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Autor Tópico: PEDRÓGÃO GRANDE  (Lida 1694 vezes)
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Maria Gabriela de Sá
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« em: Junho 26, 2017, 18:06:01 »

PEDRÓGÃO GRANDE


Adeus.

          Adeus saia preta às pregas, dentro de que vezes sem conta me senti tão feliz, uma moda de época e simultaneamente intemporal.
Era um dos meus amores. E nunca, até hoje, consegui separar-me dela, por fazer parte das minhas mais gratas recordações de estética. No fundo, esperava que voltasse a servir-me, reduzir a cintura aos centímetros da juventude, um tamanho inversamente proporcional à grandeza dos meus sonhos. Dos que realizei e dos que ficaram para trás. Por isso ali a deixei, pendurada no guarda- vestidos, desesperando esquecida na minha quimera.
Hoje consegui despedir-me dela, metê-la numa das caixas identificadas como “ROUPA FEMININA” “de inverno”, tamanhos 36 e 38, enquanto desejava fazer alguém tão feliz como eu fora quando a vestia, em dias de domingo ou de semana, e me apetecia impressionar o mundo. Ao tirá-la da cruzeta, num gesto decidido, mais do que solidariedade com a mulher que um dia vestirá a minha saia preta às pregas, foi um acto de amor para com essa desconhecida a quem o fogo roubou com certeza uma peça de roupa em que ela se sentia linda e feliz como outrora eu me senti dentro da minha saia preta às pregas.

          O mesmo fiz aos casacos de marca, antes de comprar nos chineses por deterioração dos meus meios económicos, adquiridos nem que fosse a prestações para satisfazer vaidades quando andar bem-vestida era uma condição de mim própria. Estavam todos a morrer no guarda-fatos, empanturrado de inutilidades, coisas sem serventia nem para mim nem para o mundo. E a roupa de cama, cobertores, lençóis, travesseiras? Fiz-lhe outro tanto. Para quê tanta coisa quando um pouco basta! Eu que vi inúmeras vezes a barriga dos armários a empurrar portas e a vomitar lá de dentro o excesso a que eu os obrigava!


          Peço desculpa, contudo, por não ter levado ao limite o meu amor para com mulheres expurgadas pelo fogo dos seus trabalhos manuais, as rendas, os linhos do bragal que já não poderão ser a herança de ninguém. Peço desculpa por não ter conseguido oferecer uma ou duas cobertas de renda em que a mãe e a avó condensaram centenas de horas de trabalho, quilómetros de algodão entrançado, enquanto matavam o tempo à soleira da porta numa aldeia como as que o inferno visitou no fatídico dia 17/6/2017 e que só aparecem no mapa-mundo em dias de catástrofe.


          Com a saia, era o que me faltava fazer, fazer qualquer coisa de útil, ajudar a cuidar dos vivos, que os mortos Deus os cuide na sua Glória se Glória houver na Morte! Sobretudo numa Morte desencadeada pelo Inferno como me têm dito terem sido todas aquelas mortes! A semana inteira foi de incredulidade, culpa por estar viva. Culpa por ser capaz de ouvir e ver, às horas das refeições, durante o telejornal, o desfolhar de um rosário de tragédias sem perdão do Irmão Fogo que as desencadeou. Comia o que tinha no prato e bebia as lágrimas da emoção, sentindo-me mais ou menos indigna de ter o que comer ali à minha frente enquanto 64 pessoas haviam passado à condição de almas na estrada da morte e em todos os seus atalhos.

          A minha vizinha é da Aldeia Ana de Avis, Figueiró dos Vinhos. Solidária com tanto sofrimento e ajudada por amigos de coração grande como o dela, saiu do conforto de casa para encabeçar uma recolha de bens e apaziguar a sua própria dor, engrossada dia a dia com o rol das notícias fatídicas da tragédia. Trabalha por turnos e até ao domingo, mas, num dia de folga, juntou-se a um comboio de carrinhas carregadas com ajuda e esperança, indo para o local que a viu nascer e que agora ela via a morrer às mãos de carrasco tão impiedoso.


          Quando regressou, falou da sua ida ao inferno. Paisagens mortas, negras, sem alma, dor estampada no rosto de quem perdeu amigos e bens e tudo. Vinha derreada. Por todo o lado era a desolação que se lhe impunha, tenebrosa e sem eufemismos.


          Teve de engolir quanto pode as lágrimas. Estava ali para levar conforto e não para ser confortada. E, de voz embargada às vezes, sem palavras outras tantas, lá conseguiu entregar os bens que levava, cobertores, roupa, sapatos, escovas, pastas de dentes, enquanto se dava conta do quanto ainda faltava. Alguém havia pensado em giletes de barbear, uma ou duas caixas, mas eram precisas bastantes mais, pequenos grandes nadas importantes para quem até há poucos dias tinha em casa o seu pedaço de civilização e se vira de repente despojado dele.


          E eu, depois da saia, dos casacos, da roupa de cama, dos cintos e das bolsas de mulher, já nas caixas prontos a seguir viagem, pensei acrescentar algo diferente de tudo o que havia já encaixotado: cremes de rosto, detergentes para a roupa, barras de sabão. O sabão é sempre um grande inimigo da sujidade das mãos com que todos terão de deitar mãos à obra para se reerguerem. E artigos de higiene feminina íntima, talvez, sem constranger quem deles precise por ter parte da vida em suspenso. Umas latas de nívea, um mimo para lhes suavizar a dureza do combate que todos nós temos pela frente.

          Ocorreu-me ainda meter numa caixa coisas para oferecer com o mesmo amor com que dei a minha saia às pregas: cremes para a barba, linhas e agulhas de croché com que as mulheres gostam de preencher as horas leves de descanso. Sim, linhas de croché para as senhoras, uma espécie de remédio que as ajude a curar a dor, a ausência de alguém levado à falsa fé para o mundo distante do “Nunca Mais”.


          E assim me despedi da minha crónica:

          Adeus saia preta às pregas, adeus aos casacos e aos cintos, adeus a tudo que um dia foi meu e amei, quem me dera que nunca tivesse precisado de vos tirar do armário…

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