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Autor Tópico: O Esfaqueador da Régua  (Lida 65184 vezes)
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Goreti Dias
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« Responder #60 em: Novembro 13, 2015, 17:40:54 »

- Veremos! Essa é boa! Pensa o finório que se escapa assim? Comigo as coisas são como contratamos e quem salta fora do acordo dá-se muito mal comigo. Olha agora a boa alma preocupada com o que eu fiz! Na! Na! Encomendaste-me um trabalho, vais pagá-lo. E se pensas que sou estúpido, vais sair-te enganado. Não andaste bem, meu manganão, em me ameaçares. Nem sabes na que te estás a meter. Na choldra te enterro eu. Ou não te lembras daquela vez em que me mandaste capar o gajo que pensavas andar a deitar olhos à tua mulher? Sorte a tua que eu me compadeci duma ferramenta tão pequena que em vez de naifa tinha que usar corta unhas! O desgraçado concordou em se pôr a milhas daqui e não voltar. Mas tu pensas que eu fiz o serviço. O dinheirito cá mora, pois então! És mais bandido que eu, estupor de um raio! Esse cu escondido numas calças bem talhadas é mais enrugado que um feijão demolhado, mas um feijão frade que um manteigo não cabe lá. Gostas de dar trabalho fora?! Tanto se me dá. Mas pagas, ai se pagas! e calas-te que eu não tenho ouvidos para ameaças. Faço-te entrar pelos gorgomilos um punhado de desperdícios que nem o motor do teu trator engole tantos. Vais ver com quem te meteste!
Assim foi resmungando entre dentes o Navalhas a caminho da estação de comboio. Mal a primeira carruagem apontou na linha, chegou-se à frente, pronto a entrar sem mais delongas. A máquina não se fez esperar na sua derrapante travagem.
Navalhas entrou na segunda carruagem, cabeça baixa, olhar arredio...
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Goretidias

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outono


« Responder #61 em: Novembro 13, 2015, 18:20:25 »

Viagem à capital

Aida entrou no gabinete do director com um ar abatido. Francisco Silveira, sem levantar os olhos do relatório que estava a analisar, pediu-lhe para marcar uma viagem de avião de ida e volta para Lisboa para duas pessoas.
-Quem são essas pessoas? interpelou Aida.
-Somos nós dois, respondeu Francisco, sem levantar a cabeça dos documentos que tinha sobre a secretária.
-Nós dois? Eu não posso…
-Pode, pode. É uma viagem de trabalho, disse Francisco, olhando para Aidinha. Foi então que se apercebeu da expressão de cansaço, reflectida no seu rosto.
Aida não tinha descanso desde que M estava internado no Hospital. Andava numa fona. De casa para a empresa, desta para junto de M, pouco tempo restava para o seu descanso. Passava todo o seu tempo livre à cabeceira do seu doentinho. Era amiga, confidente, enfermeira. M não precisava de dedicação extrema assumida e voluntária, pois Francisco Silveira, amigo pessoal do director clínico, providenciara tratamento VIP para M.
-Desculpe-me Francisco. Não fujo às minhas obrigações, mas estou a acompanhar de perto a recuperação de M.
-Compreendo  e vê-se isso na sua cara de defunta em movimento. Não se preocupe. M está bem entregue. A si faz-lhe bem esta viagem. Precisa descontrair.
 Para além das necessidades do doente, o que preocupava Aida, era a presença de enfermeiras e auxiliares,  sempre a borboletear à volta de M. Um ciúme obsessivo corroía-lhe as entranhas. Não por causa da provinciana de Ribalonga, perdida e presa nas margens íngremes do Douro. O que lhe carregava o quotidiano de angústia, eram na sua expressão, aquelas delambidas, que não paravam de o apaparicar. Por isso, ali estava com os seus argumentos levantados, para que se tornassem bem visíveis. Mas M parecia insensível. A explicação, achava Aida, devia-se à sua fraqueza. Nem conseguia pôr-se de pé. Contudo, o desinteresse de M por aquele harém que o rodeava, podia ter raízes num segredo bem guardado. Apenas a equipa de operadores o conhecia. A faca que lhe rasgara o ventre tinha deslizado e atingido nervos do aparelho reprodutor. Era cedo para saber se teria ficado impotente. Por enquanto, segredo desvendado apenas a leitores.
Na manhã do dia seguinte, Francisco e Aida apanharam o avião em Pedras Rubras. Aida fazia o seu baptismo de voo. Francisco, que não deixava nada ao acaso, surpreendeu-a com uma cerimónia, onde não faltou espumante. Durante a viagem, Francisco confidenciou que iam almoçar com um amigo seu, de longa data, e que tinha sido eleito deputado. Depois iriam assistir na Assembleia da República, à discussão do programa do governo. “Sabe Aidinha, a nossa empresa precisa de estar relacionada com o poder. Não para receber favores por debaixo da mesa, mas precisamos que nos abram portas. Assim mato dois coelhos com uma cajadada. Presto homenagem ao meu amigo e cientista Quintanilha e faço pontes com o novo deputado.

O almoço teve lugar no Solar dos Presuntos, um restaurante estrela Michelin. Foi servido polvo à galega  e mimos de porco preto. À sobremesa Aida preferiu merengue de chocolate. O repasto foi regado com o vinho duriense, Três Bagos Grande Escolha. Quintanilha assustou-se com o preço “olha que eu sou um homem simples e sem grandes proventosâ€. “A despesa é por minha conta, aliás vai entrar como investimento†disse Silveira com um largo sorriso.
No fim da refeição o “garçon†aproximou-se de Francisco e entregou-lhe um pequeno papel escrito. Aida conseguiu ler parte da mensagem “estou à espera. Às de espadasâ€. Francisco pediu escusa e levantou-se da mesa. Aidinha viu do outro lado da sala, na semi-obscuridade, uma figura esguia de boné e de óculos escuros. Pensou de si para si: “mas que raio de personagem é este? E o que faz nesta história? " Lembrava-lhe personagens do folhetim “Crimes da Associação Secreta de Guy de Maupassant, que lera em fascículos, na casa da avó e que esta guardara, dos gloriosos tempos da literatura de cordel, vendida numa esquina do Bolhão. Seria mesmo um às ou seria antes um joker? Que pretendia o narrador com a criação desta personagem? Dinamitar a linearidade da narrativa? E Francisco? Que terá a ver com esta misteriosa figura. Tão misteriosa, como o sujeito conhecido por emplastro, que aparece em todo lado, onde haja câmaras, que todo o país conhece, mas que poucos sabem quem é. Sentiu que estava metida mesmo num romance de cordel. Ia sair das Fontainhas, mas a que preço?
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José Manhente
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"Ama como a estrada começa" (Cesariny)


« Responder #62 em: Novembro 14, 2015, 20:23:07 »

                                           O desejo revisto em baixa


     Uma vez adiantada a previsão de alta, havia algo em M. que decididamente não arrebitava. Olhava para o decote da farda das enfermeiras com relativo interesse mas que não era acompanhado de uma notória vontade. Na verdade, numa daquelas manhãs em que se encontrava pachorrento a assistir à Praça na RTP, M. levantou-se da cama com a ajuda da assistente operacional e foi tomar o habitual duche, prática rotineira numa enfermaria. Quando se sentou no tampo da cadeira articulável para melhor se posicionar debaixo do jorro aquífero, M. desceu a mão direita ao seu hemisfério sul para ensaboar os genitais. Tentou acariciar-se mas sem sucesso. Ficou tão preocupado com a falta de tesão que mal saiu do banho dispôs-se a falar do assunto ao enfermeiro graduado. Numa conversa de homem para homem, o enfermeiro, já de meia-idade e habituado a lidar com situações similares, pô-lo à vontade e desmistificou alguns receios infundados. Fê-lo ver de que o corte da cirurgia foi profundo e agravado com a toma do Micofenolato de Mofetil, além do apetite sexual sair mitigado, diarreia e vómitos poderiam ser outros efeitos secundários expectáveis.
     - ... e ocasionalmente, Dr. Matias, esse fármaco pode contribuir para a baixa de glóbulos brancos e anemia.
     - Oh! Estou tramado Enfermeiro Marques! Agora que estou prestes a começar uma nova relação, sou confrontado com esta espinhela caída!
     - Pois, mas acredite que é um abatimento temporário e a sua recuperação pode ocorrer mais cedo do que pensa. O seu desejo sexual há-de regressar com mais vigor, vai ver!
     - Deus o ouça Enfermeiro Marques, Deus o ouça!  

     Agora, já mais tranquilo pelo esclarecimento, M. sentara-se ao fundo da sua cama e voltava a assistir aos spots publicitários na Tv. E, coincidência dos diabos!, M. riu-se ao ver o ex-futebolista Paulo Futre a debitar umas larachas foleiras de macho latino sobre um fármaco que desperta a libido.  Smiley
« Última modificação: Novembro 15, 2015, 21:47:07 por José Manhente » Registado
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« Responder #63 em: Novembro 15, 2015, 17:46:44 »

Ora venha lá a parte seguinte...
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Pensar amar-te, é ter o acto na palavra e o coração no corpo inteiro.
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outono


« Responder #64 em: Novembro 15, 2015, 19:38:31 »

Viagem à capital II

-Vou fumar um cigarro. Este maldito vício dá cabo de mim, mas não consigo livrar-me dele, disse Francisco, enquanto se levantava. Dirigiu-se para uma porta que dava para o exterior. Aidinha acompanhou-o com o olhar, até o perder de vista e já não viu a estranha figura que vislumbrara anteriormente.  A voz suave de Quintanilha  “menina Aida†e o seu sorriso naturalmente infantil, trouxe-a de volta  ao lugar onde estavam sentados.
-Menina Aida, não é fumadora?
-Nunca fui fumadora senhor deputado? 
- Faz muito bem, pela sua saúde. O Francisco descreveu-ma como uma pessoa que não pode dispensar. Agora que a conheci, percebo-o melhor. E olhe que não o via, há muito tempo, tão entusiasmado com uma mulher. É um homem da minha criação, mas parece que remoçou.
- Ora senhor doutor, está a embaraçar-me.
- Está na hora de irmos, disse Francisco que tinha regressado.
Ao chegarem a S. Bento, passaram por uma manifestação convocada para defender o governo. Umas centenas de jovens imberbes, de senhoras bem postas na sua pele de tias, mães e avós,  gritavam palavras de ordem contra o reviralho: “respeitem os resultados eleitorais, abaixo os golpistas e as deputadas esganiçadas, Assis salva o país, se isto não é o povo...â€. Quintanilha afastou-se para não ser reconhecido. Aida e Francisco sentaram-se na galeria, de onde iam assistir à queda anunciada do governo.
Os discursos longos e enfadonhos, desviaram a atenção de Aida para o Hospital de S. João, onde M assistia pela televisão ao debate na Assembleia. Como estaria o homem que não lhe saía do pensamento e que lhe povoava os sonhos? Nem tivera tempo de o avisar que, neste dia, estaria na capital. E sentiria ele a sua falta? Ou encontrar-se-ia nos braços aconchegantes de alguma enfermeira mais atrevida?  Ou não teria a morena de Ribalonga, descido à cidade qual loba esfaimada, para ocupar o seu lugar?
Quando saíram do Parlamento, e durante a viagem para o aeroporto, atreveu-se a perguntar a Francisco, sobre a presença do estranho indivíduo que vira no restaurante. Francisco carregou o sobrolho e endureceu o tom:
-Que estranho? menina Aida. Deve estar com visões. Exagerou no vinho?

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Maria Gabriela de Sá
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« Responder #65 em: Novembro 20, 2015, 17:21:37 »

 ( De novo a constipação)

          Este Outono não quis passar despercebido por mim. Tem-me brindado com uma gama de situações que oscilam entre o caricato e o dramático, depois de se espraiarem com requinte nas areias do mais completo absurdo.
          Era o que eu pensava na minha viagem de regresso da cama do Hospital onde M. reagia, finalmente, às graves lesões que sofrera na Régua no dia do nosso projectado encontro. E como quem mexe uma panela em que os ingredientes de um rancho estejam a apurar, revia eu mentalmente, com alguma apreensão, todos os acontecimentos dos últimos tempos. Isso, em diversas ocasiões, deixava-me como uma autómata a conduzir o meu velho Citroen ao longo da A4 e depois no IC5, onde um desvio me demorava a viagem. O novíssimo itinerário que liga Carrazeda de Ansiães ao resto do mundo vem a sofrer há uns tempos a primeira muda de pele, após a negra e inicial alcatifa se ter revelado uma fraude posta à mostra por olhudos e prematuros buracos. É Portugal e também não é de admirar mais um pedaço de bolor no todo do queijo.
         De facto a minha vida foi convocada para uma prova hercúlea em que uma desgraçada constipação parece ter tido o mesmo efeito de uma colmeia carregada de vírus, ou mais propriamente de vespas asiáticas, que vem a dar no mesmo. Primeiro foi um pretendente indeciso, sem saber se queria ou não aderir a uma existência mais bucólica em Ribalonga, onde eu aguardo que um jornal, revista ou televisão,  me contacte para começar a trabalhar, em função da teimosa desobediência ao governo que me mandou emigrar e que, mesmo assim, me fez afrontá-lo com firmeza.
          Seguiu-se uma obscura tentativa de homicídio com ramificações, ou emanações, não sei ainda muito bem, no Duarte, meu amigo de infância, num velho que me parece um maluco libidinoso disposto a aniquilar M. com a colaboração de uma secretária rotativa e com o estúpido diminutivo de Aidinha da Sé. Na realidade, as coisas estão um caos em todo o lado. Então aqui em casa nem se fala! E eu não sei o que pensar, não sei quem sãos os bons e quem faz parte da corja de vilões no meio desta história toda.
         Depois do beijo medieval que depositei nas mãos de M., ali perante a Aidinha interinamente raivosa, e da felicidade que isso desencadeou em mim, não tinha galgado grandes metros da estrada do regresso quando a estranha figura do Navalhas se plantou na minha cabeça disposta a dar-lhe um tremendo nó. Com particular acuidade, passei agora a “ver†o meu pai como o mais recente suspeito numa cadeia deles. A começar por um Duarte amante de poesia e a estender-se depois a um Navalhas mal disfarçado de James Bond e marcado a cicatrizes! Agindo, além do mais, a soldo de um mandante que é o dono desta casa! Tudo isto é tenebroso. E eu não sei o que fazer nesta teia de intrigas a que já nem sequer falta a carta anónima de um gringo a dar-me como irmã de Matias.
          No meio de tudo, a minha mãe ciranda por aqui feliz, entre as vassouras, panos de pó, almoço e jantares e nas vistorias que, neste Outono vestido de verão, faz às duas videiras carregadas de uvas do quintal, uma branca e uma preta, cobertas por uma espécie de guarda-chuva de plástico para serem colhidas sãs no Natal. Até aqui, têm sido um Yin e Yang específicos, o nosso símbolo de harmonia familiar. Então  não serei eu a preocupá-la com revelações de coisas ainda não confirmadas. Mas desde a famigerada constipação, de facto, tudo mudou. Agora não tenho nada como seguro e muito menos verdadeiro
          Como se tudo isso não bastasse, a Goreti têm-me posto ao corrente da tentativa de tráfico de influências que o perverso do Francisco Silveira tem vindo a ensaiar nos meandros do poder. Primeiro por baixo da mesa do restaurante em que tenta comprar Quintanilha a troco de lagostas suadas e com a ajuda da Aidinha: a seguir, lá do alto das galerias da Assembleia da República, em Lisboa,  onde, de vez em quando, algo maldoso, pisca o olho ao deputado,  com Aidinha ao lado a olhar para o hemiciclo como um boi para um palácio e enquanto voa em pensamento para a cama onde M. se confronta com uma inimputabilidade absurda do seu pénis.
          O rapaz, claro, anda apreensivo e não é para menos. Junto dos médicos, já obteve a confirmação de que se trata de uma consequência natural do transplante  e da acção neutralizante dos medicamentos para combater as infecções. Embora, entretanto, tenha ficado mais confiante, depois de lhe darem 95% de certeza de que a hibernação do seu companheiro será meramente temporária. Mas ainda há que contar com o remanescente maldito da percentagem. E, com esta pena suspensa na cabeça, é natural que não lhe apeteça ligar-me.
          Eu, mázinha, ao saber das tentativas de Mata Hari levadas a cabo sobre M. pelas enfermeiras e auxiliares, fiquei relativamente agradecida ao percalço do rapaz. E, com a Aidinha lá por Lisboa a garrir a vida apagada de um homem velho e barrigudo, os ciúmes, além de deixarem de me atacar, deram lugar a uma saudade que, paulatinamente, se vai espalhando sobre mim com a espessura e a macieza do mel.
          Contudo, é o que eu digo, este Outono veio ter comigo endiabrado.  Após o regresso a casa, os filhos, netos ou mesmo enteados da minha constipação inicial, numa revanche sem precedentes, atacaram-me de novo,  remetendo-me à cama por uns dias, remelosa outra vez e, sobretudo, triste, depois de constatar mil e uma novas vezes do ferro e fogo com que se debate o mundo. Foi na cama que soube pela televisão dos atentados de Paris, foi na cama que verti uma ou outra lágrima ao ver tantas vidas destroçadas pela insanidade dos homens divididos entre Cristo e Alá,  com este a atirar-nos à cabeça  uma leitura diabolizante do Corão.
         E foi na cama que,  de pensamento em pensamento,  negava perante mim própria que alguma vez tivesse visto o Navalhas cá em casa a tentar receber dinheiro por um crime mal executado e que talvez o mesmo Navalhas tivesse ido a correr a Lisboa fazer sabe-se lá o quê junto do Director de um Laboratório a que, depois de tudo, me apetece chamar “A Máfia da Pílula Assassinaâ€.
          Da Judiciária é que nem uma palavra. Mas, espero que o Esfaqueador da Régua não seja um dos casos destinado a morrer numa prateleira com o epitáfio do tribunal, “Arquivado por falta de Provasâ€.
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Dizem de mim que talvez valha a pena conhecer-me.
Goreti Dias
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« Responder #66 em: Novembro 20, 2015, 19:33:55 »

- Exagerei no vinho?! Essa agora! Então, acha-se este dr Francisco tão supremamente inteligente para ousar pensar que me atira areia para os olhos? Que eu vi um tipo estranho a falar com ele em modos suspeitos, isso vi. Afinal, o Francisquinho não é boa rês. Não é não! Esta viagem pareceu-me suspeita desde o início. O jantar com este Quintanilha também não me pareceu muito normal. E esta desgraçada de sessão que nunca mais acaba! Estar aqui nas galerias a ouvir sei lá o quê... que mal fiz eu a Deus? Estava tão bem junto do M... Como será que se arranja sem mim? A gaja de Ribalonga ainda lá estará? Raio de mulher que não sabe deixar-se estar na terra dela. Mas as saias do hospital andam todas em polvorosa, assanhadas como gatas em janeiro. Parece que quanto mais o desgraçado se mostra desinteressado, mais elas se mandam a ele! Mas eu hei de tê-lo para mim! Quero lá saber deste velho raquítico que só tem agilidade para trafulhices, pelo que apurei das conversas ao almoço e das que não apurei mas desconfiei daquele cara feia de boné e óculos escuros!
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« Responder #67 em: Novembro 20, 2015, 21:38:07 »

Carteiro da Manhã entrevista Navalhas

O jornalista xisato, entrou esbaforido no gabinete do chefe de redacção, mal conseguindo articular as palavras e construir as frases, “Régua, esfaqueador, ao telefone…falarâ€. O chefe habituado a criptogramas, clarificou “O esfaqueador da Régua telefonou a dizer que quer falar. E aposto que quer as palavras embrulhadas em dinheiro. Vamos certificar-nos se tem autenticidade. Se tiver, entrevistamos o homem. É um grande furo para o Carteiro da Manhã.â€
Antes de dar a  entrevista, o Esfaqueador, deixou claro que não tentassem localizá-lo e que queria que o pagamento, fosse entregue a um mendigo, que seria identificado por SMS, no trajecto delineado durante a operação. Acertados os detalhes, o chefe, começou a fazer perguntas.
…
Queres saber como me chamo. Não tenho um nome único. Varia com o tempo, com o local, com a idade, com a situação. (pausa) Nasci numa família pobre. Alguns nascem com o rabinho virado para a lua bem cheia. Outros, como eu, nascem com o cu virado para o quarto minguante. Na infância chamavam-me Zé Degola. Volta e meia roubava uma galinha e cortava-lhe o gargomil. É pá, quando me nasceram os dentes, estavam sempre a pedir alguma coisa para mastigar. A fome apertava, a comida não morava connosco. Degolava  para comer. Cresci e fui refinando. Começaram a chamar-me Dr. Capador.  Os porcos eram, então, as principais vítimas, mas havia outros bichos maiores. Com uma naifa sacava-lhe os túbaros. Que petisco. Já lhe puseste o dente? Se me pagares dou-te a receita.
…
Deixa lá. Necessidades. Nada de malvadez. Até fazia um frete aos seus donos. Assim os marrões deixavam de andar, com as porcas desta vida na cachimónia, e assim só pensavam em comer e criar chicha.  Chiça da boa, tás a ver? Fiz o curso de bem usar a faca. Estou diplomado. Daí que me chamem Navalhas, Lâminas…tenho o diploma marcado no focinho…
…
Quem me encomendou o trabalho? Ó pá, passaste-te dos carretos. Eu sou um profissional com ética. Achas que vou denunciar os mandantes. Sou esfaqueador não sou bufo. Os mandantes são peixe graúdo. Fazem-me lembrar o sermão de Santo António aos peixes. Sou seu devoto e gosto do gajo, pois mesmo santinho, ia à fonte e partia as bilhas às moças. Posso-te dizer que recebi duas missões: uma era pregar um susto ao finório. E não foi difícil. Logo que o quequinho olhou para as minhas trombas, deve ter-se borrado todo; a outra era sacar-lhe os tomates. Confesso que falhei. Quis fazer o trabalho sozinho, quisto quanto mais gente no barulho, mais hipóteses há de algum dar com a língua nos dentes. Não te esqueças que sou um especialista. Procurei agarrá-los, mas não consegui, ou havia muita roupa ou eram muito pequenos. Atirei a naifa às cegas e foi um pouco ao lado. Quase que limpo o sebo ao gajo e não era esse o contrato. É pá, tudo erra. Os árbitros, os políticos…na maior. Porra, e o esfaqueador, não é gente?
…
Tás a querer saber de mais. É gente com grana a dar por um pau e nunca faço perguntas. Recebo o trabalho e pronto. Mas achas que te vou dizer tudo. Sou esfaqueador mas não sou burro. Nunca destrunfo. Queres saber mais, puxa da guita. Quanto mais pormenores te der mais pistas dou à Judite. Ainda sou novo para me reformar.
…
Tás a brincar? Remorsos? E tu tens remorsos de pôr a boca no trombone, quando metes nessa merda de jornal segredos que estão na justiça. E estragas a vida aos tipos que nem foram condenados. Telefonei-te porquê?  Vocês dão facadas com tinta no carácter da malta. Eu dou-as  com aço temperado. Cada um, à sua maneira, ganha a vida fodendo os outros. Desculpa não ponhas isso que vos fica mal. Põe antes xaringando. Sou um esfaqueador não sou um carroceiro. Uso a língua com critério. E digo-te mais, se o Jorge Jesus é o melhor no futebol eu sou o rei da “esfaqueaçãoâ€, mas não ando a dar pontapés no verbo. Sou um homem de coltura vejo o canal história e leio o JL. E enquanto andava a estudar o Duarte, fui vê-lo em sessões de poesia e fiquei fã. Olha, eu sou um homem sensível e correram-me tantas lágrimas pela fuça, que até pensei que ia desidratar, quando ele disse o poema Fado Tropical de Chico Buarque. Lembro-me destas estrofes:
“Quando me encontro no calor da luta
Ostento a aguda empunhadura à proa
Mas o meu peito se desabotoa

E se a sentença se anuncia bruta
Mais que depressa a mão cega executa
Pois que senão o coração perdoa''
Podes crer, parte-se-me o coração. Sou mesmo um sentimental.
``Sabe, no fundo eu sou um sentimental
Todos nós herdamos no sangue lusitano uma boa dose de lirismo
Mesmo quando as minhas mãos estão ocupadas em torturar, esganar,
trucidar
Meu coração fecha aos olhos e sinceramente chora...''
O chefe de redacção enviou a gravação para o repórter xisato. Transcreva, retire palavrões e insultos e mande publicar. Título de primeira página: ESFAQUEADOR DA RÉGUA, FALA EM EXCLUSIVO AO CM

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"Ama como a estrada começa" (Cesariny)


« Responder #68 em: Novembro 24, 2015, 22:49:38 »

                             Regresso a casa no dia do seu 30º aniversário


     Uns dias antes da alta médica, o reencontro com o irmão regressado de Angola foi comovente. Abraçaram-se com calor fraternal e teimosas lágrimas de saudade. Eram irmãos muito próximos desde a infância. Quando Matias contou a Mateus o sucedido, a reação natural do irmão foi o de retaliar. Soubesse ele quem foi o autor de tal ato ignóbil e à falsa fé e o mundo ia ver quem era o chefe da tabanca! Pffff! ia lá ele saber.

     No dia em que a alta médica foi dada, Mateus Azevedo estava já a fazer as malas para ir de abalada para as terras dos Ailundos e Bailundos. Lastimava não poder ficar para saber quais as conclusões da investigação criminal. E daí talvez fosse melhor assim, não fosse ele fazer justiça pelas próprias mãos e desgraçar uma vidinha tão boa como aquela que conseguiu noutras latitudes. Voltaria talvez para o casório, a confirmar-se as intenções de M. pela morena de Ribalonga...
     Tocou a Didi a tarefa de ir buscar o amigo e vizinho à enfermaria. E logo no dia do seu aniversário.Quando regressavam a casa, M. confessou-lhe das saudades do seu bichano, o Imperador, de lhe passar a mão no dorso e ouvi-lo a ronronar todo satisfeito da vida.
     - Não te preocupes pá! O gatinho tá porreiro, continua territorial e a bufar-me sempre que me tento aproximar! - E riu-se enquanto meneava uma espécie de garras afiadas - Rrrrnhau!  
     M. sorria aliviado por saber que o bichano tinha estado em boas mãos. Lá fora, caía uma chuva escarninha e gente em magote abrigava-se debaixo das paragens em frente ao Hospital. As habituais filas de trânsito ao fim da tarde e ao longo dos semáforos em ambos os sentidos da Estrada da Circunvalação. M. encostara a cabeça ao vidro embaciado e suspirava ao pensar em Gaby. Quanto tempo mais faltava para estar com ela?
     Cansado de ouvir aquela histeria da Festival FM, pediu gentilmente ao taxista se podia sintonizar a Rádio Nova, em 98.9 fm. O taxista, percebendo-lhe o ar ainda debilitado e tão típico de quem esteve internado no hospital, lá lhe fez a vontade. Sim, porque os taxistas também tem gestos de bonomia quando querem! E assim,  mal o transístor encontrou a voz de Paulo Arbiol e Sónia Borges, o habitáculo do táxi parece ter adquirido uma leveza acústica. Na playlist era chegada a hora de Mario Biondi e o seu "Love is a temple" , era a frequência radialista ao compasso da frequência cardíaca de M. por Gaby. Poderia afinal o amor vencer todas as sacanices?
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outono


« Responder #69 em: Novembro 25, 2015, 21:12:28 »

Onde pára M?

Aida entrou no apartamento de Matias no dia seguinte a lhe ter sido dado alta, com uma toilete ousada. O que lhe faltava em tecido, sobrava-lhe em nudez. O decote era generoso para uns seios sedentos de protagonismo. Faltava saia e sobravam pernas ao léu,  que  em abono da verdade, pareciam feitas por um escultor perfeccionista. Aida tinha razões objectivas para se adereçar desta meneira. Depois de dias e dias a ver M, tão murcho e tão desinteressado dos seus atributos físicos, procurou exponenciá-los e despertar o jovem do seu torpor. Ao chegar ao apartamento estava possuída por sentimentos contraditórios: por um lado ansiava vê-lo e senti-lo em plenitude; por outro lado, tinha vontade de o descompor. Saíra do hospital sem lhe dar cavaco, depois do apoio incondicional que lhe deu durante o internamento. Ingrato. Às tantas ainda ia encontrar a sonsa da Gaby a apajá-lo. Mas se assim fosse não respondia por si, pois quando lhe chegava a mostarda ao nariz, virava fera ferida. Didi abriu-lhe a porta com um largo sorriso.
-Entra Aidinha, o Matias teve que ir à PJ prestar mais declarações. Vieram busca-lo três agentes da equipa de Malange e Contreiras. Deve estar quase a regressar. Senta-te e fica à vontade.
Aida sentou-se num sofá de couro. O gato sorrateiro saltou-lhe para o colo. Didi afastou-se para lhe servir uma bebida. Espraiou o olhar pela sala e viu uma estante com livros. Numa parede um quadro do Douro vinhateiro. Talvez oferta da Gaby, pensou. Maldição. Aquela aventesma teimava em persegui-la. E o raio do homem que nunca mais se decidia a provar o seu corpo. Estava convencida que logo que isso acontecesse ficaria preso pelo beicinho. Não entendia porque raio a história já ia longa e na acção nem sombra de uma cena de sexo. Até parecia escrita por um eunuco.E o pau de cabeleira do Didi também não despegava. Sempre agarrado a Matias. Didi chegou com uma garrafa de Porto.
-Queres provar este néctar da produção privada de Ribalonga. Garanto que acalma, descontrai e desperta a libido.
-Não obrigado.
Mais uma vez Ribalonga no seu caminho, pensou Aida. E o que queria dizer Didi com essa da libido. Isso até tinha de mais. O M é que parecia ter feito voto de castidade. E agora nunca mais regressava. Começou a impacientar-se.
-Não é melhor ligar para a PJ a perguntar se M demora?
Passaram horas e ele não regressava. Aida resolveu contactar a polícia. A resposta deixou-a transtornada. Um membro da equipa que estava investigar o caso, disse-lhe que ninguém da PJ tinha ido buscar Matias e que os inspectores iriam de imediato verificar a situação.
O inspector  Malange pediu a Didi que lhe descrevesse os indivíduos que levaram M.
-Eram três senhor  inspector. O que se apresentou como chefe era alto e magro, tinha cara de fuinha, com uma cicatriz , usava óculos escuros e boné. Os ajudantes eram baixos e entroncados, um com o cabelo rapado, barba espessa, o outro era negro. Perdoe-me a expressão, mas pareciam dois gorilas.
A descrição deixou Aida ainda mais preocupada. Um deles correspondia à descrição do homem que vira a falar com Francisco Silveira em Lisboa. Os outros lembravam-lhe, vagamente, os agentes que levaram Duarte da sessão de poesia. O inspector que apesar do esforço mental não conseguia desviar os olhos cansados das mamas de Aidinha, verificou que estas se agitavam de tal modo que pareciam que se iam desprender do seu corpo. Conseguiu agarrar a moça, segurando-a pelo vestido, antes que esta se estatela-se no chão. Amparou-a com o seu corpo.  
-Calma menina, respire fundo , disse o inspector enquanto ajudava Aida  a sentar-se e a recuperar. Vamos agir de imediato para encontrar Matias. Possivelmente estamos  em face de um gang perfeitamente organizado e de um negócio do outro mundo.
Enquanto recolhiam as provas, Malange disse para o Contreiras, “Parece-me, de acordo, com o evoluir da investigação, que estamos é perante um negócio do mundo de saias. Também por esta brasa que tive braços quem não perdia a cabeça? Fosse eu mais novo …â€pois, pois, Malange eu bem te vi a aqueceres-te na brasa†…â€qual carapuça Contreiras, ela estava a esmorecer, eu é que tive que a reacender, com o meu escasso calorâ€â€¦mas olha Malange a outra peça do vértice, a Gaby Ferreira, conhecida como Ferreirinha de Ribalonga, não é nada de deitar fora, apesar de andar, volta e meia, adoentada. Adiante, vamos lá ver é se apanhamos o fio à meada que nos leve ao desaparecido.â€

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« Última modificação: Novembro 25, 2015, 21:49:28 por Nação Valente » Registado
Maria Gabriela de Sá
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« Responder #70 em: Novembro 26, 2015, 18:03:08 »

   ( Longe da vista, longe do coração...)

          A minha vida virou um inferno desde a maldita constipação e da viagem de regresso ao Porto de Matias, nessa altura conhecido ainda só com o económico nome de M.
         Acabo de saber por linhas travessas que o rapaz abalou para Luanda com o irmão, para uma recuperação geral das malditas facadas e do que lhe está associado, a inimputabilidade que sexualmente o atacou.
          Por um lado, fico contente com a ida, porque assim fica longe da lambisgoia da Aidinha, que morre por se meter na cama com ele. Embora a rapariga seja um portento de obstinação, estou em crer que não irá a nado para Angola. Apesar de as secretárias ganharem bem em quase todos os lados, deve ser uma tesa. De facto, há-de gastar todo o ordenado em farrapos na Zara, e não acredito que o laboratório lhe dê um subsídio para eles. Por isso mesmo, ao preço que as viagens estão, não se meterá no primeiro avião a fim de começar uma investigação cujo ponto de partida seja a cama.
          De outra perspectiva, o assunto chateia-me um pedaço. Além de Luanda ser no fim do mundo, agora que as coisas estavam mais ou menos bem encaminhadas para o meu lado, receio bem que Matias, longe do trabalho e cravejado de razões para se dedicar a experiências, comece ele próprio a sentir-se um laboratório, aproveitando cada mulher que lhe apareça pela frente para ver se a coisa funciona. E, assim, temo que, muito rapidamente, a morena de Ribalonga, a Gaby, e os vinhos da quinta sejam águas passadas. Morena por morena, entre uma que esteja ao pé da porta e outra nos antípodas, a santa da porta fará, com toda a certeza, o desejado milagre. Além de que as morenas de Angola, com ou sem chocalho na canela, têm fama de ser bons cobertores.
          Como se este assunto não fosse suficiente para me aborrecer, desde o dia da célebre conversa do Navalhas com o meu pai que, quando olho para o Senhor Ferreira, vejo nele um dos principais suspeitos do crime da Régua. Não posso fazer tábua rasa do que ouvi, de ouvido colado à fechadura do escritório. O que, apesar de tudo, me vai dando alguma contenção para não acusar o velho, é saber que ele só queria assustar M.. Mas, como não definiu a extensão do susto, o Navalhas achou-se no direito de ir até à facada em série, por ter um profundo fascínio por sangue. Por isso, a probabilidade de o homem não pertencer às Testemunhas de Jeová é grande. E, por outro lado, não posso desencadear uma crise conjugal entre a minha mãe e o Ferreira. Além de que espero estar enganada, embora nesta casa haja alguma culpa escondida.
                  Não consigo, contudo,  ver na atitude do velho um móbil para o crime. Se ele esperava reunir duas quintas do no mesmo património casando-me com o Duarte e transformar a minha herança num império, depois de saber das preferências do Duarte por carne homónima, que tire o cavalinho da chuva. Depois, a tentativa de homicídio sofrida pelo pobre do Matias é imperdoável, aqui, na China ou no Vietcongue.
          No meio desta história toda, há ainda muita coisa a esclarecer. As investidas do Navalhas em Ribalonga e em Lisboa, à roda de um Francisco Silveira tão ou mais suspeito do que o meu pai, têm muito que se lhe diga. Não sei se estarão os dois, eventualmente, mancomunados, ou se um quer unicamente transformar o Laboratório numa fábrica de vírus e o outro concentrar duas fortunas na mesma cabeça, dando-se o caso de o meio de o conseguirem ser a neutralização do pobre Matias.
          A Judiciária continua às apalpadelas e, de dia para dia, vê-se obrigada a desatar mais um nó, ou mais até nós sucessivos. O último, de novo e pela milésima vez, tem a ver com a Aidinha, que eu continuo a achar um estupor interesseiro, para lá de uma assanhada que se despe no Inverno como se fosse verão para desestabilizar todos os homens que lhe apareçam à frente. Os Inspectores Contreiras e Malange, os verdadeiros, sabem melhor disso do que eu. A mula joga em dois tabuleiros com o maior descaramento, e depois arma-se em púdica.
          Didi é que fez muito bem em inventar a peta da presença dos falsos Inspectores em casa de M., quando está farto de saber que ele foi com o irmão para Angola após a alta, depois de ele  lhe entregar a chave de casa e de  o incumbir de tratar do gato e do canário. Além de lhe ter facultado o conforto das poltronas lá de casa e o vinho de Ribalonga. Se nem assim a rapariga sossegar, já não sei o que a acalmará. É claro que a informação de Didi sobre o Malange e o Contreiras duplicados foi veiculada aos verdadeiros com um piscar de olhos, numa altura em que a sirigaita estava distraída. E, assim, logo os dois concluíram tratar-se de uma brincadeira para tirar a rapariga de cena. Aliás, ambos sabiam da viagem do rapaz para o esperado restabelecimento em Luanda, visto que ele teve de ir ao processo dar conta dessa intenção.
          Eu é que, desde o dia azarento da minha constipação inicial, tenho passado inúmeros períodos um trombone, carregada de pingo no nariz e uma vontade louca de esganar alguém.
           No final de tudo, não sei o que esperar, os telefonemas de M. estão a escassear… Angola já deve estar a fazer das suas…
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José Manhente
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"Ama como a estrada começa" (Cesariny)


« Responder #71 em: Novembro 26, 2015, 23:03:22 »

                                      Memórias esquecidas


     Quando o avião se fez à pista para aterrar, M. olhava para lá da cerca do Aeroporto Internacional 4 de Fevereiro. Os musseques de Kassequel, Kassenda, Rocha Pinto e Mártires do Kifangondo inundavam as vistas de tanta aglomeração desordenada. A urbanística de Luanda estava contudo a mudar desde que arquitetos internacionais viram os seus trabalhos pagos a peso de petróleo e diamantes.  
     Era a primeira vez que M. ia pousar os pés em Angola. Era aquilo ou morrer às mãos dos facínoras que o Silveira contratara. Na véspera da partida, M. recebeu no telemóvel uma séria ameaça. Ia ser silenciado para sempre se contasse os podres do diretor. M. sempre desconfiara dos lobbies e da chantagem sobre altas esferas do poder político. Havia um rio de dinheiro a passar debaixo do chão da firma onde trabalhava. A solução era M. escapar enquanto era tempo. A Gaby que o perdoasse pois ela não lhe sairia seguramente do coração.
     Ao longo da viagem M. fez um flashback mental. Percebia agora os motivos do esfaqueamento da Régua. Os pretensos ciúmes e a permanente vigilância de Aidinha durante o seu internamento só serviram um único propósito: ter o jovem executivo debaixo de olho para ver se ele não balbuciava algo que comprometesse Silveira junto de Contreiras e Malange. Na verdade, M. estava traumatizado ao ponto de desconfiar de tudo e de todos. De todos, é uma força de expressão... sabia que podia contar com a lealdade de Didi, com o ronronar do Imperador, o trinado mavioso do canário Chiquinho   e sim, com a doçura de Gaby, mesmo que no fim de toda esta trama ela só o quisesse como amigo.
     E depois tinha que restringir as ligações para Portugal. Poderiam forças ocultas estar a escutá-lo e facilmente localizar o local de origem da chamada
de voz ou de dados. A prudência é sempre a melhor conselheira.
    
      Dias depois de se ter instalado em casa do irmão e da cunhada, M. apanhara o machimbombo até à mutamba. Dali calcorreara o caminho ao  longo da baía de Luanda. Estavam 38 graus e apetecia-lhe mergulhar naquelas águas cálidas. Ali decerto Gaby não ficaria tão constipada como andava. Ah! Como ela iria adorar passar uns dias na ilha do Mussulo! Enfim, a saudade apertava cada dia mais e mais. Mandou-lhe um email com a letra Memórias Esquecidas do desaparecido Beto.
   Â«São meras palavras ditas pelo vento
Quando não estás, cai em mim a noite
Sinto o momento, olho para trás

Palavras perdidas ficam por dizer
Oh, perco a razão
Memórias esquecidas
Sinto-me perder, tudo é ilusão

Se eu sentir que não sou capaz
De enfrentar marcas do passado
Ohoh, é porque tu nem sempre me dás
A certeza de querer estar a meu lado

Ohoh, a meu lado...

Quando desabafo os meus sentimentos
Não posso mais aguentar calado
E esconder momentos
Eu quero mais

Palavras perdidas ficam por dizer
Oh, perco a razão
Memórias esquecidas
Sinto-me perder, tudo é ilusão

Se eu sentir que não sou capaz
De enfrentar marcas do passado
Ohoh, é porque tu nem sempre me dás
A certeza de querer estar a meu lado..»
« Última modificação: Novembro 26, 2015, 23:10:03 por José Manhente » Registado
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« Responder #72 em: Novembro 28, 2015, 14:18:09 »

Excelente a vossa obra! Mãos à obra! Atenção à lógica. Não a percam de vista que eu não perco de vista a vossa história!
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outono


« Responder #73 em: Novembro 29, 2015, 23:24:51 »

Carta sem remetente

Gaby abriu o envelope, sem remetente, que o carteiro lhe entregou. Ao retirar folha identificou a caligrafia. Pertencia à mesma pessoa que lhe enviara a outra carta anónima. Começou a ler:

Cara Gaby
Volto a escrever-te depois de teres feito ouvidos de mercador às informações que te dei. Para teu bem. Procuraste desvalorizar os avisos, empurrando o problema com a barriga. Primeiro quiseste limpar a folha do paizinho. Compreendo que pai é pai, mas de pais perfeitos está o inferno cheio. Depois puseste-te a apanhar gambuzinos, tentado adivinhar quem eu sou. Ouve lá ó garina, não sou nada. Nesta história não meto prego em estopa. Não tenho consistência, nem existência. Não sabes se sou homem ou mulher, alto ou baixo, gordo ou magro. Portanto não te ponhas a adivinhar e a mandar bitaites sobre quem sou. Não te atrevas a cuspir para o ar que te pode cair em cima. Nunca o virás a saber, mas se isso acontecer vais ter uma grande surpresa. 
Escrevo-te para reafirmar tudo o que te disse. Se não me deres ouvidos ainda podes provocar uma desgraça. Lembra-te do que aconteceu a M. E aviso-te que ele não está fora de perigo. Vou repetir como se fosses muito burra, que sei que não és. Afasta-te desse homem. O teu destino está traçado na palma da mão, e não é na mão desse M. Está atenta aos sinais. Juízo e caldos de galinha não fazem mal a ninguém.
Com amizade


Ouviu bater na porta do quarto. “posso entrar, Gaby? Sim, paiâ€. José Ferreira entrou antes da filha poder guardar a carta. “Carta de algum pretendente?†Disse José, com ar brincalhão. Não pai, é uma carta de uma amiga.†Olha filha vim apenas para falar no teu aniversário, que está próximoâ€. Estou a pensar em dar uma grande festa, e queria que fizesses a tua lista de convidados. Eu já fiz a minha e vais ter uma grande surpresaâ€. Mas pai acha que estamos em tempo de festas com a crise que para aí vai ? Deixa lá, tu mereces.E já agora pai, essa surpresa será M?"
José arregou o sobrolho. "M? Estás a brincar? Pensava que era uma carta fora do baralho. Depois falamos nos pormenores."
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« Responder #74 em: Dezembro 01, 2015, 20:29:08 »

Vamos lá acreditar que isto vai dar livro. E dos bons!
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Bom dia. Para todos um FigasAbraço
Agosto 14, 2023, 16:53:06
Sejam bem vindos às escritas!
Agosto 14, 2023, 16:52:48
Boa tarde!
Janeiro 01, 2023, 20:15:54
Bom Ano! Obrigada pela companhia!
Dezembro 30, 2022, 19:42:00
Entrei para desejar um novo ano carregado de inflação de coisas boas para todos
Novembro 10, 2022, 20:31:07
Partilhar é bom! Partilhem leituras, comentários e amizades. Faz bem à alma.
Novembro 10, 2022, 20:30:23
E, se não for pedir muito, deixem um incentivo aos autores!
Novembro 10, 2022, 20:29:22
Boas leituras!
Novembro 10, 2022, 20:29:08
Boa noite!
Setembro 05, 2022, 13:39:27
Brevemente, novidades por aqui!
Setembro 05, 2022, 13:38:48
Boa tarde
Outubro 14, 2021, 00:43:39
Obrigado, Administração, por avisar!
Setembro 14, 2021, 10:50:24
Bom dia. O site vai migrar para outra plataforma no dia 23 deste mês de setembro. Aconselha-se as pessoas a fazerem cópias de algum material que não tenham guardado em meios pessoais. Não está previsto perder-se nada, mas poderá acontecer. Obrigada.

Maio 10, 2021, 20:44:46
Boa noite feliz para todos
Maio 07, 2021, 15:30:47
Olá! Boas leituras e boas escritas!
Abril 12, 2021, 19:05:45
Boa noite a todos.
Abril 04, 2021, 17:43:19
Bom domingo para todos.
Março 29, 2021, 18:06:30
Boa semana para todos.
Março 27, 2021, 16:58:55
Boa tarde a todos.
Março 25, 2021, 20:24:17
Boia noite para todos.
Março 22, 2021, 20:50:10
Boa noite feliz para todos.
Março 17, 2021, 15:04:15
Boa tarde a todos.
Março 16, 2021, 12:35:25
Olá para todos!
Março 13, 2021, 17:52:36
Olá para todos!
Março 10, 2021, 20:33:13
Boa feliz noite para todos.
Março 05, 2021, 20:17:07
Bom fim de semana para todos
Março 04, 2021, 20:58:41
Boa quinta para todos.
Março 03, 2021, 19:28:19
Boa noite para todos.
Março 02, 2021, 20:10:50
Boa noite feliz para todos.
Fevereiro 28, 2021, 17:12:44
Bom domingo para todos.
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