Maria Gabriela de Sá
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« em: Abril 12, 2020, 23:32:37 » |
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Hoje, dia 12 de Abril de 2020, às quatro horas da madrugada, de pijama, roupão e chinelas, estava eu no andar de cima a tocar à campainha dos vizinhos cujo apartamento se situa sobre o meu numa irmandade de prédios modernos. Fiz como o carteiro de Pablo Neruda, que toca sempre duas vezes. Mas, ao contrário dele, cuja porta se lhe escancarou num sorriso do poeta – é o que diz o escritor António Skármeta – nem os dedos envergonhados de um dos meus vizinhos assomaram por uma mísera frincha da porta para darem uma resposta razoável à questão que me levara até eles a tão tardias horas. Desde já afirmo que não conheço os meus vizinhos de cima, um casal de homem e mulher, segundo as vozes que me chegam lá de cima. Nunca lhes vi a cor, a forma ou a sombra. Há muito lhes imaginava, contudo, o porte, só pelas passadas rangentes que têm ecoado na minha cabeça ao longo dos meses que aqui vivo: ambos altos, bem constituídos. Talvez até um pouquinho pesados um e outro, para uma idade que me parece ser ainda bastante jovem e cheia de vida. Enquanto esperava, pude ver as preocupações dos meus vizinhos com a pandemia do Covid 19 e as recomendações que os dois cumprem escrupulosamente: sapatilhas à porta, os dois pares de bom tamanho. O que me levou a pensar na grande probabilidade de as minhas suposições sobre peso e altura dos protagonistas da minha história de vizinhança estarem correctas. Por outro lado, nisso eu nunca pensara, verifiquei, pela pequena cruz de madeira com uma fitinha roxa e quaresmal pendurada na porta como um enfeite de Natal, que ambos seriam provavelmente muitíssimo bons cristãos, comparados comigo que não nem sequer soube da cristã solicitação da Igreja para tão emblemático símbolo. A esta altura da narrativa, depois de tanta conversa sem nada de concreto dizer sobre o que me levou a tocar à campainha dos meus vizinhos de cima, hão-de os leitores pensar na grande possibilidade de eu me ter enganado no andar e que estaria a experimentar a minha campainha, avariada há mais de dois meses sem o administrador do condomínio ter tido ainda tempo para a arranjar nesta época de pandemias várias. Não, nada de mais errado! Já lá vai há muito o tempo de eu chegar a casa a essa hora, depois de me ter esquecido da chave ou de alguém ter fechado a porta por dentro obrigando-me a tocar. Não! Desta vez, após quatro horas deitada a ouvir conversas, gargalhadas e rangeres que me impediam de dormir, decidi chamar à razão os jovens barulhentos, a fim de conseguir o silêncio que se impunha ao meu sossego. O que fiz desta vez, já o poderia ter feito há muito, não fora o caso de eu ser noctívaga e estar mais do que acostumada ao soalho a gemer ao peso das passadas de ambos. Realço ainda a cama, que, sobretudo do lado direito, o dele segundo julgo por ser mais pesado, ranger como se fosse despencar sobre mim cá em baixo no minuto seguinte. Basta o rapaz mexer-se!... Rai’s parta a cama! Apesar disso, a minha atitude tem sido, “Quero lá saber, sejam felizes, paz e amor e uma queca quando for altura e lhes apetecer. Gosto de gente feliz. Antes isso, darem-se bem, beijinhos, abraços e risos, do que partirem a cabeça um ao outro em discussões tão frequentes como frequente é a boa disposição dos meus vizinhos”. Por tantas razões pensei duas vezes antes de agir. Afinal, estamos em tempos difíceis e toda a gente anda mais ou menos desnorteada com a incerteza do amanhã. Só que, no caso, era já hoje, 12 de Abril do malfadado ano de 2020, Domingo de Páscoa e as gargalhadas, àquela hora, pareciam-me excessivas. Ate para eles que também já deveriam estar a precisar de um bom sono como os meninos traquinas. E pronto. Depois de a porta não se abrir, desci. Já em baixo, ouvi o silêncio possível e daí a nada todos dormíamos. O raio do Covid 19 é que não há meio de nos largar os calcanhares…
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