas militares nas guerrilhas do reino  até chegarmos a este sítio onde todos vivemos e que às vezes me parece  mesmo um Estado de Sítio. Eu acredito mais nesta história do que nas alarvidades propaladas por uma Aidinha com dor de cotovelo ou pelo anónimo disposto a ser um novo promotor de vinho do Douro e a deixar para trás a cidade onde se dedica a inventar hipóteses malucas para me ver ao seu lado vestida de noiva.

          É certo que já começo a ficar farta com tantas viagens de comboio para trás e para a frente. Como a minha amiga Goreti diz, depois de tantas indecisões e entraves, eu já merecia mais do que o Golf de M., talvez até adulterado pela marca quanto à sua eficiência despoluente, e do meu Citroen 1200 de cilindrada a cair de podre e a precisar de substituição. Talvez uma limusina ou um avião que me levasse ao céu nas asas do amor…
« Última modificação: Novembro 02, 2015, 22:18:23 por Maria Gabriela de Sá » Registado

Dizem de mim que talvez valha a pena conhecer-me.
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« Responder #31 em: Novembro 02, 2015, 21:43:22 »

Ainda tenho que dar uma boleia a ambos no meu bólide rsrsrs
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Goretidias

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outono


« Responder #32 em: Novembro 03, 2015, 20:01:10 »

Isto ainda não acabou

Depois do esperado dia de todas as esperanças aconteceu o dia de todas as desilusões. M descartou-me, com muita diplomacia. Pondo o nome aos bois, digo até que me deu um pontapé no traseiro com muita pinta. E eu a pensar que M era um verdadeiro cavalheiro e afinal revelou-se um traste. Mas, mesmo assim, continuo a gostar dele. Além de loira devo ser também burra. E na despedida ainda me disse com a maior cara de pau “ sabe Aidinha vai-me fazer muita falta. Quando partia para o Douro ficava cem por cento descontraído e livre de preocupações para me dedicar à Gaby, uma morena com quem quero ter um relacionamento sério”. Pois, era o que eu suspeitava.  E fiquei a saber por M que há forças poderosas a empurrá-los para os braços  um dos outro. E até oferecem a grinalda à noiva desejando vê-la a dizer o sim na Sé.
  Foi por causa dessa mosquinha morta que M me despachou para junto do velho babão que é director geral. O velho barrigudo, que tem idade para ser meu pai, não perdeu tempo. Começou logo a fazer-me assédio.
-Olhe senhorita Aida recebi boas informações sobre o seu serviço, mas na minha avaliação ultrapassou as expectativas. Estou muito satisfeito. E a menina junta competência a uma grande beleza, o que nem sempre é coincidente.
-Ora ora, senhor director.
-Qual senhor director, qual carapuça. Isso é coisa do antigamente. Apesar da idade sou um homem moderno. Mantenho com os meus colaboradores uma relação de proximidade. Trate-me por Francisco Maria.
-Como quiser senhor director, perdão Francisco.
Que mais podia dizer? A minha sobrevivência está nas suas mãos. Vou ter de fazer jogo duplo, isto é dar uma no cravo e outra na ferradura, pois o velho já começou a fazer o choradinho. Que está divorciado, que vive só, numa mansão da Foz, com dois gatos siameses, um labrador, e um canário. O que ele quer sei eu? Se está a pensar que lhe vou dar wiskas aos gatos, friskies ao cão e alpista ao canário está muito enganado. Vou fazendo umas  concessões para levar a cabo a minha estratégia. Para princípio de aventura aceitei o seu convite para ir assistir a uma sessão de

 poesia. Disse-me: “sou um homem de cultura, admiro a literatura e adoro poesia; fui convidado para um sarau de declamação de poemas de escritores de um site que se chama Escritartes; vão ler poemas de Dionísio Dinis, Goreti Dias e  Alice Santos, entre outros; o declamador será o Duarte Rosa, um rapaz com boa presença e filho de uma família tradicional de vinhateiros de S. João da Pesqueira; vou-lhe oferecer um livro do site Colectânea Arte Pela Escrita Sete, para se ir familiarizando”.
Não sou muito dada a poesias. Gosto é de quadras populares, especialmente daquelas que se dizem no S. João, enquanto levo com um alho-porro na cabeça. Sim, que prefiro tudo ao natural. O que me atrai nessa sessão é mesmo o tal Duarte. Talvez seja uma carta que me caia na mão para fazer o meu jogo. Quando me pavonear com Duarte pela Baixa, o M vai mudar de opinião e há-de vir comer-me à mão. Pelo sim, pelo não, dei uma olhadela a esse livro e li uns excertos de poemas dos autores anunciados e que me sensibilizaram:

Dionísio Dinis (Sem título, 151)
Talvez em teu contentamento
Os dias eternos sejam o quotidiano
De todos os desejos impossíveis…

goretidias (Mato a noite)
Galgo montanhas, vomito rios,
Choro pérolas nacaradas de amor por inventar
E assinalo o riso,
Desenhado e puro,
Na vontade de ir mais além.

Alice Santos (Tu)
Tu és
Poema na penumbra
Quando meu corpo no teu repousa.

Resumindo os poetas:  “De todos os desejos impossíveis, galgo montanhas, vomito rios, quando o meu corpo no teu repousa”. E podes estar certo M que por ti galgarei montanhas, para o meu corpo no teu repousar, mesmo que esse desejo pareça impossível. O meu desejo em te abraçar é maior que um rio caudaloso. Fui nada e criada nas Fontainhas. Sou uma tripeira de gema. E vou mostrar com quantos paus se faz um barco rabelo. Ou não me chame Aida da Purificação. Mesmo tendo que engolir o velho (salvo seja) anseio por essa sessão de poesia.
« Última modificação: Novembro 03, 2015, 23:21:24 por Nação Valente » Registado
Dionísio Dinis
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« Responder #33 em: Novembro 03, 2015, 20:47:14 »

A pouco menos de se tornar um livro de sucesso. Sem favor algum!
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Pensar amar-te, é ter o acto na palavra e o coração no corpo inteiro.
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Goreti Dias
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« Responder #34 em: Novembro 03, 2015, 20:48:55 »

Oh! Oh! vou galgando as vossas páginas com muito gosto! Venham mais, venham todas!
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José Manhente
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"Ama como a estrada começa" (Cesariny)


« Responder #35 em: Novembro 04, 2015, 01:02:09 »

         A emboscada

      Ao saltar todo pimpão do estribo para a gare ferroviária do Peso da Régua, M. respirava o ar de um verão de São Martinho já próximo. Assobiava um trecho da banda sonora d'A ponte do rio Kwai, assim tão feliz da vida, como que imaginando o reencontro com Gaby.  No lado oposto daquela plataforma, em que os comboios da Linha do Douro vão no sentido do Porto, um homem de gabardine cinzenta fitava-o. M.estacou quando ele e o homem se entreolharam. O sujeito, embora relativamente sinistro não lhe era totalmente estranho. Desviou contudo o rosto lá para o fundo da linha e disfarçando o interesse em M., olhou para o relógio de pulso como que simulando enfado por ver a hora a passar e o comboio sem chegar. Incauto, M. avançou para a saída da estação e já cá fora caminhou pelo lado direito da Rua José Vasques Osório, sempre rente aos antigos azulejos que retratam as vindimas e as gentes do Douro. Um mural cerâmico em homenagem ao Marquês do Pombal, responsável por ter delimitado a Região Demarcada do Douro, em 1756, que é nada mais do que a mais antiga do mundo. E era ali, em Peso da Régua, a capital da Região Demarcada do Douro, que o coração de M. batia cada vez mais acelerado.
      Nisto, ao passar em frente ao edifício da Santa Casa da Misericórdia, alguém, por detrás dele chamou-o:
      - Hey, pssst!
      M. voltou-se para trás e reparou naquele homem de gabardine cinzenta que se dirigia para junto dele. Ficou surpreendido e sem saber o que dizer. Naquela hora de almoço a rua estava deserta.
     - Desculpe, você não é o M.?
     - Sim sou eu mesmo. A quem devo a honra cavalheiro?
     - Eu chamo-me Duarte Rosa...
     - O seu nome é-me familiar...só não sei de onde.
     - O nome Gaby, também lhe é familiar, certo?
     - Ah! Já estou a ver de onde o conheço! Estivemos juntos naquele passeio pedestre ao longo da linha do Tua. Como tem passado Duarte?
     - Para lhe ser franco, venho passando muito mas muitíssimo indignado com a sua pessoa!
     - Perdão?
     - Não percebeu? - E olhando para os dois lados da rua, para se certificar que ninguém os estava a ver, Duarte Rosa tirou do bolso uma navalha de ponta e mola, cujo tesão instantâneo da lâmina rapidamente se encostou ao pescoço de M. Apavorado com aquela séria ameaça, tentou não reagir e limitou-se a ouvir o que o agressor estava para lhe dizer:
     - Ouve cá uma coisa M., a Gaby é minha! Desde a minha adolescência que não passo um dia sem a imaginar no altar comigo, entendes?!
     - Pois, pois, compreendo...
     - Não, não compreendes meu pilha galinhas! Pensas que vens aqui ao Douro para ma roubares?! Enganas-te redondamente. Mas isso acaba hoje e aqui! - E num golpe rápido espeta-lhe a lâmina na barriga ensopando de sangue o tecido.
      M. cai de joelhos no chão enquanto Duarte larga a correr novamente para a estação de comboio, provavelmente para se evadir do local do crime. Minutos depois, um transeunte passa e pegando no telemóvel liga para o 112. Duarte, nervoso no interior do comboio, espera ansioso pelo silvo da partida. Segundos depois ouve-se ao longe a sirene da ambulância do INEM. E M. está inanimado no chão, com o sangue ainda a jorrar no cimento.
      
« Última modificação: Novembro 05, 2015, 03:24:09 por José Manhente » Registado
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« Responder #36 em: Novembro 04, 2015, 08:01:43 »

Não matem já o M! A história tem que continuar!
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« Responder #37 em: Novembro 04, 2015, 17:47:06 »

Estranha agressão

A notícia acordou a manhã de Peso da Régua. Correu célere pelas margens do Douro vinhateiro. M, um jovem com uma carreira brilhante como executivo,  numa empresa do Porto, foi esfaqueado próximo da estação de Peso da Régua. O suspeito da agressão terá sido outro jovem de S. João Pesqueira, de nome Duarte, e filho do autarca e vinhateiro Valdemar Rosa. São desconhecidos os motivos, embora se fale em motivos passionais. O ferido foi transportado para o hospital. A GNR tomou conta da ocorrência.
Maria,a mãe de Gaby, acordou sobressaltada com a informação que estava a ser divulgada  na Rádio do Alto Douro. Levantou-se e alvoroçada e chamou pelo marido. O barulho da água do  chuveiro abafou o grito da mulher. “Zé aconteceu uma desgraça?. Estão a dizer na rádio que M foi atacado na estação de Peso da Régua. O agressor terá sido o Duarte, o filho do nosso compadre Valdemar”.  “Que estás a dizer mulher? Será que ouvi bem? Acaso não tiveste um pesadelo? Não. Estou certa de ter escutado a notícia”.
Zé saiu do banho matinal, enfiou o roupão, respirou fundo e procurou acalmar a mulher. “Eu não acredito. Não deve passar de um equivoco. Antes fosse, dizia Maria. Ouve. Estão sempre a repetir”. A rádio martelava a informação continuamente: “enviámos um repórter para S. João da Pesqueira, a fim de sondar o pai do eventual suspeito. Daremos novos desenvolvimentos”. Zé, depois de um silêncio conseguiu balbuciar: “não acredito, não acredito”. Não vejo o Duarte a praticar tal barbaridade. Sempre foi um paz de alma, incapaz de fazer mal a uma mosca. Aliás é uma alma sensível.
Por ele ponho as mãos no fogo. Sabe-se que ele quer é escrever poemas e declamá-los nas tertúlias portuenses. Se o conheço bem, deve estar a preparar-se para participar no Tributo a Mário Viegas, na capital do norte“.  Mas, interrompeu Maria, levantam a hipótese de ser um acto motivado por ciúmes? Ciúmes mulher? Tem Juízo. O Duarte não tem tempo para se envolver com mulheres. Este mato tem cachorro. Dizem até que a agressão pode estar relacionada com a disputa da nossa Gaby. Deixa-me rir Maria. Não confundas os teus desejos com a realidade. O Duarte não liga à Gaby desde a infância. Por aí, decerto que ficaria solteira.
Os pais de Gaby dirigiram-se para a cozinha. Maria não parava de tremer. Zé abraçou-a e pediu-lhe que se sentasse. Dirigiu-se ao fogão; “Hoje faço eu o pequeno-almoço. Não podemos fazer nada. Vamos esperar. E afinal como é que está M? E a Gaby ainda está a dormir? Até agora não há notícias, espero que recupere”, respondeu Maria. “Sobre a nossa filha não sei como a hei-de informar? Olha mulher vai acabar por saber. Procura serenar. Quando ela acordar vamos dar-lhe a notícia com todo o cuidado. Agora vou telefonar ao Valdemar.
« Última modificação: Novembro 04, 2015, 18:00:33 por Nação Valente » Registado
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« Responder #38 em: Novembro 04, 2015, 21:36:39 »

A urgência do Hospital de S. João está caótica. Um caso complicado chegou aqui, vindo do Peso da Régua. Os hospitais da zona não estavam preparados para a dificuldade com que se depararam. Um jovem foi esfaqueado após uma viagem de comboio desde o Porto. Não se sabe bem o que fez deslocar um executivo àquela região, para mais de comboio.
Certo é o estado gravíssimo em que se encontra. Foi já operado de urgência para controlar a hemorragia, mas o estado de debilidade era extremo. Após várias transfusões de sangue, a situação acalmou e o jovem está agora em coma induzido. Ao que parece, o fígado foi atingido pela navalha com que o esfaquearam e não é certo se sobreviverá sem um transplante. Comentam as enfermeiras que estiveram na sala de cirurgia que provavelmente não se aguenta sem receber um fígado ou parte de um, vindo de um dador vivo ou morto. Ainda bem que já é possível receber transplante de fígado de um dador vivo. Mas também se comenta que o rapaz nem irmãos tem. Não se sabe se tem família. Ainda não apareceu aqui pai ou mãe… E sem família, onde se arranja com a rapidez necessária um transplante? A lista de espera é imensa, graças sobretudo às cirroses e hepatites que por aí abundam. Aliás, nunca se ouviu por aqui falar em alguém esfaqueado no fígado desta forma. Intestinos de fora já eu por aqui vi. Ou não tivesse eu que limpar algumas vezes o que deles caiu para o chão no atropelo de enfermeiras e maqueiros. O que a gente vê por cá!
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Maria Gabriela de Sá
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« Responder #39 em: Novembro 04, 2015, 22:37:26 »

        (De novo a otária)
          
          Aqui vou eu, às 6h30 minutos da manhã, a acelerar para o primeiro comboio que parte do Tua para a Régua. Levantei-me cedo, peguei no carro, que fiz deslizar pela rua abaixo em silêncio até estar suficientemente longe para o ligar. Não disse nada aos velhotes para evitar mil e uma perguntas, embora lhes tivesse deixado um papel no balcão da cozinha a comunicar onde ia, ainda antes de desligar o telemóvel para eles não me moverem uma perseguição telefónica.
 
          Mal preguei olho durante a noite, ainda a digerir os últimos acontecimentos. Saltitando de pensamento em pensamento qual canguru australiano, fartei-me de pensar na dissimulada da Aidinha, a jogar em dois tabuleiros simultaneamente enquanto prepara o assalto final a M.. Oportunista como é, é claro que vai sacar o que puder ao velho director. Ainda que tenha de o acompanhar nas tertúlias poéticas que ele frequenta, ao invés de ir aos concertos do Tony Carreira ou ficar em casa a ver a Casa dos Segredos, provavelmente o programa preferido dela!

          O meu transporte está a chegar e vem às moscas. Ninguém é tão madrugador como eu para se levantar com as galinhas e ir a um encontro algures no meio de uma ponte na Régua, na capital do vinho. Está uma manhã de sol radioso, o céu abriu-se todo em sorrisos para mim. Oxalá tudo corra bem. Vou aproveitar para relaxar com a paisagem deslumbrante que, lado a lado com o comboio, se abandona como uma mulher apaixonada nos braços do seu homem. Quem dera que o Duarte, um gajo tão bonito, não fosse gay. A minha vida sentimental não seria tão atribulada. Eu bem o vi atrás de de mim e de M. no passeio pedestre da Linha do Tua, mas o fulano agora caminha tão devagar como se andasse sempre com dois sacos de batatas de baixo dos braços. E além dele há uma Aidinha interesseira a tentar minar-me a felicidade, um gajo que não sei quem é a escrever-me cartas anónimas,  talvez com o intuito de me cair no prato à custa de intrigas palacianas.
 
          Este rio Douro é o rio mais belo do mundo. Quando eu for velhinha, depois de fechar os olhos, quero que as minhas cinzas durmam nestas águas o sono da eternidade. Estes socalcos são as mais bonitas escadas para o céu. O vale, as vinhas na sua cor outonal e a abandonarem as folhas vermelhas ao vento numa despedida anual, é a tela mais bonita que Deus pintou. Vincent Van Gogh deixou de criar a sua mais bela obra por nunca ter conhecido o Douro.

          Quando chegar à Régua, como ainda é um bocado cedo, vou tomar um lauto pequeno-almoço, se o nervoso miudinho já tiver abandonado as minhas tripas onde um pequeno nó me obstruiu o apetite. A seguir vou tirar umas fotos à beira-rio. E como moro num país de azulejos apreciado pelos turistas, vou tirar também umas fotos a uns painéis famosos que há por aqui a retratar a actividade da região. Entretanto M. chegará, se o comboio não se atrasar.

          M.! Mas, afinal que homem é este que eu conheço apenas pela inicial do nome? E logo eu, avessa a abreviaturas e siglas com hipóteses de encaixe em mil e um disparates para uma boa imaginação. Há poucos diminutivos que eu consiga fixar com facilidade. Pj para a Judiciária, JB para as relações fortes do Whisky quando deixou de se brindar com champanhe para se beber algo que não vem de uvas para contrariar a tradição.
 
          Hoje vou saber que raio de nome se esconde atrás daquela Inicial. Ninguém se chama simplesmente M.. mesmo que não tenha mãe nem pai para lhe dar um nome, ainda que respigado de uma telenovela de sucesso. A menos que seja um disfarce. Talvez o raio do homem, seja Manuel, ou Mário, mesmo Micael  como o Carreira.

          Finalmente a Régua e a Estação. Felizmente ainda é cedo. Continuo uma pilha de nervos, devo estar mesmo apaixonada.

          Há que séculos não vinha de comboio a esta cidade que conheci em pequenina, quando vinha com a minha mãe á feira e ela me comprava aqueles rebuçados amarelos embrulhados em papel vegetal. Mas há aqui um cheiro estranho. De repente fiquei agoniada. Deve ser da fome. É melhor ir mesmo comer porque o comboio do M. ainda deve demorar uma boa hora. Com transbordos em Caíde com que a CP se lembra de incomodar os passageiros é só atrasos de vida.
 
          Que raio, hoje esta gente anda toda agitada. Ouço uma ambulância a gritar como louca, deve ter havido um desastre gigante ali em frente à Misericórdia. Não sei se vou aguentar passar por ali. Sou um bocado sensível ao sangue e com a fraqueza ainda desmaiava se por infelicidade tivesse sido derramado algum. Entretanto, ainda um pouco longe, vejo uma ambulância e o aparato é muito. Por entre dois homens debruçados e já com um cordão de gente à roda,  observo o que me parece ser  um corpo  caído no chão.

          Comigo cruza-se uma mulher e pergunto-lhe o que se passou.
          - Parece que um homem foi esfaqueado…
          - Por quem?
          - Não se sabe muito bem. Talvez por outro homem, porque crimes assim são típicos dos homens.
          - Se calhar questões de saias, não?
          - Ninguém sabe. Aconteceu tudo há pouco tempo e parece que ninguém viu o agressor.
          - E quem é a vítima?
          - Não é daqui e acho que é desconhecida. Mas não está lá com muita saúde. Eu só vi o homem de relance e pareceu-me mal. Era sangue por todo o lado. Oxalá se safe. Deus o ajude.
          - Oxalá. Obrigada. Tenha um bom resto de dia, porque o começo não foi grande coisa.

          Realmente não acertámos lá muito bem com a escolha do dia para os rebuçados na ponte. Vou voltar para trás e esperar na Estação a chegada de M. tal como combinámos. Entretanto vou rezar um Pai-Nosso por aquele desgraçado que deixo para trás com as tripas à mostra sem saber o que vai acontecer com ele. Vou comer qualquer coisa no bar.

          Este café não presta para nada, este pão deve ser de ontem e está atolado em manteiga.. Ou então sou eu que hoje acordei em dia não.

          O comboio das 10H acabou de chegar, a estação já está vazia não vejo M. em lado nenhum.
 
          Depois de 15 minutos à espera, julgo que M terá sido mais uma vez acometido de indecisão. Pregou-me a muleta, com toda a certeza. Deve ter sido o canário que não o acordou a horas de viajar.

          O melhor é ligar o telemóvel. Ele deve ter uma boa explicação para o sucedido.
 
          A minha mãe já tentou ligar-me várias vezes, acabou agora de entrar uma mensagem. É ela a dizer-me que o meu pai está a caminho para me levar de volta a casa. Recusa dizer-me o que se passou. Não deve ser nada de mau, pelo menos nada de tão mau como o que acabou de suceder ao pobre do desconhecido. As más notícias correm depressa e as rádios regionais estão sempre sobre o acontecimento para o comunicarem ao mundo em primeira mão.
« Última modificação: Novembro 05, 2015, 16:56:54 por Maria Gabriela de Sá » Registado
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"Ama como a estrada começa" (Cesariny)


« Responder #40 em: Novembro 05, 2015, 03:12:21 »

Cuidados Intensivos  (pausa na narrativa enquanto M. permanece em de profundis)

«It's all right, Ma...
(...)
estou só a esvair-me em sangue, / o sangue vai e vem, / tenho muito sangue.
Não tenho é paciência, nem tempo que baste / (nem espaço, deixaste-me pouco espaço para tanta existência).
Lembranças a menos / faziam-me bem, / e esquecimento também / e sangue e água a menos.
Teria cicatrizado / a ferida do lado, / e eu ressuscitado / pelo lado de dentro.
Que é o lado / onde estou pregado, / sem mandamento / e sem sofrimento.
Nas tuas mãos / entrego o meu espírito, / seja feita a tua vontade, / e por aí adiante.
Que não se perturbe / nem intimide / o teu coração, / estou só a morrer em vão.» MAP


     Em coma induzido, hipotermia controlada e ligado à máquina com a vida por um fio, M. estava completamente em modo offline. A viagem de helicóptero desde o Centro Hospitalar de Vila Real até ao Porto, aquela cirurgia de urgência com diagnóstico reservadíssimo, enfim, nada faria prever nos tempos mais próximos a recuperação do jovem executivo.
     Uma nota de imprensa do Gabinete de Comunicação do Hospital São João adiantava apenas isso: "Diagnóstico bastante reservado, sem que o quadro clínico do paciente possa evoluir favoravelmente nas próximas horas". De resto, as redacções e as agências noticiosas que especulassem quanto lhes aprouvesse. Contactadas fontes próximas da Polícia Judiciária, apenas se sabia que "estavam a decorrer as diligências necessárias para apurar em concreto o móbil do crime e as inquirições aos potenciais suspeitos".  
     Essa perigosa abstracção de se presumir que Duarte Rosa era um gay foi um logro de todo o tamanho. Afinal o individuo gostava pelo mesmo de uma mulher e estaria disposto a recorrer a qualquer expediente para afastar o rival. E soube ser discreto. Seguiu sempre Gaby e M. naquele fim de semana em Carrazeda de Ansiães. Espiolhou o facebook dela e fez-se amigo dele na mesma rede social. Comentário aqui, um like ali, e afinal o Duarte é um porreirão! Pfff! Berimbau! Como as aparências iludem!
     Agora, que o "armistício" entre Gaby e M. não ficara traçado a régua e esquadro, como seria o estado de alma dela acaso se confirmasse a pior das previsões?
« Última modificação: Novembro 05, 2015, 03:27:35 por José Manhente » Registado
Maria Gabriela de Sá
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« Responder #41 em: Novembro 05, 2015, 13:43:50 »

          ( A revelação do crime)
        
          Quando o meu pai chegou e me pôs ao corrente do que se passara com M. nem queria acreditar. Uma comoção intensa apoderou-se de mim enquanto as lágrimas me tomaram o rosto de assalto, ao mesmo tempo que o  cordão das minhas ideias se quebrava e eu ficava impossibilitada de formular um raciocínio coerente. Afinal M, movido a ansiedade tal como eu, acordara igualmente antes do sol e partira num comboio mais cedo.
          Era impossível! Ninguém merecia tal coisa, por mais indeciso que fosse! E eu estivera muito próxima de M.  sem ter tido a coragem de me abeirar dele, transformado num farrapo humano por um Duarte que se revelara um assassino. Se não consumado, ao menos tentado. Não me perdoava ter deixado M. sozinho,  entregue à sua sorte e  a esvair-se em sangue enquanto eu, no bar da estação, tomava um café e comia um pão duro que, além do mais, me pareciam água choca e um pequeno bloco de mármore de Estremoz partido em dois.
          À medida que o carro percorria o serpenteado da estrada até ao Pinhão, do outro lado do rio, e eu me acalmava, lamentava mil e uma vezes não ter estado junto de M. para o amparar naquela hora difícil e nas que se seguiram. Nunca vivi coisa assim, nem nada que se parecesse, mas estar sozinho numa circunstância daquelas devia ser terrível. Além do mais, sempre poderia fornecer algumas informações sobre ele, quem era, o que  fazia, onde morava...Podia? Será que podia? Afinal só sabia que trabalhava numa multinacional, que tinha Aidinha como apaixonada convicta e disposta a tudo. Além de que essas informações me tinham sido dadas por terceiros e eu não sabia até que ponto seriam credíveis. Ninguém lhe conhecia família, a vida de M. era mais solitária do que uma rosa do deserto encolhida sobre si mesma. E que nome e apelidos poderia eu ter indicado aos paramédicos da ambulância quando o socorreram ali em frente à Misericórdia da Régua onde eu vi o ajuntamento?
          Lembrando-me da carta anónima que alguém fez o favor de me enviar, talvez um apaixonado secreto com vocação de romancista, enquanto o meu pai conduzia subindo agora para Alijó, sobretudo para desviar a atenção da manhã sangrenta que a Régua tinha presenciado, com algum tacto perguntei-lhe por que razão eu não tinha eu mais irmãos. E daí até lhe ter perguntado onde tinha ele feito a tropa levou um pequeno lapso de tempo.
          Quando me referiu o Quartel de Lamego vi logo que, pelo menos por aí,  a imprecisão da missiva era gritante,  e muito mais gritante ficou quando confidenciou ter encontrado  a minha mãe depois de um desgosto que lhe levara a primeira namorada grávida de um filho. Tinha morrido na sequência da queda de uma parede  sofrida  quando andava a apanhar dióspiros em Provesende. Só após isso conhecera a minha mãe, que o ajudara a secar as lágrimas e o fizera encontrar de novo o amor.
          A seguir a tal revelação  fiquei bastante mais tranquila por um lado. Mas, por outro,  a angústia envolvia-me  receando que esse facto fosse agora irrelevante para a minha felicidade.  Perante o quadro grave de M. na nota informativa do Hospital de S. João no Porto, quase lamentava não ser irmã dele  para lhe dar parte do meu fígado no decisivo transplante para lhe salvar a vida. Já por outro lado  ficava no ar a possibilidade de eu firmar o meu namoro com M. que, Deus havia de querer, sairia do coma dentro em breve e daria mais pormenores sobre o bárbaro ataque de que fora vítima. Eu ainda não acreditava que tivesse sido o Duarte a oferecer à Júlia Pinheiro, ao João Paulo Rodrigues e ao Hélder Carvalho  mais um crime para eles debatem nas manhas da SIC.  Não sei se foi de facto M. a dar,  a quem de direito,  informações sobre o Duarte ou se foi o narrador de um romance atreito a picardias sanguinárias com origem em relações perversas.
          Seja como for, a descoberta do criminoso está agora a cargo da Polícia Judiciária. E se tiver sido de facto o Duarte a manchar as mãos de sangue, a GNR e as outras forças policiais bem podem mover-lhe uma caçada em S. João da Pesqueira, na terra dele e  nos sítios onde tão bem se escondeu o Manuel Palito,  que só foi descoberto 34 dias após o acto bárbaro que mandou a sogra e a mulher para o outro mundo, se não estou confusa com tantos crimes. Além de que, obviamente, nunca me casaria com um fulano como ele, pese embora o seu gosto por  poesia de diversos autores declamada  no Palácio dos Viscondes de Balsemão, ou na cadeia  para um auditório de prisioneiros carentes de cultura depois de ele ser capturado com pompa e circunstância.
          - Pai, acreditas mesmo que tenha sido o Duarte a esfaquear M.? Sabes que consta à boca pequena que ele é gay?
          - Já nem sei! Mas de onde é que tiraste essa ideia?
          -  Foi visto por uma amiga minha, a Goreti, na última manifestação gay no Porto…
          - Olha, já não digo nada! Afinal vêem-se caras e não corações!...
          Quando cheguei ao Tua para levar o carro de regresso a casa  ponderava seriamente  uma visita a M.,  a sofrer, talvez a agonizar,  no Hospital de S. João. Só precisava de uma mala com o essencial.
« Última modificação: Novembro 06, 2015, 00:09:14 por Maria Gabriela de Sá » Registado
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« Responder #42 em: Novembro 05, 2015, 20:35:57 »

A curiosidade arrastou-me os pés cansados até aos cuidados intensivos. Não sendo a minha área de trabalho, não nos é vedada, em abono da verdade a circulação pelo hospital. Por norma, visitamos os amigos e os amigos dos amigos em horas de não visita. É um ato de carinho, um olhar meigo sobre quem se vê sozinho nestas salas tão frias de afeto.
Mas não foi o afeto que me encaminhou hoje. Foi tão somente a vontade de saber alguma coisa sobre o pobre rapaz de fígado esfaqueado.
Ali está ele! Branco, mais branco que a tinta gelada das paredes. Sim... branco mais branco não há... Mas não tenho vontade de brincar hoje. O jovem adormecido à conta das drogas que lhe vão misturando no sangue das suas veias através de tubos e tubinhos, numa parafernália doida de plásticos até dizer chega, não mexe uma pestana. Fiquei olhando pelos vidros aquele ser inanimado durante largos minutos.
- Olá, Maria! Conheces o rapaz?
- Não, vim ver por curiosidade. Tão novo e tão apressado para outra viagem...
- Apressado? Não! Apressaram-no! Queira Deus que o não consigam. Mas isto está complicado. Muito mesmo. E, sabes, ninguém da família apareceu por aqui. O que é ainda mais estranho do que o próprio atentado que sofreu... Nem amigos? Que coisa!
- Se calhar, ainda ninguém deu pela falta dele...
- Achas? Um pão destes? Tu és uma santa, mulher! Então o rapaz não há de ter uma namorada... ou um namorado? Sabe-se lá se não foi uma briga com o namorado...
- Eu sou santa e tu és má! O rapaz ali esticado (sem roupa, presumo) e tu a imaginares um namorado...Enfim, arranja-lhe uma mãe que o acarinhe...
- Ou uma namorada, ias tu a dizer...
- Primeiro é preciso que se safe. Que dizem os médicos?
- Andam à procura de um dador compatível, mas sem família...
- Pois... uma desgraça traz sempre às costas uma serra de misérias, lá diz a minha amiga Aidinha...
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"Ama como a estrada começa" (Cesariny)


« Responder #43 em: Novembro 06, 2015, 00:22:56 »

                             Quem é afinal este incógnito M.?

     Sim, aquele rapaz ali adormecido sob os efeitos da morfina não é certamente o mesmo M. que inspirou Ian Fleming a construir a personagem homónima, chefe do Serviço Secreto de Inteligência britânico – também conhecido como MI6, nos vários romances sobre James Bond, vulgo agente 007.
     Dois dias após a entrada de M. nos Cuidados Intensivos, apareceu Didi no horário da visita. Didi era um pretenso vizinho. Morava, dizia ele à enfermagem, no apartamento ao seu lado e estava no café debaixo do prédio quando se deparou, numa leitura rápida dos "leads" do tablóide O Carteiro da Manhã, com a fotografia do homem esfaqueado junto à estação do Peso da Régua. Pela discrição, dera um pulo da cadeira naquele momento e alertara os outros clientes do Café. E que tinha que ir ver o seu vizinho! Antes disso, pegou na chave de casa dele, que a tinha desde que M. lhe propusera trocar as chaves para alguma eventualidade ou quando era a ocasião das férias. Ocupou-se de imediato com o regadio das plantas lá de casa e a dar a paparoca ao Imperador e a alpista ao canário. Plantas e bichos estavam deveras famintos e quiçá gratos aos cuidados de Didi.
     - ...mas então diga-me lá Sr. Didi, este seu vizinho tem família? - Instou a enfermeira responsável de turno.
     - Tem pois! Além do gato e do canário, o meu vizinho tem um irmão em Angola. Trabalha no sector aeroportuário e raras vezes vem a Portugal. Na última vez que cá esteve trouxe a mulher, uma mulata bem bonita por sinal. Vieram pelo Natal e já não ficaram para a passagem do ano. - entretanto fitou a placa identificativa por cima do homem em coma e observou - Já agora, reparo que escreveram M., porquê? Estão em poupança de marcadores?
     - É o nome com que ele se identificou já em desfalecimento dos sentidos. Não foi encontrada junto dele a carteira com os seus documentos.
     - Mas o jornal não falava em assalto, pois não? - perguntava outra.
     - Pode ter-lhe sido subtraída para simular um, digo eu! - supôs um assistente operacional enquanto encolhia os ombros.  
     - ... e com isso afastar a suspeição de alguém. - Concluiu Didi.
     - Mas afinal, o senhor que é vizinho sabe o nome completo dele? - Voltou a enfermeira responsável.
     - Sei. Ele chama-se Matias Costa Azevedo. Assina sempre as actas das reuniões de condomínio com a inicial M. e é assim que gosta que o tratem... ou melhor, gostava...
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« Responder #44 em: Novembro 06, 2015, 14:00:56 »

       ( A PJ em campo)  


       Hoje, com a mala à entrada da porta  pronta para voar até ao Hospital de S. João, fui surpreendida pelos Inspectores Malange e Contreiras. Com a PJ incumbida da investigação, desta, tal como eu previa, resulta que o Duarte estará inocente do bárbaro crime que lhe vem sendo alegadamente imputado, incluindo na comunicação social.
          De facto, mal soube da estranha viagem de comboio em direcção ao Pocinho para fugir da Régua, a minha empírica experiência, depois de ter passado horas e horas a ver o CSI, concluiu que uma criatura que acaba de cometer um crime daqueles não fugirá de comboio. Ele deve ter fugido de carro e o crime foi mais do que premeditado. Tanto mais que deve ter bastos vestígios de sangue nas mãos, na roupa, nos sapatos e por todo o lado. Além de que, segundo me disseram os dois investigadores, o Duarte, à hora dos acontecimentos, estava a chegar ao Aeroporto Francisco Sá Carneiro num voo proveniente de Telavive, onde assistira ao jogo dos israelitas e do Futebol Clube do Porto. Com as informações que o davam como o provável Esfaqueador da Régua, a porta dele,  foi a que primeiro recebeu a visita da PJ. A seguir, para fazer prova no processo, os investigadores vieram embora com o bilhete do avião na mão onde o nome “Duarte Rosa estava escarrapachado, e que a seguir foram a Carrazeda de Ansiães consultar o registo de inscrição do “Duarte” que, tal como nós, participou no passeio.
          A mim, efectivamente, pareceu-me o Duarte. Mas, como referi, ele caminhava bastante mais atrás, sem se aproximar muito de nós. Por isso agora estou em dúvida. Embora o Duarte, quando recebeu os polícias à porta, tenha igualmente referido que não participou em passeio nenhum. E, sendo assim, alguém se terá feito passar por ele, presumindo igualmente os investigadores que o perfil do Facebook onde o fulano se aproximou do M. seja falso.
          Agora a hipótese mais plausível é que M., ou Matias Costa Azevedo como agora é conhecido depois de o Didi, o vizinho, ter vindo a terreiro clarificar o mistério que rodeava o verdadeiro nome de M., tenha sido esfaqueado por alguém com interesse em vê-lo fora do seu caminho e provavelmente com ligações a Duarte Rosa.
          Foi essa a razão por que vieram hoje os dois Inspectores cá a casa ao romper da aurora. Sendo a carta anónima que eu recebi conhecida de meio mundo, há, segundo eles,  uma grande probabilidade de se tratar mesmo de um gajo com dois interesses simultâneos, conquistar-me e ver-se livre do mais directo concorrente.
          E pronto, assim levaram a carta para análise. É certo que ela foi escrita no computador e que assim não poderá ser objecto de análise a caligrafia. De qualquer modo, partindo do princípio que quem a escreveu não tenha usado luvas, sempre poderá conter algumas impressões digitais visíveis numa análise minuciosa.
            Foi assim que os dois Inspectores recolheram as minhas próprias impressões digitais para me excluírem da autoria do crime ao compararem-nas com outras que lá haja.
          E assim fiquei eu sem poder ir hoje ver o Matias. Aliás, os P Jotas aconselharam-me vivamente a adiar mais um dia ou dois a minha ida ao hospital onde ele está a lutar pela vida como um valente. Só passaram ainda 36 horas e as primeiras 72 são cruciais para se saber se uma pessoa vai embarcar para o outro lado ou se irá ficar em terra. E eu estou mais calma e conformada
       Agradeci o conselho,  enquanto a mala continua pronta a viajar comigo no dia em que Matias  decida acordar para eu o tomar  nos braços e para que a nossa vida tome o curso normal.
« Última modificação: Novembro 21, 2015, 23:22:19 por Maria Gabriela de Sá » Registado
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Partilhar é bom! Partilhem leituras, comentários e amizades. Faz bem à alma.
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E, se não for pedir muito, deixem um incentivo aos autores!
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Boas leituras!
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Boa noite!
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Brevemente, novidades por aqui!
Setembro 05, 2022, 13:38:48
Boa tarde
Outubro 14, 2021, 00:43:39
Obrigado, Administração, por avisar!
Setembro 14, 2021, 10:50:24
Bom dia. O site vai migrar para outra plataforma no dia 23 deste mês de setembro. Aconselha-se as pessoas a fazerem cópias de algum material que não tenham guardado em meios pessoais. Não está previsto perder-se nada, mas poderá acontecer. Obrigada.

Maio 10, 2021, 20:44:46
Boa noite feliz para todos
Maio 07, 2021, 15:30:47
Olá! Boas leituras e boas escritas!
Abril 12, 2021, 19:05:45
Boa noite a todos.
Abril 04, 2021, 17:43:19
Bom domingo para todos.
Março 29, 2021, 18:06:30
Boa semana para todos.
Março 27, 2021, 16:58:55
Boa tarde a todos.
Março 25, 2021, 20:24:17
Boia noite para todos.
Março 22, 2021, 20:50:10
Boa noite feliz para todos.
Março 17, 2021, 15:04:15
Boa tarde a todos.
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Olá para todos!
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Olá para todos!
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Boa feliz noite para todos.
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Bom fim de semana para todos
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