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Autor Tópico: O Esfaqueador da Régua  (Lida 65208 vezes)
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Maria Gabriela de Sá
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« Responder #75 em: Dezembro 02, 2015, 14:29:16 »

     ( Gaby, prestes a pôr a mãe ao corrente das insinuações do "escrevinhador" anónimo.


          O anónimo “escrevinhador†voltou a chatear-me com uma carta a reiterar a afirmação de que M. será o resultado de um conluio carnal entre o meu pai e a mãe dele. Mas, desta vez, vou apanhá-lo. O gajo, da primeira vez, escreveu “a computadorâ€, (até o envelope...) agora fê-lo à mão, o que dá para analisar a caligrafia, embora não  se disponha de termo de comparação. A polícia, contudo, tratará disso. Eu julgo que deve tratar-se mesmo do Navalhas que já esteve aqui em casa e do que terá estado em Lisboa, quando o Silveira se quis entrosar com os deputados na política para consolidar no mundo económico a máfia de que faz parte.
          Por agora, só me resta ligar aos Inspectores a dar-lhe mais este novo dado. Eles, de posse da outra carta, nunca lhe deram grande relevância, mas estará na altura de seguirem esta via e ver até onde ela irá desembocar.
          O M. ligou-me ontem. Diz que está bem melhor, mas que ainda não sabe quando poderá voltar ao laboratório, ou se voltará algum dia. As facadas no fígado ainda lhe doem, e já percebeu que não passa de um franguinho sem importância numa gaiola de abutres, com a Mata Hari da Aidinha a levar e a trazer contra-informação, o que agora lhe será um pouco mais dificil com Matias estacionado em Luanda.
          De qualquer modo, embora tenha outra vez presente a faca que me iguala em sangue ao M., num ADN comum, confio que a vida não dê sobre a minha  cabeça uma traulitada tão grande como Matias levou nas tripas. A polícia que faça o seu trabalho e bem depressa, porque tudo isto está a ficar insustentável. Tantos suspeitos para o crime da Régua só pode dar um nó no cerebelo do pobre Matias e em mim própria, que serei talvez o pontapé de saída para esta barbárie. Ou um mero pretexto, não sei.
          Mas, antes de mandar a carta para ser junta ao processo, vou tirar uma cópia, juntá-la à fotocópia da primeira e, se um dia M. voltar de Angola, irei falar do assunto com o tacto devido para o rapaz não sofrer o mesmo choque que eu. Se ele voltar! O mais certo é não o fazer…E, assim, o caso ficará arrumado. Desde que M. não venha depois tratar de se habilitar à herança das quintas e do vinho, tudo bem, já que eu, embora me possa custar um bocado, acabarei por esquecer este incidente da minha vida e as leviandades do meu pai, se as houver.
             O velho Ferreira acha que me vai surpreender nos meus anos  com a lista de convidados dele, onde teima em incluir o Duarte. Não o entendo. Em vez de querer ver a filha feliz, quer juntar o Douro em peso no mesmo património! Se calhar julga que, por ser “Ferreira" de nome, se compara à velha Ferreirinha, de quem quererá, talvez, fazer-me a sucessora. E já sei que me vai dar um Jip! Portanto, a surpresa, se a houver, será só pela metade.
          Entretanto, vou ligar ao Duarte e sondá-lo sobre as diligências que o meu pai tenha eventualmente levado a cabo junto dele para a festança.
          Se o homem das cartas anónimas voltar à carga, por muito que me custe, vou dar conhecimento à minha mãe do que se fala nas suas costas e ver se haverá algo de verdade nas insinuações do escrevinhador ou se existirá um outro propósito atrás de tudo.
          E quando chegará o tempo de eu poder sonhar sem quaisquer nuvens no horizonte?
          Fica bem, amor, daqui te envio este pensamento e muita energia positiva para sairmos deste imbróglio.
                  
« Última modificação: Dezembro 06, 2015, 20:40:00 por Maria Gabriela de Sá » Registado

Dizem de mim que talvez valha a pena conhecer-me.
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« Responder #76 em: Dezembro 02, 2015, 14:34:16 »

O mistério adensa-se!
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outono


« Responder #77 em: Dezembro 03, 2015, 20:59:38 »

Aniversário Gourmet

Dia de aniversário da Gaby. A azáfama começou ao raiar do dia. Tudo tinha sido organizado ao pormenor. Os convidados deviam começar a chegar por volta das onze horas. O evento ia ter lugar no CS Vintage House Hostel ,no Pinhão, junto ao rio Douro. A família, vestida a rigor, chegaria mais cedo para receber os cento e cinquenta convidados. Para além da comemoração de um aniversário, a festa tinha como objectivo apresentar a jovem à sociedade. Os Ferreira não se pouparam a despesas na organização deste acontecimento. Gaby, questionou várias vezes os pais sobre a necessidade de uma festa tão faustosa.

-O CS Vintage House Hostel? Mas pai, isso deve custar uma pipa de massa. E que eu saiba nós não nadamos em dinheiro, afirmava, recorrentemente, Gaby.
-És a nossa única filha, tudo o que temos, um dia será teu. Considera esta festa como um investimento, para o futuro, respondia invariavelmente José Ferreira.
Gaby não conseguia sossegar com a resposta. Vinha-lhe à mente o ditado popular, de que ali havia gato escondido com o rabo de fora. E bailava-lhe no espírito, obcessivamente, a expressão proferida pelo pai, “vamos ter um convidado especialâ€. Decerto que o velho estava a preparar-lhe alguma. Nunca dava ponto sem nó. Desde que ele fora visitado pelo Navalhas, assumido carrasco de M, que Gaby andava desconfiada. Que mais lhe iria acontecer desde aquela malfadada constipação?
Gaby e os pais recebiam os convidados com um Porto de honra, um Barca Velha vintage. Além do almoço estava prevista a actuação de um grupo musical e de uma récita de poesia. Quando chegou Duarte Rosa, acompanhado de várias pessoas, o pai de Gaby disse-lhe:
-Olha filha, vê quem chegou?
-Já vi, disse Gaby, sem disfarçar o enfado. É o teu convidado surpresa?
-Que ideia, minha filha. O Duarte é como se fosse da família. Está aqui por direito próprio. Além disso, hoje vem com uma missão especial, declamar poesia. Está muito bem relacionado no meio, e traz consigo gente ligada ao site de literatura Escritartes. Vai ser uma tarde muito animada.
Duarte cumprimentou-os. Deu os parabéns a Gaby e entregou-lhe uma pequena prenda.
-Estás cada vez mais linda Gaby. A lembrança que te dou pode não ter grande valor material…sabes que sou o que se chama um pé rapado. Os velhos nunca mais morrem. Acho que vais gostar, pois sei do teu interesse pela leitura. É um livro de contos, de uma escritora pouco conhecida, mas que escreve muito bem. Chama-se Maria Gabriela de Sá. Ainda te espero surpreender com os poemas que vou recitar. E já agora diz-me, como está o M? Sei que passou um mau bocado depois de ter sido esfaqueado. Olha, quero dizer-te que não tive nada a ver com isso, apesar de me terem acusado desse crime. Ainda bem que está tudo esclarecido.
-Obrigado Duarte. Confio no teu bom gosto. Irei ler com muito interesse o livro. Sobre o M continua a recuperar. Está em Luanda na casa do irmão. Também te quero dizer que nunca acreditei que fosses tu a cometer o acto.
Um porche estacionou na entrada do hotel. José correu na sua direcção. Um motorista, impecavelmente fardado saiu e foi abrir a outra porta. Francisco Silveira vestido à medida, com Armani, abraçou José.
Bem-vindo Francisco. É uma grande honra. És como o bom vinho, quanto mais velho melhor. E estás mais elegante. Espero que impressiones a aniversariante.
-Gaby, apresento-te o Francisco Maria, o nosso convidado especial..
 Francisco aproximou-se da jovem e cumprimentou-a  com dois beijos na face. Gaby, deveras surpreendida, ficou meio atrapalhada sem nada para dizer.
Gaby, Gaby, estás uma mulher. E que mulher. A tua beleza rivaliza com as belezas naturais, deste justo património duriense da humanidade. Não te lembras de mim?
-Sinceramente não…
-É normal. Não nos encontramos desde o tempo da tua meninice. Mal tinhas começado a dar os primeiros passos, quando eu e os teus pais fomos passar férias à República Dominicana…
-Desculpa interromper-te Francisco, mas nunca é de mais repetir, que isso só foi possível, devido à tua generosidade. E quero informar a Gaby que somos grandes amigos desde a infância. Andamos juntos na escola, embora fosses uns anitos mais novo, jogámos à bola na mesma equipa. Depois seguiste para o mundo dos negócios e tiveste sucesso, mas nunca me esqueceste. E ajudaste-me bastas vezes. Devo-te muito.
-Que é isso Francisco? A verdadeira amizade não tem preço. É um lugar-comum, mas o dinheiro não é tudo na vida. Há coisas tão ou mais importantes. Olha tu tens uma bela família, e eu…não passo de um solitário…mas o que interessa hoje é a festa desta bela jovem. Aleluia, chegou a minha prenda para a tua maior obra.
Um jipe enfeitado com grandes laçarotes estacionou à entrada do Hotel.
-Ai está minha querida Gaby. Não que esteja à altura da tua beleza, voltou a insistir Francisco, mas presumo que é um dos teus desejos.
Gaby continuava sem continuar articula palavra. Os pensamentos rodopiavam no seu cérebro com uma velocidade incontrolável. Uma ideia começou a martelar-lhe a existência “Querem ver que o meu pai me quer casar com Francisco. Começa a fazer algum sentidoâ€.

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« Responder #78 em: Dezembro 04, 2015, 12:32:08 »

UI!!!! pobre M... ninguém lhe acode?!
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Maria Gabriela de Sá
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« Responder #79 em: Dezembro 04, 2015, 21:53:18 »

          (Uma pequena bomba)


          Quando Maria, Zé Ferreira e Gaby chegaram ao Pinhão para a propalada comemoração de aniversário, mais parecida com um casamento, já a mãe tinha comentado com a filha que o pai, nos últimos tempos e mais do que nunca, andava com ideias megalómanas.
          Gaby concordara e não percebia a razão do progenitor em convidar mil e uma pessoas, quando os amigos dela, os bons amigos, não passavam de meia dúzia. Eram quase todos dos tempos da faculdade, os quais, além de tudo, não poderia reunir no mesmo acontecimento, dado morarem e trabalharem, os que trabalhava, em locais muito distantes. Tudo não passava de um desperdício de dinheiro. Além de ela preferir festejar os anos numa discoteca, divertir-se com gente da sua idade e pôr de parte os leitões ou os gourmets das grandes festanças. Uns por engordarem demasiado e os outros por deixarem quem gostasse de comer como ela cheio de fome.
         Depois, qualquer festa sem M., agora que se apaixonara como uma tonta – solidária também com os sofrimentos do rapaz – poderia parecer uma afronta. Sobretudo, era provável que fosse entendida como um sinal, equivoco além do mais, que M. poderia tomar como desinteresse da parte dela. Ao ponto de esquecer o amor de Ribalonga, indo de seguida aninhar-se nos braços de outra morena um pouco mais à mão.
          Entraram os três, pai, mãe e filha, no hotel onde, apesar de ser ainda cedo, estariam já à roda de vinte pessoas.
          Maria correu os olhos pelos presentes, com alguma curiosidade, reconhecendo uma mera dúzia deles, os vinhateiros das redondezas e respectiva família. A sobrinha Patrícia já lá estava, com as amigas de Gaby da terra e o resto da família materna. Eram as únicas pessoas de Ribalonga, já que José Ferreira, embora da região demarcada do Douro, era de Provesende, filho de um barão falido mas que, pelo que agora se via, nunca perdera a mania das grandezas.
          De resto, eram desconhecidos, homens engravatados e mulheres emproadas que, educadamente, Maria Ferreira cumprimentou com um “Bom dia†genérico, certamente compreensível de todos por ninguém saber quem era quem.
          Enquanto olhava para o cenário, pousando a retina no Douro pela janela, deu consigo a sentir-se farta daquilo tudo. Principalmente do marido que, ao longo dos vinte e tal anos de casamento, agira, a maioria das vezes, num sem número de coisas importantes sem lhe dar cavaco. Era o caso daquela principesca festa. Além de que o evento parecia ter atrás de si dinheiro que o vinho não ganhava. A recente generosidade do marido, compulsados todos os seus recursos monetários, embora pudessem aventurar-se naquela excentricidade, não fazia sentido.
          Enquanto o barco de recreio “Invictaâ€, da Douro Azul, atracava no ancoradouro para deixar sair alguns  convidados, à cabeça da mulher ocorreu-lhe a ideia de que andariam por ali negócios escuros a ingerir na vida da família, usando, além do mais, a filha como meio. Ou fim. A droga devia ter algo a ver com tanta ostentação. E isso ela não iria permitir. Já lhe bastara ter a Judiciária lá em casa à conta da barbaridade feita a Matias.  
          Antes de os viajantes mais ricos subirem do rio até ao hotel, já do comboio, chegado praticamente em simultâneo com o barco, tinham saído uns quantos, numa das estações mais bonitas da CP, o Pinhão, dirigindo-se entretanto para o local da “bodaâ€. O Duarte era o primeiro, entre os cerca de quarenta que tinham preferido a viagem sobre carris.
          Mal chegou, o rapaz apresentou os anfitriões aos amigos e, depois dos piropos circunstanciais, entregou a Gaby o livro de contos “Eu e os meus ilustres convidadosâ€, de Maria Gabriela de Sá, que ninguém sabia quem era, enquanto a rapariga desejava intimamente que a leitura não viesse a revelar-se uma perda de tempo. Dava à autora o benefício da dúvida. Ao menos por terem o mesmo nome de baptismo, Gabriela.
          - Espero que gostes. – disse, Duarte – É um bocado maluca, às vezes, mas neste livro conteve-se. Além de que, quando o teu pai me convidou para estar presente, lembrei-me de te organizar uma sessão de poesia. Muitos dos amigos que estão aqui, são, na realidade, membros do Escritartes. Como o teu pai me deu carta-branca para convidar quem eu quisesse, abusei. Espero que gostes igualmente do que preparámos.
          Gaby, mais ou menos entediada com as proporções daquela festa matinal, respondia, por entre as frases de Duarte:
          - Sim, vou gostar, com certeza. Mas não precisavas de te dar ao trabalho. Em todo o caso, obrigada. A vida, por aqui, às vezes é um bocado monótona e talvez precise de qualquer coisa diferente para me distrair enquanto não sai o emprego de jornalista num periódico decente ou na televisão. Obrigada, Duarte. – agradeceu de novo.
          - A tua mãe bem gostava de nos ver casados. Mas, sabes como é – disse o rapaz, por entre um riso amarelo e um piscar de olhos, que apelavam à cumplicidade para manter o segredo por ali.
         - Pois – disse Gaby, num meio sorriso.
          Entretanto, Francisco Silveira, saído do Porsche  vestido com um sobretudo castanho, numa manhã de sol dourada que aquecia os socalcos do Douro, entrava no hotel, enquanto Maria, com alguma nostalgia, da janela do salão fazia mentalmente um breve regresso ao passado, ao dia em que  a sua única filha fora concebida, no meio de gemidos de prazer  e das  mais belas promessas de amor.
          Quando José Ferreira apresentou Gaby a Francisco Silveira, a cara de Maria Ferreira não podia ter sido de maior desagrado. Embora tivesse feito um esforço de malabarista para disfarçar a emoção violenta que, depois de tantos anos, rever de novo aquele homem, agora muito mais gordo, barrigudo e careca, lhe provocava. Conhecera-o no Porto, na altura dos seus estudos no Liceu Rainha Santa, era ele um matulão descarado que usava um Porsche verde alface para conquistar as meninas, trocadas a seguir por outras como se de uma simples muda de meias se tratasse. Nessa época, nem sequer sonhava ser um dia a mulher de José Ferreira, um rapaz dez anos mais velho do que Francisco Silveira, cuja idade coincidia com a dela.
          Entretanto, a vida dera uma série de retorcidas voltas, conhecera o barão falido e, em dois meses, tinham casado, depois de ele ter perdido a noiva grávida no dia em que ela caíra do socalco ao apanhar diospiros. Nessa altura, ninguém sabia quem andava mais carente: se Maria, se José, quando os avós de Gaby foram por aí abaixo casar a filha e José à Igreja de Santo Ildefonso, ao Porto,  na semana da Páscoa, com bastante menos convidados do que estavam agora no aniversário da jovem. Depois disso, ainda tinham estado juntos uma vez, durante umas férias na República Dominicana, mas nunca mais se tinham encontrado. E ainda bem. Na altura fora um dos maiores fretes da sua vida compartilhar o lazer com o Silveira.
          Antes de o convidado surpresa ter tempo de reparar na “velha amigaâ€, esta interpelava o marido num tom se censura por não ter sido informada da presença do "amigo". E ele, como tinha vindo a fazer desde há anos, fingia nem sequer ter ouvido, num desprezo de dia para dia mais intolerável. Por isso, para Maria era tempo de sair do casulo e pôr os pontos nos is. Afinal, o que possuíam, as vinhas, as casas, os tractores, tinha sido comprado com o dinheiro dela e ponto final. Do baronato já nem o título restava e o marido já estava mais para os ossos do que para a carne.
          Quando, por fim, Francisco reparou em Maria à beira da janela a olhar para dentro de si própria, apesar dos olhas de de Medusa que ela lhe lançou, teve a certeza de que o passado era passado e que não viria lá de trás apontar-lhe nenhuma culpa. Muito menos uma arma. E foi com enorme tranquilidade que se dirigiu a Gaby, atirando-lhe com um piropo bacoco, depois de já há muito se ter esquecido de que a conhecera com cinco atrás para ser de bom-tom estar a olhar-lhe com tanta insistência para as pernas e para o decote. Além de que a cereja no topo do bolo daquela encenação  era o facto de o JIP que Gaby esperar de prenda ter uma origem diferente da que sempre pensara.
         A rapariga mal ouviu as palavras do velho, gordo e careca que os pais conheciam há anos, e quando ele disse, talvez com um volume de cuspe aos cantos da boca, “aqui está a minha prenda para a tua melhor obraâ€, ao mesmo tempo que toda a gente saia à rua para ver a piroseira do laço vermelho num Jip preto, percebeu que o pai, com tanto elogio, parecia estar a vendê-la como se ela fosse uma vaca mirandesa ou barrosã. E isso ela não lhe admitia. Felizmente, vivia no século XXI. E o tempo de os pais casarem as filhas com os filhos de banqueiros para concentrarem fortunas já passara há muito. Haveria de casar com quem quisesse, o convento nunca lhe tinha surgido como opção de vida.
          Por tudo isso, no meio de tanta ebulição, quando o homem acabou de proferir, com alguma sabujice, as palavras que consistiam na moeda de troca entre o pai e o velho amigo, diplomaticamente para não estragar a festa da maioria – a dela estava estuporada  e a da mãe provavelmente estuporada estaria -  engoliu em seco, certa de que alguém iria responder por aquele tráfico de uma carne que não estava à venda.
     - Obrigada, disse por fim a aniversariante, enquanto a mãe, disfarçadamente, lhe fazia um sinal com a mão como quem diz “deixa lá que as duas iremos tratar desse melro".
          Depois do que se passara, tanto para Maria como para Gaby, o almoço tinha sido feito com ingredientes envenenados, e tanto lhe fazia que fosse sardinha como galinha, o apetite não era nenhum. O mesmo aconteceu com a poesia. Se alguma coisa faziam uma e outra era mais azia. E já nem o Duarte passava incólume nas desconfianças de Gaby e da mãe. Afinal fora ele a entrosar o “noivo†nas lides poéticas do Palácio Visconde de Balsemão. Naquele negócio não deveria haver ninguém limpo. Também teria, de bom grado, dispensado a música, mais do que convencida de que música lhe andavam a dar a ela há muito tempo.
          Por volta das cinco horas da tarde, já o sol se finara no Douro quando Gaby se dirigiu à casa de banho, enquanto remoía os últimos acontecimentos. Realmente, era tudo um nojo, o pai a quer dá-la de bandeja a um gajo que andava por aí a engatar serigaitas como a Aidinha, a levá-las a almoços com políticos e a tentar poli-las como se ele não tivesse a cabeça poluída por maus vícios e má-educação. Além de, cada vez mais, suspeitar de que o desgraçado do M. fora vítima de um e de outro, às mãos de um Navalhas que lhe pareceu ver por ali disfarçado de segurança. O homem, que talvez fosse de facto o esfaqueador, deixara crescer a barba para disfarçar a cicatriz, mas, mesmo assim, ela luzia-lhe por entre os pelos como um pequeno regato no meio de arbustos. Mas, no meio de tudo, tinha saudades de M. a quem o pai e o nojento Silveira queriam ver pelas costas.
          Estava Gaby em especificas maquinações interiores, a retocar o rimmel e o batom,  quando a Maria chegou à casa de banho com um ar de mistério que se lhe conhecia em situações verdadeiramente intrincadas.
          - Estás aqui filha?
          - Sim mamã. Estás a ver-me -  brincou.
          - Preciso de falar contigo com urgência e não vou aguardar nem mais um minuto -  disse Maria Ferreira com ar decidido, olhando Gaby nos olhos.
          - Bolas! Estás a assustar-me!
          - Não é caso disso, filha. Diz-me uma coisa. Tu, além de jornalista, ainda queres ser actriz?
          - Claro, mamã mas porquê isso agora?
          - Com aquilo que te vou dizer, se queres entrar para a representação terás  agora uma boa oportunidade de começar lá fora e  fingir para todos que tudo continua como sempre….
          - Mamã?!!!
          - Nunca cometas o erro de casar com o Francisco Silveira. Ele é teu pai!- disse de rajada.
          A rapariga, a seguir à revelação, nem sequer conseguiu questionar a mãe, limitando-se a olhá-la de olhos arregalados, enquanto, lentamente, começava a pôr a ideias no lugar, depois de a mãe, a lacrimejar tentando fazer-se de forte,  ter igualmente emudecido dando-lhe um abraço forte.
          Quando, daí a uns minutos,  saíram, depois de retocarem de novo a maquilhagem, Gaby decidiu que iria aceitar o Jeep do Silveira. Se não como “noiva prometidaâ€, ao menos como herança de filha. Embora nunca deixasse de ver O Zé Ferreira como o verdadeiro pai.
          Por fim, concluiu:
          - Afinal há  coisas  em que as mulheres  têm sempre a última palavra…
« Última modificação: Dezembro 11, 2015, 17:00:48 por Maria Gabriela de Sá » Registado
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« Responder #80 em: Dezembro 06, 2015, 15:39:02 »

Mas que grande bomba!
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outono


« Responder #81 em: Dezembro 06, 2015, 22:09:51 »

Aniversário (continuação)

A iluminação nocturna reflectia-se nas águas do Douro. Os convidados ébrios de felicidade pelo espectáculo de poesia e música e pelo bom vinho da região, não se aperceberam que tinha anoitecido. Alguns ainda rodopiavam na pista de dança. José Ferreira pediu a palavra
-Quero agradecer a todos os amigos que nos honraram com a presença nesta festa de aniversário da minha filha Gaby. Permitam-me que faça um agradecimento especial ao Duarte,  ao  grupo de poesia que o acompanhou, extensivo ao meu grande amigo de infância e importante empresário Francisco Silveira. Foi durante a minha vida o irmão que não tive. Espero que em breve possamos voltar aqui, para celebrar um casamento. Já estou a ficar velho e queria ver se esta vida ainda chegava a netos. Bem e antes de chegar o bolo de aniversário, vou pedir à linda Gaby-e digo-o não por ser minha filha- que nos dê um ar da sua graça. E termino, a propósito, com esta pequena parte do poema de Pessoa dito pelo Duarte:

No TEMPO em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

Gaby levantou-se a contragosto. Sentia-se como um bibelot na lapela do progenitor. Conseguiu manter a serenidade, puxou dos seus galões de pretensa actriz e dirigiu-se à assistência
-Acho que não estava no guião, este número, por isso, desculpem, mas não ensaiei um discurso Por isso vou improvisar. Começo por fazer minhas as palavras do meu pai, mas quero estender o agradecimento a um grande amigo, que não está, e tem estado a passar um mau bocado. Estou a falar de Matias, que carinhosamente trato por M. Pode estar fisicamente muito distante, mas para mim também está presente.
José dirigiu-se, em surdina a Francisco Silveira, "a tonta não tira o M da cabeça" Eu bem avisei que era melhor dar-lhe sumiço, retorquiu Silveira.
Por fim espero que se tenham divertido neste local que dignifica a beleza incomparável do nosso Douro. E termino, também, com esta estrofe do poema de António Ramos Rosa, declamado por Duarte:
Não posso adiar o amor para outro século/ não posso/ ainda que o grito sufoque na garganta/ ainda que o ódio estale e crepite e arda/ sob montanhas cinzentas/ e montanhas cinzentas/ / Não posso adiar
As luzes da sala apagaram-se e entrou um bolo iluminado, de grandes dimensões; aplausos; de dentro do bolo saíu uma jovem muito curvilínea; aplausos;
-Não tenho nada a ver com esta piroseira, disse Gaby às suas amigas
dirigiu-se espalhando elegância até ao lugar de Gaby e entregou-lhe a chave do jipe .Aplausos.
- Ó Francisco, consegues sempre surpreender-me,
  -A moça é a Aida, minha secretária para todo o serviço,
-Vê lá, vê lá, já tens idade para começares a ter juízo. Foi por essas e por outras que a tua última mulher fugiu com o special trainer. Olha que a Gaby, e nisso não me sai a mim, tem pêlo na venta.
Gaby recebeu a chave com um sorriso amarelo e um estranho pressentimento. Aquela loura só podia ser a descarada da Aidinha.
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« Responder #82 em: Dezembro 07, 2015, 19:33:45 »

          (Diligências processuais)

          - Bom dia. - cumprimentou o Inspector-Chefe Ãlvaro Moreira.
          - Bom dia.
          -  Esta reunião é para saber em que pé está a investigação do “Esfaqueador da Réguaâ€. – disse  a Contreiras e Malange- como é que isso está?
         - Andamos a seguir a pista do boss do laboratório. Mas ainda não temos nada de concreto – respondeu o último.
          - Ontem estivemos na terra dele. Desenterramos-lhe a infância e parte da juventude, mas a idade adulta ainda está muito funda. Precisamos de cavar mais um bocado – acrescentou Contreiras.
           Durante a meia hora seguinte, Ãlvaro Moreira ficou então a conhecer alguns aspectos curiosos da vida de Francisco Silveira. Nascera em Celeirós, perto de Braga e ele e o irmão gémeo eram os mais novos de sete filhos de um casal pobre. A família vivia nas imediações do Laboratório da Pomito Lencart,  onde a mãe fazia limpeza,   e onde, nuns terrenos contíguos,  o pai cultivava batatas e legumes diversos numa  pequena horta,  que alimentava igualmente  o galinheiro e a coelheira do quinteiro.
          O rapaz, esperto, aos catorze anos arranjara maneira de se tornar moço de recados no laboratório, e, depois disso, passára a fazer a entrega das encomendas da pomada aos clientes e a ir aos correios despachá-las para todo o país e estrangeiro.
          O segundo emprego tinha sido numa daquelas farmácias antigas de Braga, onde o jovem se deliciava com as portadas de madeira escura e vidros lapidados das estantes em que se guardavam aqueles frascos de louça pintada usados pelos boticários em todo o lado.
          E eram assim os pormenores que recheavam os testemunhos de quem  conhecera Francisco Silveira, matreiro e ambicioso até  levar a água ao seu moinho. – diziam os dois Inspectores. - Finalmente, aos dezasseis anos, deixara o velho boticário e fora para o Porto como moço de recados do laboratório onde agora era director, subindo na empresa como um relâmpago a iluminar o céu em dias de festa.
          - Depois, aos  vinte e poucos anos era o D. Juan número um da cidade. Na verdade o desterro dos corações das raparigas que se deixavam deslumbrar por um Porsche verde alface! – rematou Malange.
          Ao ouvir o relato da vida de Francisco Silveira, feito intercaladamente pelos dois Inspectores, o chefe concluiu que, para o assunto em apreço, o facto de o homem subir a pulso não o desabonava em nada. Pelo contrário. E, quanto às raparigas, o 25 de Abril dera-lhes a maioridade aos dezoito anos. A partir de então, elas que fizessem o que quisessem. Desde que fosse de comum acordo!..
           Foi nesse sentido que se dirigiu aos subordinados:
          - Mas o que é que isso tem a ver com o crime da Régua?
          - Pois, aparentemente nada. A não ser que o anterior director do laboratório  morreu em circunstâncias estranhas, depois  de uns quantos técnicos e pessoal de chefia lhe terem feito a vida negra ao longo de anos. O homem, num tempo em que ser homossexual era um bicho-de-sete-cabeças, pelos vistos era continuamente chantageado por pagar a rapazes da rua para o "comerem". – informou Contreiras,  com a dureza das circunstâncias e o vernáculo de uma profissão em que, muitas vezes,  tinham de se deixar os pruridos de lado para lidar com as desgraças…- Morreu com um tiro na cabeça.
          - Ah, então o homem gostará e não se importará de ver ou fazer sangue para subir até onde quer?! – perguntou o Inspector-Chefe como quem, tal como Malange e Contreiras,  já fizera também uma dedução que, podendo ser errada, podia igualmente estar certa.
          - Mais ou menos isso… disse Malange a pensar…
          - Quando é que o homenzinho se suicidou? Ou não foi suicídio?
          - Aparentemente foi… Mas há pessoas que têm dúvidas… O caso passou-se há quase vinte anos. Já prescreveu… - informou Malange.,
          - E já apuraram de quem era o cachecol que foi encontrado no local do crime?
          - Da vítima não era, presumivelmente era do agressor. Mas o laboratório não conseguiu encontrar nele nem um único fio de cabelo. Está a ser difícil descobrir uma prova científica. As testemunhas também não têm adiantado muito. Agora temos duas cartas anónimas que a Gaby recebeu e que estão já no processo. Nelas é imputada a paternidade de Matias a José Ferreira. – disse Contreiras,  entregando o processo aberto a folhas onde se encontravam as missivas que o Coordenador mandara juntar no respectivo despacho.
          Depois de ler, o Inspector-Chefe perguntou:
          - O que é que já fizeram sobre esta nova questão?
          - Por agora, nada. Julgamos mais proveitoso seguir as andanças do Chefão. Afinal, mais do que ninguém ele podia ter acesso às rotinas, ou à sua quebra, de Matias Azevedo. Há sempre uma inconfidência que se comete… E com uma alcoviteira como Aidinha por perto!...
          O superior hierárquico concordou com as suposições dos dois Inspectores e ordenou-lhes que fossem de novo ao Peso da Régua à GNR saber se alguém teria já ido lá indicar alguma pista sólida.
          A Gaby é que, de todo, não lhe era exigível que desse à morte o homem a quem sempre chamara pai.            
        
« Última modificação: Dezembro 08, 2015, 12:39:12 por Maria Gabriela de Sá » Registado
Goreti Dias
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« Responder #83 em: Dezembro 08, 2015, 07:59:41 »

De vento em popa e de jeep lá vão indo a Gaby e as outras personagens!
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Alice Santos
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De mãos dadas pela poesia.


« Responder #84 em: Dezembro 11, 2015, 16:41:46 »

... e eu perdi-me por entre tanto viajar...
Culpa minha! Assumo!
Acho que tão cedo não saio de casa!...
Isto está perigoso!
Inconfidências!.. Hum... estou curiosa...
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« Responder #85 em: Dezembro 11, 2015, 19:56:13 »


Encontro imediato de terceiro grau, mas pouco

-Eu sou Aida da Purificação , secretária do doutor Francisco Silveira, que me encarregou deste número. Não faz, especificamente, parte das minhas funções habituais, mas tive de aceitar, porque quer queiramos quer não, a liberdade de quem depende de outros para sobreviver está sempre condicionado. Pedido de director é uma ordem. Mas no no fundo, no fundo de mim, até recebi a tarefa com alguma curiosidade, pois tinha algum interesse em conhecê-la, disse Aida no momento em que entregava a chave do jipe.
-Agradeço, e compreendo a situação. Também gostei de a conhecer. Sei que tem sido uma enfermeira permanente para o Matias no momento difícil que está a passar. Foi o que Gaby  conseguiu dizer, filtrando a raiva que pretendia explodir  e que manteve prisioneira na clausura do pensamento
“mas porque é que no dia dos meus anos e na minha festa  eu tenho que levar com esta cabra, sem vergonha, que me tem roubado horas de sono? Apetecia-me era dar-lhe umas chapadas nas fuças , mais maquilhada que a de um palhaço de circo.â€
-E já que nos encontramos frente a frente, continuou Aida, aproveito para lhe perguntar onde se encontra o M, pois não o vejo desde que saiu do hospital. O seu fiel amigo fechou-se em copas. Estou deveras preocupada.
e que tens tu a ver com isso grande ordinária. O que tu queres sei eu. Enquanto não puseres a coleira a M não descansas. Daqui não levas nada. Podes tirar o cavalinho da chuva mula sem freio. Segura-te Gabriela Ferreira, antes que me vá a ela.
-Peço desculpa. Não posso ajudá-la. Também não sei onde está, até pensava que estivesse consigo a fazer a recuperação, disse Gaby , procurando pôr gelo no sangue que começava a ferver.
Não sabes uma ova, ó patega de trás do sol posto. Pensas que eu nasci ontem. O que tu sabes , vaca manhosa, já a mim me esqueceu. Tenho o genes das Fontainhas e a escola do Bolhão. Fosse outra a circunstância já te estava a apertar o papo. Podes fazer o número da desentendida, mas não passas de uma sonsa.
-É pena. Estou  a perguntar no interesse ambas…
Aida  aproximou-se mais de Gaby e falou-lhe ao ouvido. Francisco levantou-se preocupado. Zé Ferreira deu um murro na mesa.
…de uma maneira civilizada devíamos fazer um pacto de jogo limpo. Indo directo ao assunto, ambas  gostamos de M. Ou não? Minha amiga cada qual defende o seu desejo. Nesta fase devíamos  unir-nos na defesa do Matias. Depois compete-lhe a ele escolher…
-Então meninas deixem-se de fofoquices, disse Ferreira, vamos lá apagar as velas e partir o bolo.
-…pense nisso, continuou Aida, eu sei de segredos que existem à volta de M. Era bom que nos entendêssemos. Vou acabar o meu número, é por isso que aqui estou e é para isso que me pagam. É este o meu papel neste filme. Esta cena não estava prevista e até é um pouco inverosímil.
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Goreti Dias
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« Responder #86 em: Dezembro 12, 2015, 07:12:51 »

Ena! Esta Aida parece democrática...
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José Manhente
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"Ama como a estrada começa" (Cesariny)


« Responder #87 em: Dezembro 12, 2015, 23:51:43 »

                                   O tchindele qui bebe água do cu lavado


     Semanas mais tarde, M. inscrevera-se na Cruz Vermelha Angolana e ajudava na distribuição noturna das ceias. Percorria os musseques na área de Sambizanga a bordo de uma velhinha Nissan Vanette, sempre aos eses e solavancos enquanto tentava evitar as pequenas cacimbas, resultado das primeiras chuvas que torrenciavam aquelas estradinhas de terra vermelha.
     Ao seu lado acompanhava-o Maria Dembo, assistente social e militante do "partidão", assim se referia ela ao MPLA. Institucionalizada ou não, assim ia aquele mulherão de peito farto, lábios e coxas grossas, ali pela casa dos trinta anos. M. queixava-se dos tremeliques da carroçaria perante a inclemente época do cacimbo sobre os pára-brisas enferrujados. Maria ria-se ao ver-lhe os esgares de desconforto ali mesmo à entrada da comuna de N´Gola Kiluange:
     - Eie uëjia o ku mengena o jimbunda tchindele?1 - Instara ela em Quimbundo enquanto soltava uma palânquica gargalhada.
      M. encolhera os ombros sem perceber patavina daquilo que ela acabara de lhe perguntar. Mas também isso não interessava nada. A missão era outra. Havia imensos carenciados nos bairros de lata e adobe para assistir e a muamba era pouca para tanta precisão. De vez em quando M. fitava-a pelo canto do olho e entre as pernas, qual Lázaro, ressuscitava-lhe algo há já algum tempo em letargia. Poderia a mulata fazer-lhe regressar a libido perdida no pós-operatório? Havia ainda no seu pensamento a morena Gaby, lá longe no puto, acenando com telefonemas cada vez mais raros. Ele ainda estava perdido de amores por ela, ou como diriam os angolanos, ainda "bebia água do cu lavado" por Gaby.      



1 Sabes saracotear as nádegas homem branco?

 
« Última modificação: Dezembro 13, 2015, 16:38:54 por José Manhente » Registado
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« Responder #88 em: Dezembro 13, 2015, 11:00:43 »

E ele entendeu Huh?Huh?
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Maria Gabriela de Sá
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« Responder #89 em: Dezembro 13, 2015, 13:52:39 »

          (A bota, ou bolota, com a perdigota)

          - E temos o caldo entornado! – disse de si para si circunspecto.
          Contreiras, o inspector titular do processo, ao pegar nele no dia seguinte à reunião com o Inspector- Chefe Ãlvaro, deu-se conta de que havia ali qualquer coisa a não bater certo. Não que isso resultasse das declarações vertidas nos autos, mas sim do que conseguira saber além delas e que seria preciso clarificar para não restarem quaisquer dúvidas.
          A bolota que agora não batia com a perdigota eram as propaladas origens de Francisco Silveira. Depois das últimas investigações em Celeirós que o davam como um pé rapado criado na rua e com um regimento de irmãos, um dos quais seu gémeo, a ascendência em Mouzinho da Silveira no grande liberal do século XIX representava uma contradição insanável. Por isso, era preciso dirimir todas as incoerências do caso. E como se a fidalga ascendência da criatura não bastasse, a formação jurídica concluída em Coimbra, no respectivo curso de Direito, parecia resultar de uma colagem demasiado elaboradas à histórica figura de Mouzinho assumindo, de certo modo, uma tonalidade falsa. De facto, para quem acreditasse na Reencarnação, poder-se-ia pensar que o próprio Mouzinho já o teria feito na pessoa deste Francisco, a fim de vir cá de novo completar o que tivesse deixado por fazer. À excepção do nome próprio, agora Francisco e antes José Xavier, até o bendito Curso de Direito coincidia, como se na família fosse uma tradição masculina a ter de cumprir-se a qualquer preço. E se, por um lado, o “novo homem†teria bebido muito chá desde o berço com que tratava toda a gente, sobretudo, Aidinha, por outro o permanente ar afectado que Gaby via nele quando se dirigia, cheio de mesuras, às pessoas, inseria-o na frequência de um curso de boas-maneiras tirado à pressa com Paula Bobone. Na realidade, tudo nele parecia exagerado, falso, pouco sedimentado, e até os fatos Versace à Cristiano Ronaldo nele ficavam ridículos.
           Assim, ir de novo a Celeirós, ou a qualquer outro lado, era uma diligência indispensável.
          Foi isso que Malanje e Contreiras fizeram na manhã seguinte, munindo-se da fotografia que Francisco Silveira tinha no perfil do Facebook.
          Quando chegaram e se dirigiram de novo à pessoa que pusera a vida de Francisco Silveira a nu, a surpresa não foi assim muito grande para os dois homens quando o informador reconheceu que, apesar de o tempo decorrido e os respectivos estragos na cara de qualquer cristão não facilitarem muito a identificação das pessoas, o homem da fotografia não lhe parecia o Francisco Silva Eira da terra, o que fora aos dezasseis anos trabalhar para o laboratório no Porto, perto da Rua do Bonjardim.
          - Silva Eira? – perguntou Contreiras estupefacto, para,  a seguir,  ele e o colega dizerem quase em simultâneo: –  Mas quantas coincidências neste caso! Até a porcaria do Porsche! Não devia haver muitos no Porto! O que uma simples letra, a mais ou a menos, pode fazer! –  E lembrava-se de ouvir contar uma história em que um homem, com pai e mãe cujos nomes eram iguais a outros pais, sendo “Armandoâ€, tinha passado uma noite na Cadeia de Chaves em vez do verdadeiro culpado  chamado na verdade “Armindoâ€.
          Na realidade, não se tratava do mesmo laboratório farmacêutico, dando no entanto para concluir que a gente dos medicamentos se assemelhava a uma autêntica máfia.

          - E agora? – perguntou Malanje – Fazemos o quê? –  continuou, de molde a o informador que, ali perto dos dois  fumava  um cigarro, os ouvir e que depois os  interrogou:
          - Têm a certeza de que se trata deste “Celeirósâ€? – É que há mais… E isso às vezes causa grandes confusões. Em tempos, antes de haver códigos postais, eu, que me chamo Augusto Gonçalves, estava sempre a receber correspondência de um “Augusto Gonçalves†de Celeirós do Douro e vice-versa…
          - Ah!...- exclamou Contreiras que, sendo de Vila Real, não se lembrara dos vizinhos.  â€“ Está explicada a proximidade de Francisco Silveira, não sei se descendente de Mouzinho ou não, com o barão falido de Provesende, José Ferreira!
          Regressaram então a Vila Real com mais um quebra-cabeças do caso “O Esfaqueador da Régua desvendado. Mas impunha-se, no dia seguinte, pôr os pés a caminho e ir a Celeirós do Douro.
                        
« Última modificação: Dezembro 13, 2015, 16:59:22 por Maria Gabriela de Sá » Registado
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Bom dia. Para todos um FigasAbraço
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Sejam bem vindos às escritas!
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Boa tarde!
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Bom Ano! Obrigada pela companhia!
Dezembro 30, 2022, 19:42:00
Entrei para desejar um novo ano carregado de inflação de coisas boas para todos
Novembro 10, 2022, 20:31:07
Partilhar é bom! Partilhem leituras, comentários e amizades. Faz bem à alma.
Novembro 10, 2022, 20:30:23
E, se não for pedir muito, deixem um incentivo aos autores!
Novembro 10, 2022, 20:29:22
Boas leituras!
Novembro 10, 2022, 20:29:08
Boa noite!
Setembro 05, 2022, 13:39:27
Brevemente, novidades por aqui!
Setembro 05, 2022, 13:38:48
Boa tarde
Outubro 14, 2021, 00:43:39
Obrigado, Administração, por avisar!
Setembro 14, 2021, 10:50:24
Bom dia. O site vai migrar para outra plataforma no dia 23 deste mês de setembro. Aconselha-se as pessoas a fazerem cópias de algum material que não tenham guardado em meios pessoais. Não está previsto perder-se nada, mas poderá acontecer. Obrigada.

Maio 10, 2021, 20:44:46
Boa noite feliz para todos
Maio 07, 2021, 15:30:47
Olá! Boas leituras e boas escritas!
Abril 12, 2021, 19:05:45
Boa noite a todos.
Abril 04, 2021, 17:43:19
Bom domingo para todos.
Março 29, 2021, 18:06:30
Boa semana para todos.
Março 27, 2021, 16:58:55
Boa tarde a todos.
Março 25, 2021, 20:24:17
Boia noite para todos.
Março 22, 2021, 20:50:10
Boa noite feliz para todos.
Março 17, 2021, 15:04:15
Boa tarde a todos.
Março 16, 2021, 12:35:25
Olá para todos!
Março 13, 2021, 17:52:36
Olá para todos!
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Boa feliz noite para todos.
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Bom fim de semana para todos
Março 04, 2021, 20:58:41
Boa quinta para todos.
Março 03, 2021, 19:28:19
Boa noite para todos.
Março 02, 2021, 20:10:50
Boa noite feliz para todos.
Fevereiro 28, 2021, 17:12:44
Bom domingo para todos.
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