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Autor Tópico: A Gata dos Telhados LVIII  (Lida 53678 vezes)
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Maria Gabriela de Sá
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« Responder #15 em: Agosto 12, 2020, 22:44:27 »

Assim é que é bom, o narrador ser enganado pelas personagens...

Abraço
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Dizem de mim que talvez valha a pena conhecer-me.
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outono


« Responder #16 em: Agosto 19, 2020, 20:06:59 »

- Não consigo imaginar o Damião nesses assados. Por outro lado e ligando as pontas, agora começo a entender porque trazia cada vez mais dinheiro para casa. Dizia-me que se matava a trabalhar.
-Esqueçamos , por agora o Damião, está incontatável. Se ficar na prisão, vamos fazer-lhe uma visita, e logo pensamos no assunto.  Então  o que diz esse relatório do marido desaparecido? Cheira-me que está tudo ligado.
- No percurso que seguimos da Idalina, não encontro nada fora do vulgar, disse Rosalinda. Depois de sair da sua casa apanhou o metro para a baixa da cidade, e dirigiu-se para o seu local de trabalho, a empresa Figueira & Laranjeira, export/import. À hora do almoço saiu e foi comer comida macrobiótica. Durante todo este percurso não contactou com ninguém. Voltou ao local de trabalho e quando saiu fez o trajecto de regresso a casa. Apenas notei numa foto, antes de entrar na estação do metro, uma ligeira paragem junto a uma mulher de etnia cigana, que parece entregar-lhe um objecto. Talvez seja importante ampliar essa foto.
-Irei  pedir ao fotógrafo para fazer a ampliação. Tenho a sensação que souberam das nossas diligências, e foi tudo encenado. Mas onde raio estarão as escutas? Bom, temos de nos alimentar. Vou preparar o jantar. Estou a pensar num bacalhau no forno com migas.
-Eu trato disso, Joaquim. Aliás, com toda a modéstia, migas é umas das minhas especialidades. Herança da minha mãe, que tinha uma costela alentejana, e que deliciava o Damião
A noite já ia velha e JCorreia esperava em vão pela vinda do sono. Rosalinda dormia a bom dormir. A prisão de Damião parecia não a ter afectado. O detective continuava a olhar para a foto de Idalina quando se cruzava com a cigana. Judite, a sua gata, dormitava aos seus pés, indiferente às preocupações do seu dono. Este olhou-a e invejou-lhe a vida simples e despreocupada. “Sabes judite, acho que estou metido numa grande alhada, mas também sei que não me podes ajudar. Se ao menos me desses um sinalzinho, com o teu instinto de gata, sobre o local onde está colocada a “escuta” fazia-te uma estátua. Mas hei-de descobrir.
Aquele estranho contacto da sua cliente com a cigana, fê-lo lembrar-se de uma outra cigana, Zaira que lhe previa o futuro, quando com o seu avô Baltazar Correia, ia à feira anual da sede do concelho. “O menino vai ser um bom "homem”. Ao seu avô e à sua avó, Beatriz Cavaca, não lia o futuro porque já não o  tinham. Falava do seu passado, desde a mais tenra idade. “Como é que raio a cigana sabe de coisas que nunca contei a ninguém”.
Joaquim viu-se recuar no tempo até 5 de Outubro de 1910, onde o seu avô, um jovem de doze anos, estava com outros jovens do seu tempo, a ouvir o senhor Joãozinho, proprietário rural, comerciante e republicano, a falar-lhes de uma revolução em Lisboa ,que pusera fim à monarquia, que agonizava depois do assassinato do rei D. Carlos e do príncipe herdeiro Luís Filipe . Manuel que herdara o trono impreparado para a função, tinha sido derrubado e partira para o exílio. O dirigente republicano José Relvas proclamou a República, nos Paços do Concelho. “Um futuro melhor se abrirá para vocês, e para o nosso povo “dizia-lhes o senhor Joãozinho
Comeram e beberam até à saciedade e a seguir partiram pelas ruas da aldeia a gritar vivas à República, como pedira o senhor Joãozinho. "Amanhã voltem para receber umas prendinhas e ver o que vamos fazer com a “padralhada” que juntamente com a monarquia são o mal deste país".
-Entrem rapazes, disse o senhor Joãozinho, estiveram muito bem, pela República. Hoje vamos dar mais um passo. Vão até junto da casa do padre Pinto, e dizer “fora os padres”. E não digam que eu vos mandei, porque a minha mulher é muito devota, mas acabará por se acostumar.
-Senhor Joãozinho disse Baltazar, não é preciso. O senhor padre Pinto já se foi embora, pois receava pela sua vida.
-Como soubestes?
-Esqueceu-se que o meu avô é o sacristão. Com a minha ajuda, enrolamos as patas de uma mula, para não fazer barulho, e o senhor padre Pinto partiu ao início da noite. Já está longe. Eu também não gosto de padres, embora fosse criado na sacristia, onde comia as hóstias com o meu primo Serafim, às escondidas. Claro que não estavam consagradas. E também sou republicano.
-Muito bem Baltazar. O problema resolveu-se por si. Como representante da República nesta terra tinha de tomar medidas.

JCorreia abriu os olhos, encandeados por uma réstia de sol matinal que entrava pela janela. ou pelo ruído vindo da cozinha. Levantou-se, como saído de um sonho, e viu Rosalinda a colocar na mesa o pequeno almoço.
-Ó Rosalinda, és minha secretária e não cozinheira. Aquele bacalhau envolvido em presunto numa cama de cebola, acompanhado de migas com feijão preto, estava divino, mas não é essa a tua função.
-Fiz com muito gosto. Gosto de cozinhar e é que faço todos os dias. Mas se fazes questão, na próxima é a tua vez.
-Combinado. Depois  do pequeno almoço, vamos trabalhar no caso do marido desaparecido. Primeiro passamos pelo porto para falar com estivadores, e a seguir tentamos descobrir a cigana da fotografia.
Continua
« Última modificação: Setembro 06, 2020, 20:42:15 por Nação Valente » Registado
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« Responder #17 em: Agosto 19, 2020, 21:36:49 »

"...Herança da minha mão, que tinha uma costela alentejana, e que deliciava o Damião....

Lapso,com certeza, uma pequena queda da mãe para a mão... 
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outono


« Responder #18 em: Agosto 24, 2020, 21:07:19 »

XV
-Combinado. Depois  do pequeno almoço, vamos trabalhar no caso do marido desaparecido. Primeiro passamos pelo porto para falar com estivadores, e a seguir tentamos descobrir a cigana da fotografia.

O porto tinha um aspecto estranho. A habitual azáfama de guindastes e contentores transformara-se numa quase total apatia, o que deixou surpresos JCorreia e Rosalinda. Dirigiram-se a um segurança a quem perguntaram o que estava a acontecer.
-Bom dia, disse o detective, transmutado com um chapéu preto, e vestido de fato e gravata, um disfarce para a ocasião. Sou o Araújo o advogado do estivador Damião, que ontem foi preso, e pretendia falar com alguns dos seus companheiros. A minha acompanhante é a sua esposa. Porque está o trabalho paralisado?
-Os trabalhadores estão reunidos com o seu sindicato. Creio que vão discutir questões laborais, relacionados com prémios de turno, e segundo consta, está na mesa, a convocação de uma greve. Vão até aos armazéns, perguntem pelo Acácio, é delegado sindical e conhece bem o Damião.

No local da reunião perguntaram pelo Acácio. Algum tempo depois, apareceu um senhor de meia idade, com longa barba e boina basca, uma espécie de imitação de Che Guevara. Dirigiu-se-lhes com ar afável.
-Sou o Acácio de Castro, em que posso ajudá-los?
-Chamo-me Rosalinda, sou a companheira do Damião, que ontem foi acusado de traficar droga e venho acompanhada por um advogado. Pretendemos recolher algumas informações sobre as razões que levaram à sua prisão.
-Muito prazer em conhecê-la. O que lhe posso dizer? O Damião é muito reservado, e não falava da sua vida privada. É um bom profissional e um bom camarada. Sempre disposto a entrar nas lutas contra os filhos da puta dos exploradores, que nos sugam como vampiros. Lembram-se da canção do Zeca? Esses mesmos. Hoje estamos aqui reunidos para decidir o que fazer em relação ao incumprimento contrato de trabalho.
-Mas senhor Acácio, relativamente à acusação do tráfico de droga, notou da parte do Damião algum comportamento estranho? Perguntou JCOrreia.
-A resposta é não. Sempre o vi concentrado no trabalho. Sempre disponível para fazer horas extraordinárias. Sim, porque ao contrário do que dizem, todos nós precisamos de as fazer para conseguir um salário digno. Quanto ao tráfico de droga, também fui apanhado de surpresa. Para ser sincero não via o Damião metido nesses assados. Mas não ponho as mãos no fogo por ninguém. Temos que esperar pelas provas policiais. Os trabalhadores do porto são gente de trabalho. Há quem se deixe corromper? Neste mundo capitalista é possível. Não posso adiantar muito mais.

-Eureka, disse JCorreia quando saiam do porto. Não adiantamos nada sobre a questão do tráfico de droga, o que era previsível, no entanto, penso que dei um passo de gigante na descoberta do local das escutas. Verifiquei que hoje não fomos seguidos. Possivelmente os seguidores não ouviram a nossa conversa de ontem à noite, o que significa que não está num suporte fixo. Já tenho uma pista. Preciso de voltar ao escritório. Tu, Rosalinda, vai até junto da empresa Figueira & Laranjeira, para observar a Idalina: Encontramo-nos na pastelaria Suíça para almoçar. Não andes por locais com pouca gente, e mantem-te sempre em contacto.

Nem o barulho da porta a abrir-se, nem os passos do detective acordaram a gata Judite que como boa noctívaga, prolongava a noite para dentro do dia num sono profundo. JCorreia sentou-se a olhar para o casario que parecia querer descer a encosta, para partir à aventura à procura de gentes que antes ali estiveram, e que deixaram parte da sua herança genética e cultural, que caldeou aquilo que é a idiossincrasia portuguesa. Lembrou-se de a ver bem representada, quando vivia na hospedaria, nos primeiros anos da década de setenta. Para além da proprietária, oriunda do alto Alentejo, quarentona divorciada, ali habitavam mais seis hópedes, e um seu filho solteiro. Eram jovens machos, com excepção da menina Olinda, vindos de vários recantos de Portugal, à procura de um futuro mais promissor.
A menina Olinda era transmontana, ou não se sabia se era ou sequer se existia. Joaquim Correia chegou a pensar que fosse um holograma. Para além da magreza quase transparente, ss únicas palavras que lhe ouviu, em vários anos, foi bom dia, boa tarde ou boa noite, quando se cruzavam no corredor. Durante as refeições entrava muda e saía calada. A seguir, recolhia ao quarto que partilhava com a proprietária, serena e discreta,
Havia ainda o Carlitos, da Beira Alta e o Carlão, da Beira Baixa, seu companheiro de quarto, um calmeirão que praticava atletismo, e arrastou Joaquim para empresa de vendas onde trabalhava. Os imãos Bicho Rato que trabalhavam na Cidla, eram o protótipo do verdadeiro alentejano.

-Estás a abrir os olhos Judite? Estava a recordar os tempos em que a cidade ainda era uma aldeia grande e eu vivia numa comunidade que representava quase todo o país. A convivência fazia-se nos muitos cafés, nos cinemas, nos teatros. A televisão tinha dois canais, os telemóveis e os computadores ainda eram ficção. No andar que ficava por cima da hospedaria, vivia uma actriz, que nos arranja bilhetes para os espectáculos em que participava. Num dessas peças, no  Teatro Experimental de Cascais, transportei a turma masculina, e o namorado da nossa hospedeira, que a dividia com a legítima Levou-a a ela e à menina Olinda. Na peça havia uma cena em que as actrizes apareciam a dançar em trajes menores, e vi pela primeira vez o corpo desnudo da nossa vizinha, chamada Irene. Havia de vê-lo mais vezes. Noutras circunstâncias. Tive sorte. Engraçou comigo. Dizia que me achava parecido com o Dustin Hofman, mas mais bonito.
Vê bem Judite? Achas-me parecido com o Dustin Hofman? Encolhes as orelhas? Ainda bem que não te percebo
Quando conheci a Irene, eu estava a passar um mau bocado profissionalmente. Trabalhava para uma empresa que vendia livros, “porta a porta”. Mas quem queria comprar livros num país com muito analfabetismo e sem hábitos de leitura? Foi nessa altura que recebi um convite do Carlitos, para ir à sua aldeia, lá para os lados de Freixo-de-Espada à Cinta, ao casamento do seu irmão. Que aventura! Se te portares bem, talvez te conte. Anda cá. Deixa-me ver uma coisa. Tenho uma chamada para atender…
-Estou…diz Rosalinda…já vou para aí. Tenho novidades. Descobri o microfone.

Tenho que sair. Depois vamos ter uma grande conversa, Judite.

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« Última modificação: Agosto 24, 2020, 22:39:44 por Nação Valente » Registado
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« Responder #19 em: Agosto 24, 2020, 21:15:27 »

Esta Judite está sempre no lugar certo...
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« Responder #20 em: Agosto 24, 2020, 21:59:54 »

- Não consigo imaginar o Damião nesses assados. Por outro lado e ligando as pontas, agora começo a entender porque trazia cada vez mais dinheiro para casa. Dizia-me que se matava a trabalhar.
-Esqueçamos , por agora o Damião, está incontatável. Se ficar na prisão, vamos fazer-lhe uma visita, e logo pensamos no assunto.  Então  o que diz esse relatório do marido desaparecido? Cheira-me que está tudo ligado.
- No percurso que seguimos da Idalina, não encontro nada fora do vulgar, disse Rosalinda. Depois de sair da sua casa apanhou o metro para a baixa da cidade, e dirigiu-se para o seu local de trabalho, a empresa Figueira & Laranjeira, export/import. À hora do almoço saiu e foi comer comida macrobiótica. Durante todo este percurso não contactou com ninguém. Voltou ao local de trabalho e quando saiu fez o trajecto de regresso a casa. Apenas notei numa foto, antes de entrar na estação do metro, uma ligeira paragem junto a uma mulher de etnia cigana, que parece entregar-lhe um objecto. Talvez seja importante ampliar essa foto.
-Irei  pedir ao fotógrafo para fazer a ampliação. Tenho a sensação que souberam das nossas diligências, e foi tudo encenado. Mas onde raio estarão as escutas? Bom, temos de nos alimentar. Vou preparar o jantar. Estou a pensar num bacalhau no forno com migas.
-Eu trato disso, Joaquim. Aliás, com toda a modéstia, migas é umas das minhas especialidades. Herança da minha mãe, que tinha uma costela alentejana, e que deliciava o Damião
A noite já ia velha e JCorreia esperava em vão pela vinda do sono. Rosalinda dormia a bom dormir. A prisão de Damião parecia não a ter afectado. O detective continuava a olhar para a foto de Idalina quando se cruzava com a cigana. Judite, a sua gata, dormitava aos seus pés, indiferente às preocupações do seu dono. Este olhou-a e invejou-lhe a vida simples e despreocupada. “Sabes judite, acho que estou metido numa grande alhada, mas também sei que não me podes ajudar. Se ao menos me desses um sinalzinho, com o teu instinto de gata, sobre o local onde está colocada a “escuta” fazia-te uma estátua. Mas hei-de descobrir.
Aquele estranho contacto da sua cliente com a cigana, fê-lo lembrar-se de uma outra cigana, Zaira que lhe previa o futuro, quando com o seu avô Baltazar Correia, ia à feira anual da sede do concelho. “O menino vai ser um bom "homem”. Ao seu avô e à sua avó, Beatriz Cavaca, não lia o futuro porque já não o  tinham. Falava do seu passado, desde a mais tenra idade. “Como é que raio a cigana sabe de coisas que nunca contei a ninguém”.
Joaquim viu-se recuar no tempo até 5 de Outubro de 1910, onde o seu avô, um jovem de doze anos, estava com outros jovens do seu tempo, a ouvir o senhor Joãozinho, proprietário rural, comerciante e republicano, a falar-lhes de uma revolução em Lisboa ,que pusera fim à monarquia, que agonizava depois do assassinato do rei D. Carlos e do príncipe herdeiro Luís Filipe . Manuel que herdara o trono impreparado para a função, tinha sido derrubado e partira para o exílio. O dirigente republicano José Relvas proclamou a República, nos Paços do Concelho. “Um futuro melhor se abrirá para vocês, e para o nosso povo “dizia-lhes o senhor Joãozinho
Comeram e beberam até à saciedade e a seguir partiram pelas ruas da aldeia a gritar vivas à República, como pedira o senhor Joãozinho. "Amanhã voltem para receber umas prendinhas e ver o que vamos fazer com a “padralhada” que juntamente com a monarquia são o mal deste país".
-Entrem rapazes, disse o senhor Joãozinho, estiveram muito bem, pela República. Hoje vamos dar mais um passo. Vão até junto da casa do padre Pinto, e dizer “fora os padres”. E não digam que eu vos mandei, porque a minha mulher é muito devota, mas acabará por se acostumar.
-Senhor Joãozinho disse Baltazar, não é preciso. O senhor padre Pinto já se foi embora, pois receava pela sua vida.
-Como soubestes?
-Esqueceu-se que o meu avô é o sacristão. Com a minha ajuda, enrolamos as patas de uma mula, para não fazer barulho, e o senhor padre Pinto partiu ao início da noite. Já está longe. Eu também não gosto de padres, embora fosse criado na sacristia, onde comia as hóstias com o meu primo Serafim, às escondidas. Claro que não estavam consagradas. E também sou republicano.
-Muito bem Baltazar. O problema resolveu-se por si. Como representante da República nesta terra tinha de tomar medidas.

JCorreia abriu os olhos, encandeados por uma réstia de sol matinal que entrava pela janela. ou pelo ruído vindo da cozinha. Levantou-se, como saído de um sonho, e viu Rosalinda a colocar na mesa o pequeno almoço.
-Ó Rosalinda, és minha secretária e não cozinheira. Aquele bacalhau envolvido em presunto numa cama de cebola, acompanhado de migas com feijão preto, estava divino, mas não é essa a tua função.
-Fiz com muito gosto. Gosto de cozinhar e é que faço todos os dias. Mas se fazes questão, na próxima é a tua vez.
-Combinado. Depois  do pequeno almoço, vamos trabalhar no caso do marido desaparecido. Primeiro passamos pelo porto para falar com estivadores, e a seguir tentamos descobrir a cigana da fotografia.
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« Última modificação: Agosto 30, 2020, 21:39:22 por Nação Valente » Registado
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« Responder #21 em: Agosto 25, 2020, 08:24:06 »

Adiante...
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« Responder #22 em: Agosto 30, 2020, 19:17:01 »

 XVI

Estou…diz Rosalinda…já vou para aí. Tenho novidades. Descobri o microfone.
Tenho que sair. Depois vamos ter uma grande conversa, Judite.


Na esplanada da pastelaria Suíça enquanto debicavam um bitoque com  molho de café. JCorreia e Rosalinda observavam a entrada do metropolitano para ver se  havia rasto da cigana. Rasto talvez houvesse, o que não havia era cigana. Mas havia um saboroso bitoque com molho de café. Entre uma e outra garfada, e um e outro gole de imperial, o detective que parecia ter renascido, pelos últimos acontecimentos, elogiava Rosalinda pela sua colaboração, nos casos, nada fáceis , que tinham em mãos.
-Estou contente pelo teu empenho, disse, e mais que por isso, por te ver com uma alegria que não era habitual. Ao contrário dos que dizem que mudamos a realidade, acredito que muitas vezes é ela que nos muda a nós. Nunca imaginei que estaríamos aqui a degustar um tradicional bitoque à pala de uma misteriosa cigana.

-Tenho a mesma sensação. Trabalhar, voltar a casa para a rotina das tarefas domésticas, sujeita aos humores do Damião, dormir à espera de mais do mesmo, era o meu dia a dia. Hoje, tenho esperança, que esteja a chegar, o meu 25 de Abril. Sei que não sou investigadora policial, mas senti-me  confortável a seguir a Idalina, e a descobrir que esta, se encontrou discretamente com o suposto desaparecido marido.
-Não te menorizes Rosalinda, estás a fazer um bom trabalho. Acho que, neste momento, somos uma equipa, cada vez mais unida pelo misterioso caso da Gata dos Telhados, que me parece, relacionada, com o caso do marido desaparecido. Pelo primeira vez desde a minha aposentação, parece-me que voltei a ser polícia. Quando descobri que o sistema de escuta estava na coleira da Judite percebi que esta não se cruzou comigo por acaso. Alguém me anda a espiar, de tal modo, que nem sei se sou investigador ou vítima.
-E agora o que fazemos?
-Vamos manter tudo como está. Não desligo o sistema, e faço de conta que nada sei, o que nos vai ajudar a dar mais uns passos na investigação.
Parece-me correcto Joaquim. Já despachamos o almoço, e da nossa cigana, nem sombra.

É verdade. Quando se fala em cigana, lembro-me da Zaira, que todos os anos encontrava  na feira da minha infância. “Cigana sabe tudo, senhor”. O meu avô franzia o sobrolho, mas achava graça à Zaira e deixava-a fazer as sua previsões. Embora não acreditasse nessas coisas, tinha a ideia, que fazia parte do pacote da feira. E sem a cigana a feira não ficava completa. Numa dessas adivinhações, lembro-me de ter dito, “esta família vai está ligada a três guerras. O senhor Baltazar foi o primeiro, o seu filho o segundo, e o seu neto será o terceiro, numa guerra muito mais distante. Mas não se assuste menino, porque vai voltar são e salvo. A Zaira não mente. Por acaso ou não, acertou. E se o meu avô tinha estado na Primeira Grande Guerra, e o meu pai na Guerra Cívil de Espanha na fase final, eu só viria a cumprir esse desígnio na Guerra Colonial.
Eu sei –disse Rosalinda, que saboreava um bolo de bolacha-que desde 1961 e até 1974, esse era destino dos jovens deste país, mesmo que não estivesse traçado nas linhas da mão. O irmão da minha mãe, também abandonado pelo meu avô, e o familiar com quem mais convivia, emigrou para França para que o seu filho não fosse para essa guerra. Foi e nunca mais voltou, como uma árvore a quem tinham cortado as raízes.

Tal e qual Rosalinda, muitos portugueses partiram para o exílio para fugirem a um conflito que não devia ter acontecido. Treze anos de uma inutilidade, até porque a solução só podia ser política. O meu pai também emigrou, mas eu fiquei, e cumpri o serviço militar obrigatório. Na Guiné consumiram-se dinheiro e vidas. Enquanto lá estive vi, muitas vezes, a morte perto. Perdi camaradas, fui ferido sem gravidade e estive hospitalizado. Aí conheci a outra dimensão da guerra: a loucura.

Quando estive internado no Hospital Militar de Bissau, para ser operado a uma perna atingida por estilhaços de minas, conheci o Alfredo, um farrapo humano, protagonista de uma história trágico-cómica. O Alfredo foi internado com uma depressão profunda. Era um jovem do Alentejo, que apenas queria que o tempo passasse depressa, para voltar para a sua aldeia, onde juntaria os trapinhos com a Ludovina, cujo nome ostentava orgulhoso, gravado a tinta, no braço direito. Mantinha com Ludovina correspondência regular através de aerogramas. Como não sabia ler quem lhe lia e escrevia as cartas, era um alferes da sua Companhia. As cartas foram diminuindo até que deixaram de chegar. O alferes notara que aquela relação iria terminar, mas ocultava a verdade para não angustiar o Alfredo. Um dia, chegou uma carta da sua mãe a dizer-lhe para esquecer Ludovina, pois não o merecia. Juntara-se com outro. O alferes não pôde esconder o sucedido. Alfredo ficou descompensado, e tentou matar o alferes. Teve de ser imobilizado e internado. Procurou, por vários processos, apagar o nome da namorada do seu braço, mas não resultou. Tinha de estar sedado. Num período de maior lucidez disse-me “eu não consigo viver com o nome de uma puta gravado no meu braço”. E não viveu. Numa fase em que parecia ter melhorado, conseguiu enforcar-se. Desculpa Rosalinda. São assuntos de que evito falar. Costumo abordá-los com a Judite, que ouve, mas que decerto que não entende português. As palavras são como as cerejas. O que a lembrança da cigana me fez recordar. E afinal parece que  da cigana que procuramos, nem sombra. Recebi uma mensagem. Será ela?
    

 Bom dia,
Chamo-me Laura de Castro, sou advogada. Soube da prisão do senhor Damião, no porto de Lisboa. Precisava de falar consigo. Quando me pode receber?

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« Última modificação: Agosto 30, 2020, 22:46:08 por Nação Valente » Registado
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« Responder #23 em: Agosto 30, 2020, 20:40:56 »

....A conversa é mesmo como as cerejas. E, com que então,  Joaquim passou de caçador a caça...
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« Responder #24 em: Agosto 30, 2020, 22:04:35 »

Daqui a uns anos, o valor destes textos será incomensurável. Parabéns! Continue. Isto é obra.
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Carlos Ricardo Soares
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« Responder #25 em: Agosto 30, 2020, 23:05:12 »

....A conversa é mesmo como as cerejas. E, com que então,  Joaquim passou de caçador a caça...
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« Responder #26 em: Agosto 31, 2020, 21:45:25 »

Pois...
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« Responder #27 em: Setembro 03, 2020, 20:37:00 »

XVIII
     Bom dia,
Chamo-me Laura de Castro, sou advogada. Soube da prisão do senhor Damião. Precisava de falar consigo. Quando me pode receber?

Laura de Castro deixou o detective de boca aberta. Nem alta, nem baixa, na medida certa, na sua perspectiva, já que nesse conceito, como em muitos outros, não existe bitola única. Viu-a   mais como uma daquelas belezas que fazem capa de revista, do que como advogada, sem desprimor para a beleza das mesmas, que também as há. Mas o que mais o atraiu, foram  os olhos, de um castanho claro e de um brilho, que hipnotizava. Uma sensação estranha, mas ao mesmo tempo reconfortante, deixou-o quase sem reacção. Pensou que se tivesse tido uma filha, era assim que a imaginava. Procurou retomar a naturalidade, e disse-lhe para entrar e para se sentar. Chamou Rosalinda que apresentou como sua secretária.
-Então a que devemos a honra da sua visita, senhora doutora Laura?

-Muito obrigado por me ter recebido senhor detective. Venho em representação de uma cliente que partilhamos, e que o senhor conhece como Gata dos Telhados.
Gata dos Telhados? Nem sei se lhe posso chamar cliente. Não sei quem é, nem o que pretende. Até agora, parece-me mais fantasma, que gente deste mundo. O certo é que desde que aceite o caso, ou não caso, parece que ando rodeado de almas penadas, salvo seja.
-Garanto-lhe que essa cliente existe e a prova é que aqui estou a seu pedido. Será que me considera um fantasma detective Correia?
-Claro que não doutora Laura, mais que não seja porque mostra sentido de humor…mas podemos fazer a prova. Aceita um café? Confirma que tem substância física.
-Um café é uma bebida que não consigo recusar.
-Eu trato disso, disse Rosalinda, deslocando-se para a cozinha, de onde apareceu, pouco depois, com três chávenas de café.

-Ora bem, então vou-lhe transmitir a proposta que trago da minha cliente. Ela disponibilizou-me para fazer a defesa do senhor Damião, marido da sua secretária, sem quaisquer honorários, se estiverem de acordo.
-Doutora, há uma coisa que me intriga. A nossa cliente, mostra estar bem informada, dos últimos acontecimentos a que a Rosalinda está ligada. Tem poderes "advinhatórios" ou anda a espiar-nos?
Nem uma coisa nem outra. A Gata dos Telhados, por enquanto chamemos-lhe assim, antes de contratar os seus serviços, procurou informar-se  da competência de quem precisava de contratar, o que é normal, não acha?  A propósito ainda não vi o outro membro da família, a Judite.
-A Judite? Bem …não sei a que família pertence…talvez uma infiltrada…Rosalinda o que acha da proposta da senhora advogada?

-Não precisam de responder já. A nossa cliente interessou-se pelo Damião. E ironia das ironias, ela também teve um passado de consumo e de pequeno tráfico. Desceu aos infernos da loucura. Tudo começou quando o marido a deixou com uma criança para nascer. Acusou-a de adultério e de não ser o pai, porque sabia que era infértil. Resquícios de papeira na juventude. Procurou sobreviver sozinha mas não foi fácil. Para conseguir pagar as despesas, começou a vender o corpo. Uma mão lava a outra e da prostituição ao consumo de drogas, ou vice-versa ,há um pequeno passo. Começou por consumir marijuana e acabou em produtos mais pesados, com haxixe.

Em 1983 assistiu ao assassinato de uma amiga que a ajudou na fase mais difícil da sua vida. Foi uma das vítimas no processo que ficou conhecido como o “estripador de Lisboa”. Nunca superou essa situação, ainda hoje tem pesadelos, e é muito crítica em relação  à investigação deste processo, até porque não existem crimes perfeitos. Algo falhou. A Gata dos Telhados, depois desses crimes, teve força para se superar. Fez tratamentos de recuperação e reorganizou a sua vida. Mas tem contas a ajustar com o passado. O processo prescreveu em 2008, mas tem a convicção que o assassino está vivo. E que por falta de meios que não existiam e por incapacidades diversas, e decisões incompreensíveis, como a substituição do primeiro coordenador do caso, já não pode ser acusado. No entanto, ainda não desistiu de esclarecer a situação em nome das vítimas e dos seus descendentes.

JCorreia ouviu-a atentamente. Também esteve na equipa que iniciou a investigação, e sempre sentiu alguma frustração por não ter continuado. Olhou para Laura e desabafou:
-O caso do “estripador”, não foi resolvido pela PJ, como não foram outros idênticos, noutros países. Foi uma investigação complexa onde o criminoso não deixou provas evidentes. Mas também penso que se podia ter ido mais além. Portanto, pode contar com a minha colaboração. Quanto à defesa do Damião se a Rosalinda concordar, pode assumi-la.

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« Última modificação: Setembro 06, 2020, 20:44:53 por Nação Valente » Registado
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« Responder #28 em: Setembro 03, 2020, 22:31:26 »

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outono


« Responder #29 em: Setembro 06, 2020, 20:41:02 »

XIX
-O caso do “estripador” não foi resolvido pela PJ, como não foram outros idênticos, noutros países. Foi uma investigação complexa onde o criminoso não deixou provas evidentes. Mas também penso que se podia ter ido mais além. Portanto, pode contar com a minha colaboração. Quanto à defesa do Damião se a Rosalinda concordar, pode assumir a sua defesa.

Laura Castro despediu-se reforçando a sua disponibilidade para defender Damião. JCorreia olhou para Rosalinda, à espera de uma opinião.
-Ainda estou na fase da surpresa, disse, para já penso que devíamos   recolher mais informações sobre a senhora advogada.
-Tens razão. Vou falar com um amigo da Ordem dos Advogados, para comprovar se a dita advogada faz parte da mesma, e se merece confiança. Nas primeiras impressões parece-me que está de boa fé, embora não consiga perceber, o que pretende a dita Gata dos Telhados, e ainda menos no que nos está a envolver. Um caso bicudo, com muitos bicos. Até parece que vivemos dentro de um romance, e somos marionetas de um autor alucinado.

Rosalinda saiu para fazer compras. JCorreia sentou-se na sua chaise longue. Precisava daquele isolamento. A catadupa de acontecimentos tinham mudado a sua vida rotineira de detective privado de casos passionais. O silêncio funcionava como uma droga para um dependente. O reavivar da história das prostitutas esventradas, que escondera num recanto escuso da memória e fechara a sete chaves, entrara de rompante na sua vida como uma tempestade inesperada. Como polícia habituara-se a lidar com o lado obscuro da vida, homicídios, mortes por overdose, e tanto quanto possível habituara-se a viver com isso, com naturalidade. Mas a imagem daquelas mulheres, expurgadas dos seus órgãos internos, sempre lhe causara uma sensação e enjoo. Interrogara-se e interrogava-se como era possível haver um ser humano capaz de cometer tal atrocidade. Na altura quebrou psiquicamente, e a imagem  perseguiu-o durante meses, tirando-lhe o sono ou causando-lhe pesadelos. O reacendimento dessas memórias, fê-lo infringir os conselhos médicos de tolerância zero à bebida e ao tabaco. Bebeu um copo de wisque e acendeu um charuto. Entre uma outra fumarada, conseguiu relaxar, e refugiar-se num tempo em que fora feliz e não sabia. A gata Judite aproximou-se a ronronar, mas JCorreia ignorou-a. Já estava noutra dimensão.

Corria o ano de 1973, quando um dos seu companheiros de hospedaria, o Carlitos, o convidou para o transportar à sua terra de nascimento, onde ia realizar-se o casamento do seu irmão. Joaquim Correia era o único que tinha automóvel, entre os seus amigos, e percebeu que o Carlitos o queria contratar como motorista e transportador privado. Não lhe desagradou a ideia. Não tinha nada de especial para fazer e iria conhecer uma região do país, lá para os lados de Freixo de Espada à Cinta. Olhou para o Carlitos e disse-lhe:
-Vou ser sincero. Teria muito gosto  em ir, mas não posso. Como sabes mudei de trabalho, e estou a passar um mau bocado. Indo directamente ao assunto, depois de pagar a mensalidade do alojamento, fiquei com vinte e cinco tostões no bolso.
-Não há problema Quim. Eu pago-te o combustível, e pago-te a alimentação durante as viagens. Na aldeia vivemos à conta dos velhotes.

Partiram numa sexta-feira de manhã em direcção a Coimbra. Almoçaram numa cervejaria e continuaram subindo e descendo serras, por estradas de um país pobre e subdesenvolvido. Estava o dia a despedir-se quando chegaram à aldeia do Carlitos.
Na pacatez daquele lugar descrito nos romances de Camilo, de Eça, ou de Júlio Dinis, Joaquim viu um reflexo da sua terra. A pequena agricultura como modo de vida. A saída dos mais jovens para zonas mais industrializadas e para a emigração. A população rural que começava a envelhecer, como o pai do Carlitos. Joaquim apenas notou uma diferença em relação à sua região. A habitação, em granito, tinha dois pisos. No piso inferior acomodavam-se os animais, e no piso superior viviam as pessoas.
Os pais do Carlitos, pessoas simples, e cujo primeiro filho com vinte e dois anos ia casar, acharam estranho que Joaquim quase trintão, ainda estivesse solteiro, a caminho de ser solteirão, pelos padrões daquela comunidade. E como gente solidária procuraram logo ali arranjar-lhe casamento.
-Senhor Joaquim, disse a mãe do Carlitos, o meu compadre, sapateiro e comerciante, um dos homens mais importantes da terra, tem duas filhas casadoiras, que andam a estudar para professoras primárias. Vá lá ver de uma delas.

Joaquim, com ou sem vontade, teve de ir quando o Carlitos foi visitar o sapateiro que era seu padrinho. E lá estavam as ditas moças casadoiras, mas falaram sobretudo com o pai, um bom vivente, que duas vezes por semana transportava produtos agrícolas para Lisboa. Bom conversador, entre duas marteladas na sola, falou das suas viagens, dos locais que visitava, e como bom macho latino, até de algumas aventuras, quando a mulher e as filhas, que iam ser professoras, não estavam presentes.
-Então senhor Joaquim já viu da filha do meu compadre?
Joaquim, balbuciava, desviava o assunto, e pensava “mas como raio é que um pelintra perdido nas azinhagas da vida, sem rumo definido, e com vinte e cinco tostões no bolso, que nem dão para comprar uma rosa para lhe abrir a porta do coração, pode interessar-se pelas filhas do sapateiro andante”.

No dia da boda, juntaram-se os convidados na igreja para a cerimónia religiosa, que foi breve, seguindo depois para o repasto servido pelos padrinhos, numa sala da sociedade recreativa. Quando os noivos partiram para a sua lua-de-mel, Joaquim, sentado ao lado de Carlitos, notou que outras mocinhas, naturalmente casadoiras, cochichavam e riam, enquanto lhe dirigiam olhares furtivos. Foi nessa altura que Joaquim lhe pareceu ter os bolsos do seu casaco creme e apropriado à estação. Meteu a mão no bolso, sentiu uma coisa pegajosa, e tirou restos de frango. Risada geral. Veio-lhe à memória o rei D. João VI, que andava com os bolsos da casaca de seda cheios de pedaços de frango, e que comia mesmo durante encontros diplomáticos.
-Então Joaquim, estás a guardar mantimentos, para a viagem, observou Carlitos
Joaquim fez um sorriso sem cor, ao mesmo tempo que pensava. Esta mocidade feminina deve saber que só tenho vinte e cinco tostões no bolso, e quer alimentar-me”.

Antes de regressarem, e na despedida, a mãe do Carlitos, voltou a dizer:
-Senhor Joaquim , não viu da filha do sapateiro, mas veja lá de uma mulher.
Haveria de ver, mas não era assim tão moça, e muito menos casadoira.
Rosalinda regressou com as compras. Estava a anoitecer. Abriu a porta e apenas escuridão e silêncio. JCorreia, dormia a bom dormir, com um charuto apagado na boca.

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Sejam bem vindos às escritas!
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Bom Ano! Obrigada pela companhia!
Dezembro 30, 2022, 19:42:00
Entrei para desejar um novo ano carregado de inflação de coisas boas para todos
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Partilhar é bom! Partilhem leituras, comentários e amizades. Faz bem à alma.
Novembro 10, 2022, 20:30:23
E, se não for pedir muito, deixem um incentivo aos autores!
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Boas leituras!
Novembro 10, 2022, 20:29:08
Boa noite!
Setembro 05, 2022, 13:39:27
Brevemente, novidades por aqui!
Setembro 05, 2022, 13:38:48
Boa tarde
Outubro 14, 2021, 00:43:39
Obrigado, Administração, por avisar!
Setembro 14, 2021, 10:50:24
Bom dia. O site vai migrar para outra plataforma no dia 23 deste mês de setembro. Aconselha-se as pessoas a fazerem cópias de algum material que não tenham guardado em meios pessoais. Não está previsto perder-se nada, mas poderá acontecer. Obrigada.

Maio 10, 2021, 20:44:46
Boa noite feliz para todos
Maio 07, 2021, 15:30:47
Olá! Boas leituras e boas escritas!
Abril 12, 2021, 19:05:45
Boa noite a todos.
Abril 04, 2021, 17:43:19
Bom domingo para todos.
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Boa semana para todos.
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Boa tarde a todos.
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