O meu avô II

[Nação Valente]

O meu avô de quem tenho boas recordações, e que juntamente com a minha avó foram, para mim, uns segundos pais, e muitas vezes primeiros, não era um santo. Dizia-se na linguagem popular da aldeia onde viveu, que tinha muito “génio” no sentido belicoso, de ferver em pouca água, de se passar dos carretos.
A sua filha mais nova, uma tia grande amiga, e que tinha a faculdade de ver para além das evidências, das coisas comezinhas e palpáveis, disse um dia que tinha tido acesso à situação dos pais já falecidos, num outro lugar, e que ficara surpreendida com o facto de o pai estar num lugar superior. Acrescentou, que isso se ficou a dever, a este ter salvo de afogamento uma criança, pondo em risco a sua própria vida, já que entrou na água após uma refeição. Para além da “visão” da tia, este acontecimento foi um facto no mundo em que vivemos.
De igual modo, também foi um facto comprovado, o avô ter testado a dureza de uma garrafa de vidro na cabeça do seu maior amigo, desde a infância, num desentendimento acontecido durante festa onde o álcool foi rei. Nem a garrafa nem a cabeça do amigo saíram bem da experiência. Este acontecimento não pôs em causa essa, então, velha amizade. Como não pôs em causa o relacionamento com de outro conterrâneo a quem o avô, numa outra rixa, deu grande tareia, de tal modo que como lhe doessem as mãos, deslocou-se alguns metros até junto de uma árvore, de onde sacou um ramo para continuar a tarefa. Já na velhice do meu avô, assisti a um encontro ocasional entre o avô e essa vítima da sua fúria, onde trocaram palavras de ocasião, das quais retive uma frase que nunca me saiu da memória: “a vida é uma ilusão”.
Mas real foi a aventura que o avô e o seu grande amigo de infância viveram quando cumpriam serviço militar, e quando resolveram saltar o muro do quartel, em plena noite, para se divertirem num baile das redondezas. O avô foi pedir a uma moça para dançar, e esta não aceitou. Como não estava habituado a levar “negas” o avô reagiu mal, apareceu o namorado da dita moça e logo ali se gerou grande burburinho. Percebendo os intrusos que estavam em minoria, resolveram dar de frosques,  pernas para que vos quero, mas não se livraram de ser corridos a tiro, tendo o avô sido atingido numa perna, sem grande gravidade.
Na enfermaria do quartel justificaram o ferimento com o uso da própria arma. O avô foi internado, e o seu fiel amigo também deu baixa de doente, por solidariedade. Passavam os dia a jogar ao berlinde e um certo dia entrou de supetão  um oficial em pleno jogo. Logo as praças se perfilaram tendo o amigo escondido os “brinquedos” na mão, mas o quando o tenente disse “sentido”, os ditos cujos libertaram-se da mão que os prendia, e rolaram pelo chão liso da enfermaria.
-Então doente e a jogar ao berlinde? Referiu o oficial. “Vai passar a rigorosa dieta soldado” dirigindo-se ao cúmplice do avô, o que significava passar fome de criar bicho.
O amigo de infância, não morreu em consequência desse castigo, mas poderia ter morrido na Primeira Guerra Mundial, assim como o avô, não fora a acção do tenente castigador. Aconteceu que os dois amigos foram mobilizados, para partir para a guerra, à qual nunca foram, não por cobardia, mas por terem sido convencidos pelo tal tenente, um militante do partido antiguerra, que os convenceu com afirmações como “ o Afonso Costa (primeiro-ministro) está vender homens à Inglaterra por uma libra” ou “vocês vivem numa serra onde não faltam esconderijos”, “desertem”.
O avô e o amigo tiveram uns dias de licença para se despedir da família, e nunca se despediram. Por ali ficaram, na raia, de um ou outro lado da fronteira até a guerra terminar. Quando acabou, veio a amnistia, e o avô e amigo, foram reintegrados nas forças paramilitares da República. Mas essa já é outra história.