Nação Valente
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outono
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« em: Julho 07, 2019, 22:48:41 » |
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No tempo em que éramos meninos e moços, todos tÃnhamos uma alcunha. A minha era gato,o Zé ruivo era rato, e o Miguel era passarinho. E se na minha alcunha não batia a bota com a perdigota, na do Miguel assentava-lhe quase como uma luva. Era bem conhecida a sua prática de andar pelas árvores a esvaziar os ninhos dos ovos dos pássaros voadores. A minha relação com o passarinho era mais ou menos amistosa. Já com o rato tinha, ironicamente, uma excelente relação.
No espaço da escola, nos intervalos da manhã ou da tarde, jogávamos à bola, ao berlinde ou lançávamos o pião. Um certo dia, bem presente na memória, resolvi pregar ao Miguel uma partida inocente, de gato ingénuo, que fazia parte do “carnetâ€: encostei-me ao Miguel e tapei-lhe os olhos com as mãos, ao mesmo tempo que dizia, “advinha quem éâ€?
O Miguel, mais passarão que passarinho, deu corda aos braços e afinfou-me duas cotoveladas na "boca" do estômago que me deixaram sem respirar e que ainda hoje me doem, de tal modo ,que nunca caÃram no esquecimento. Quando recuperei o fôlego afastei-me de fininho, com a certeza que o gato não voltaria a brincar com o passarinho, até porque este (erro da natureza?) era bem mais corpulento.
Depois de tempos, tempos vieram, e continuei a relacionar-me com o Miguel sem antipatias nem rancores, até porque os nossos pais ,em função da arte do contrabando, eram bastante amigos. Nunca mais, enquanto gato, apanhei nenhuma bicada do passarinho. Crescemos, seguimos os nossos caminhos, e deixámos de conviver quotidianamente. Soube que depois de vir da guerra colonial o Miguel ingressou nas forças policiais, e constituiu famÃlia.
Quando esporadicamente nos encontrávamos, cumprimentava-me efusivamente e não confiando na minha memória de gato dizia “sou o Miguel†. não sabia eu outra coisa, mesmo quando não me vinha à mente a homérica cotovelada. O Zé Ruivo seguiu um percurso muito parecido ao do Miguel, acabando como militar da Guarda Republicana. Era na época o destino dos jovens que queriam sair da vida sem futuro das aldeias e não pretendiam emigrar. Quando foi extinta a Guarda Fiscal, pela abolição das fronteiras, e reduzidas as forças policiais, optaram ambos pela “reforma†e regressaram à s origens. O rato, talvez pela sua alcunha, dedicou-se à vida polÃtica e chegou a Presidente da Junta. O passarinho vivia com o que recebia da reforma e dedicava-se a alguns biscates. A dada altura o Miguel precisou que o Zé Ruivo lhe assinasse um documento, para poder receber um determinado subsÃdio. O Zé, senhor Presidente, informou-o que não podia assinar, porque isso representava um ilÃcito.
Viajava o rato na sua viatura quando foi abordado pelo passarinho. Parou o carro e o Miguel voltou a abordá-lo sobre a questão do subsÃdio. O senhor Presidente informou-o mais uma vez da impossibilidade e despediu-se dizendo “tenho que ir…†mas não acabou a frase, porque o passarinho sacou de uma naifa e enfiou-lha na barriga, enquanto dizia, “não vais mas é a lado nenhum.â€
O passarinho foi para a gaiola, o rato conduziu até casa, de onde seguiu para o SNS. Lá conseguiu sobreviver à agressão e voltar à sua vida de Presidente até às próximas eleições. O desfecho atenuou a pena do Miguel e a vida continuou… O Zé Ruivo casou um filho com uma sobrinha minha. Quando esta me contou o sucedido, senti-me um pouco culpado, por não ter avisado o rato das tendências agressivas do Miguel. É que não há passarinho que não nasça com o bico com que há-de picar, e afinal, o rato, o gato e o passarinho, não nasceram para viver no mesmo quotidiano.
Palavra sofrida do cota-diano sobre o tempo em que os animais favam.
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