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Autor Tópico: A Gata dos Telhados LVIII  (Lida 53477 vezes)
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Goreti Dias
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« Responder #60 em: Novembro 16, 2020, 16:01:24 »

Assisti e participei de muitas matanças de porco. Lá tinha que ser... Um dia correu-me mal!
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Goretidias

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outono


« Responder #61 em: Novembro 19, 2020, 20:54:42 »

XX
- Lamento, advogada, a situação que descreveu. Por acaso, a Rosalinda também passou por um processo idêntico, e ultrapassou. Ainda hoje foi numa missão algo complicada. amos ver como se sai. Depois falará consigo.

Laura de Castro saiu da Penitenciária com a convicção que Damião era um filho da puta. Um indivíduo que maltrata o seu semelhante, valendo-se do seu maior poder, não merece outro epíteto. Neste caso, era a sua própria mulher, a vítima,  mas se fosse outra pessoa indefesa merecia-lhe o mesmo repúdio. A sua mãe, hoje empresária de sucesso, mas que vivera tempos muito difíceis, procurara dar-lhe uma educação, baseada na fraternidade e no respeito pelos semelhantes. O pai, de quem ostentava o apelido, e que com a mãe continuara casado, mesmo depois da separação que ele forçara, pondo-a fora de casa, não era o seu pai biológico. A mãe, nunca lhe quis dizer quem era, limitando-se a informar que  resultara de um encontro fortuito, que queria esquecer.

Ainda tinha memórias de viver na casa de uma ama, onde recebia a visita da mãe, que lhe ocultava a sua profissão. Veio a saber mais tarde que vivia  da prostituição, de onde tirava proveitos para se sustentarem. Já frequentava a escola quando passou a coabitar com a mãe, num apartamento da outra margem da cidade. O pai, que não era, morreu de doença incurável, e nunca fez testamento. Deste modo Aida, a sua mãe, casada com comunhão de bens, herdou todo o património, o que lhe permitiu refazer a sua vida.
Apesar de as ter expulsado de casa, quando ainda vivia na barriga da mãe, e de nunca o ter conhecido, compreendia as suas razões, e tinha-lhe mais respeito, de que ao desconhecido pai biológico, que considerava tão filho da puta, quanto Damião. Sabia pela experiência da própria vida, que o amor e o ódio, eram extremos que se tocavam. Sentiu depois desse encontro com o marido de Rosalinda, uma vontade quase obsessiva de conhecer, desejo que sempre tivera, o seu verdadeiro pai, para lhe testar a consciência se a tivesse. Foi com este pensamento que chegou à fábrica, onde Aida, estava reunida com uma equipa de designers, tendo em vista o lançamento de uma nova colecção.

Aida quando a viu entrar, notou no seu semblante, um ar de preocupação, e interrompeu a reunião para a receber.
-Que cara Laura? –disse – que se passou?
- Peço desculpa mãe, por te interromper. Estive reunida com o preso acusado de tráfico de estupefacientes, na Penitenciária. Não aceitou os meus serviços de advocacia, insultou a mulher, o detective, e acabou por me faltar ao respeito. Isso, em si, não me incomoda, mas fez despoletar no meu íntimo, um sentimento de vingança, em relação a muitas injustiças, incluindo as de que nós fomos vítimas. Quer gostes ou não, estou decidida a saber quem te engradivou e a seguir nos deixou.
- Laura – respondeu Aida – não alimentes desejos de vingança. Remexer nesse passado, não vai alterar nada. A responsabilidade do que aconteceu também foi minha. Talvez um erro de juventude. Contratei JCorreia, porque quero fazer justiça, não em relação à minha vida pessoal, mas a amigas que não mereciam o que lhes aconteceu.
- Compreendo e apoio o teu objectivo, mas quer queiras quer não, estou determinada a avançar. JCorreia talvez me possa ajudar.
- És teimosa Laura. JCorreia foi um investigador policial que, enquanto agente da PJ, esteve ligado a processos importantes, e que redundaram em fracassos investigatórios. Hoje, não passa de um pobre diabo, que quer continuar a brincar aos polícias. Apesar disso, considero que me pode ajudar no meu plano de fazer a justiça que nunca foi feita, pelo conhecimento que tem desse passado. Foi uma promessa que fiz , em nome das vítimas de um assassino sem sentimentos. Sabias qual foi o primeiro grande processo a que esteve ligado. Foi ao caso que ficou conhecido como FP25.
- Pelo que vejo, a mãe está bem informada sobre o percurso do detective.
- Sim, a partir do momento em que nos cruzámos, no processo das FP25. O movimento Forças Populares de 25 de Abril, formados por militantes da extrema-esquerda, foi fundado em 1980, para combater o sistema parlamentar e capitalista, designação que davam ao regime saído da revolução de Abril. Pretendiam instalar um sistema basista de democracia popular. Apresentaram-se com rebentamento de petardos em todo o pais, assassinatos selectivos, de policias e empresários, assaltos a bancos, como forma de financiamento. Era então uma jovem empresária, que procurava salvar a empresa que herdara do meu ex-marido. Sofri ameaças desse movimento, relacionadas com eventuais despedimentos de trabalhadores. Foi durante a chamada operação Orion, em 1984, que me cruzei com o então agente Correia da PJ. Esteve na empresa como elemento da brigada antiterrorista, para recolher informações sobre as ameaças que tínhamos recebido. A operação Orion que começou com prisões no Porto, alargou se a todo país, o que permitiu, prender muitos operacionais, embora não tivesse levado ao seu desmantelamento. Foi quando foi preso e acusado o coronel Otelo, estratega do 25 de Abril, que sempre recusou pertencer às FP25. Depois voltaríamos a cruzar-nos no caso das prostitutas assassinadas. Tem, como podes ver, conhecimento sobre esses processos.


JCorreia retirou da garagem o seu velho MG descapotável, uma relíquia que comprara nos anos setenta, e que considerava uma, a das suas joias da coroa. Desceu até ao porto e viajou ao longo da marginal. Pareceu-lhe que regressava ao passado, a um tempo em que a vida não lhe pesava, e ia até ao casino do Estoril, derreter umas moedas, e procurar algum encontro ocasional. Percorreu a devagar a distância até ao Estoril, procurando fruir a paisagem, onde o rio e o mar se entrelaçavam num casamento eterno. O seu destino, não era o casino, mas uma casa rosa, disfarçada, numa rua discreta. Estacionou o MG, e esperou. Tinha a percepção, quase a certeza, que seria um lugar ligado a abusos sexuais.

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« Responder #62 em: Novembro 22, 2020, 21:19:41 »

As FPs 25 de má memória, mas a direita reacionária de memória idêntica . E depois, os arrependidos... Enfim, coisas da História.
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Dizem de mim que talvez valha a pena conhecer-me.
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outono


« Responder #63 em: Novembro 26, 2020, 20:34:12 »

XXI
O seu destino, não era o casino, mas uma casa rosa, disfarçada, numa rua discreta. Estacionou o MG, e esperou. Tinha a percepção, quase a certeza, que seria um lugar de abusos sexuais.

Ernesto Boavida viu o MG estacionado e estranhou. Tinha do seu lado duas razões: naquela rua periférica viviam sempre os mesmos carros; aquele MG antigo, além de ser uma viatura que não se via a circular, não fazia parte do cenário. Era um intruso. Quando se aproximou, viu sair do seu interior, uma personagem, para ele tão desconhecida como o veículo. Era um homem vestido com umas calças de ganga, bastante usadas, uma t-shirt amarela, e um blazer azul. Um rosto indefinido, de onde sobressaiam uns óculos escuros de tipo “raibanâ€. Uma boina basca disfarçava-lhe o couro cabeludo. À primeira vista pareceu-lhe uma personagem, algo exótica, saída dos anos sessenta. Juntamente com o carro dava a ideia de ter regressado de outra realidade. Quando passava ao lado do MG, tentando mostrar descrição, o desconhecido deu um passo em frente, soltou uma baforada de fumo, que lhe pareceu ser de charuto, e ouviu-o dizer, numa voz firme:

- Senhor Ernesto, dá-me um minuto do seu tempo?
Ernesto paralisou, e interrogou-se se não estaria a ter alucinações.
- Sou JCorreia, detective privado, e precisava de lhe dar uma palavrinha.
- JCorreia, o detective, que costuma ter o anúncio no DN? Muito gosto. Acredite ou não , sempre gostei de conhecer um detective de carne e osso. Conheço muitos detectives mas são todos feitos de papel e tinta, e cuja ação decorre em páginas de livros. Gosto particularmente de um chamado Dennis McShade, (Mulher e Arma com Guitarra Espanhola) pseudónimo do escritor português Dinis Machado, que se tornou conhecido pelo romance, “O que diz Moleroâ€.  Abandonou a escrita, com muita pena de Lobo Antunes, seu amigo pessoal, que lhe reconhecia, grande talento. Mas voltemos à realidade. A que devo a honra de me querer falar?
-  Obrigado  pela disponibilidade. Também sou um detective de papel. Acabou de dizer que me conhece das páginas de um jornal. Quero apenas fazer-lhe umas perguntas, relacionadas com o seu desaparecimento…
- Desaparecimento? Interrompeu Ernesto, mostrando surpresa.
- Foi o que me disse a Idalina, sua mulher, que me encarregou de o procurar.
- A Idalina? Deve estar a gozar consigo, como gozou comigo. Julgava-o mais perspicaz. Essa grande cabra sabe que nunca desapareci. abandonei-a para não fazer um disparate. Enrolou-se com o gerente da empresa onde trabalha, um tal Januário Brilhante. Pôs-me os chavelhos, percebeu. E desconfio que não foi o primeiro. Culpa minha. Juntei-me com ela, apesar de todos os avisos “essa gaja não é de confiança, já tem historialâ€. Estava cego e surdo. Sabe como é, a carne é fraca, a garina era jeitosa, bem, e na cama, uma louca.
- Chega ,senhor Ernesto, não preciso de mais pormenores. Se estiver interessado há por aí muita literatura erótica. Se bem percebi, o senhor “deu de frosque†e ela teve essa percepção.
- Claro que soube. Disse-lhe na cara. Disse-lhe o que Maomé não disse do toucinho. Sou um cabrão, mas com a alma lavada. O que me apeteceu foi…enfim…não quis estragar a minha vida por causa de uma puta. Fiz o que tinha que fazer. Um homem tem a sua dignidade.
- Então tenho que concluir que a Idalina me mentiu. Há uma coisa que não percebo, porque raio me encarregou do encontrar. E há outra coisa que gostaria de saber: mora ou trabalha nesta vivenda rosa?
- Mudei-me para aqui. – disse  Ernesto , após uma breve reflexão. - Refiz a vida. A minha vontade era ter emigrado, para não voltar a ver as fuças dessa galdéria.
- Muito bem, vou fazer o relatório, entrega-lo à Idalina, e encerrar o caso. Agradeço  a sua colaboração. As minhas desculpas pelo tempo, que lhe ocupei.

Laura, embora nos anos oitenta fosse uma criança, e a política não fizesse parte do seu mundo, lembrava-se vagamente da existência das FP25, devido à sua mediatização. Na sua memória conservava registos de violência, bombas, atentados, perseguições políticas, sem muita noção de quem as praticava e quais as motivações. Mais tarde, percebeu que essa violência esteve ligada à extrema esquerda mas também à extrema direita. E como estudante de Direito conheceu em pormenor todo processo, incluindo a operação Orion de que a mãe lhe falava. E que foi possível à PJ, entrar dentro da organização, conhecer membros e acções programadas graças aos chamados “arrependidos†que passaram a informadores da polícia. Era uma adolescente quando aconteceu a morte das prostitutas, por um assassino que nunca foi descoberto. Seguiu o processo de perto por as vítimas serem conhecidas da sua mãe, que na altura se interessou por ajudar a resolver o caso. Aida mantinha amizade com Maria José que conhecera no tempo em que vivera naquele meio. Foi uma das testemunhas ouvida pelo inspector coordenador, da equipa de seis elementos, designada para investigar os crimes, Vítor Campos. Ficou muito desiludida com o rumo das investigações. Nem pistas, nem indícios. Nada. Estava convicta que o assassino estava vivo. E faria tudo para o encontrar. A utilização dos serviços do detective privado, o único dessa equipa, o então subinspector Correia, que ainda continuava ligado à actividade investigatória, era fundamental. Laura decidiu não carregar na tecla, da descoberta de quem era o seu pai. Continuaria a ajudar a mãe na sua intenção de fazer justiça. Como se diz, "uma mão leva a outra e as duas lavam o rosto"Quem sabe se não se aplicariam ao seu desejo.

JCorreia despediu-se de Ernesto Boavida, com um “fique bemâ€. Estava convicto que lhe estava a mentir. Quis dar-lhe a ideia que acreditava no que lhe dissera.  Não podia espantar a caça. Meteu-se no velho MG com destino a Lisboa. Ao passar perto do casino lembrou-se da última vez que ali estivera como jogador. Foi numa noite chuvosa de Março de 1975. Saiu da hospedaria onde vivia, depois de jantar, com destino a Paço de Arcos, onde vivia Irene, que alugara um apartamento com uma colega, numa nova urbanização pensada para gente nova. Irene e a sua amiga não lhe abriram a porta. Apercebeu-se que estavam acompanhadas. Foi então que decidiu ir para o Estoril, onde entrou no casino. A sala de slot machines estava quase cheia. Várias filas de máquinas ocupadas por viciados ou desesperados como era o seu caso. Quando saiu já noite velha, não tinha um tostão no bolso. Azar no amor, sorte no jogo, uma ova. Uma chuva forte não dava descanso ao limpa para brisas. Numa marginal quase deserta carregou a fundo, no acelerador do seu “miniâ€. Lembra-se de ultrapassar vários carros numa correria louca, mas chegou inteiro a casa. Irene ficara, de vez, para trás. No dia seguinte, o Processo Revolucionário em Curso, daria mas um passo no caminho da radicalização, depois do RALIS ser atacado por forças spinolistas. Para Joaquim Correia, na fase política, funcionou como um antidepressivo para o seu desencanto.

O MG, uma raridade, atraía olhares de mirones à sua passagem, perante a indiferença de JCorreia, embrenhado nos seus pensamentos. Ao aproximar-se do seu apartamento, pensava no que Rosalinda descobrira, para poder ligar às pontas que resultaram do seu encontro com Ernesto.
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« Responder #64 em: Dezembro 01, 2020, 21:34:26 »

Vamos lá prosseguir cm este romance tão diversificado...

Abraço
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outono


« Responder #65 em: Dezembro 02, 2020, 21:50:06 »

XXII
O MG, uma raridade, atraía olhares de mirones à sua passagem, perante a indiferença de JCorreia, embrenhado nos seus pensamentos. Ao aproximar-se do seu apartamento, pensava no que Rosalinda descobrira, para poder ligar às pontas que resultaram do seu encontro com Ernesto.

Quando entrou no seu apartamento JCorreia encontrou Rosalinda, junto ao fogão, bem disposta e a cantarolar uma canção em voga em ritmo de fado, enquanto preparava a refeição que compensava um dia de trabalho produtivo. Recebeu-o com um largo sorriso.
- Bons olhos te vejam Joaquim. Estava a ficar preocupada. Liguei-te várias vezes para o telemóvel, sempre desligado.
-  Agradeço a preocupação, respondeu Joaquim, um pouco emocionado. Um solitário assumido e com laços familiares cada vez mais restritos, não espera que  alguém se preocupe com a sua pessoa. Mas não me queixo, foi esta a minha opção de vida. É o preço a pagar quando se privilegia a liberdade pessoal. Eu sei que o ser humano é, por natureza, um ser social, e não fujo à regra, mas por necessidade, ou por acaso, sacrifiquei a constituição de uma família, com mulher, filhos, netos, rotinas, a uma independência, sem compromissos. Reflexões filosófico/sentimentais à parte, ficas avisada que em trabalho, estou ausente do que não estou a fazer. Evito interrupções. Telemóveis ligados só atrapalham. E afinal o que estás a cozinhar? O cheiro já me está a fazer subir a testosterona.

- Tem maneiras Joaquim. Depois da lenga lenga sobre a solidão, arriscas-te a não pôr o dente no meu petisco. E não penses que é uma poção mágica que ressuscita o que está morto. É apenas um arroz de marisco, receita da minha mãe, que já vinha de família.
- Acredito, a minha mãe, também o fazia. Quem sabe se não é a mesma receita? Foi o prato que a minha mãe cozinhou, no dia do regresso do meu pai após, uma longa ausência.
Ausência? Interrogou Rosalinda, mostrando surpresa.
- Ausência primeiro dolorosa, depois aceite. Está tudo registado numa carta que ainda guardo. Se tiveres um pouco de paciência, enquanto esperamos, pelo teu petisco, vou relê-la. Costumo fazê-lo em silêncio. Como todas as cartas familiares a principal via  de contacto na época, começa assim.

Ribeira de Mouros, 5 de Novembro, 1967

Estimado  filho,
Espero que esta carta te vá encontrar de boa saúde. Nós por cá bem graças a Deus.


Não passava de uma frase feita, em desacordo com o conteúdo.

Tenho que te dar uma notícia que te vai surpreender. O teu pai emigrou para França. Foi contra minha vontade. Teimou que tinha que ir, porque a lavoura estava a morrer, o contrabando a desaparecer, e queria ir para um sítio onde se ganhasse dinheiro. Ainda lhe disse que no nosso país, podia também arranjar outro trabalho, e que com quase cinquenta anos era muito arriscado. Não me ouviu e ainda teve que se endividar, pedindo oito contos ao António da venda, a juros, para pagar ao passador. Partiu à aventura, e eu é que fiquei com o coração nas mãos. Já não me bastava tu estares na tropa, e puderes ir para a guerra, cai-me isto em cima. Tenho andado num enervamento que só Deus sabe.

Esta ida do meu pai para França não me causou qualquer surpresa. Sempre vi o meu pai com uma insatisfação, e uma irrequietude que o levava, a recomeçar tudo de novo.
Anos antes, ainda era criança, lembro-me de se ter inscrito no programa do Estado Novo para ir para Angola. Recebia uma fazenda e outros apoios. A mãe disse “se quiseres ir, vais sozinhoâ€. Acabou por ficar, mas porque o Estado não pagava as viagens, e não tinha possibilidade de o fazer. A seguir inscreveu-se no programa salazarista de colonização interna. Iria receber terra e alfaias na região de Pegões. A concorrência era muita e não foi selecionado.

Estive mais de duas semanas sem notícias, mas só agora te conto, porque não te quis preocupar, já chegam as minhas preocupações. Ontem recebi uma carta sua a dizer que já estava em França, um pouco abalado, mas bem. Diz assim:
Estou numa região que se chama val d`Oise, depois de uma longa viagem. Entrei em Espanha pela Beira Alta. Tivemos de passar a fronteira a salto, durante a madrugada, coisa que não me era estranha, a não ser o local. Depois fomos transportados por carro, viajando por estradas menos usadas, descansando em casas abandonadas ou palheiros. Em Hendaia passamos de novo a fronteira. Começou a parte mais dura. Tivemos que atravessar serros “à pataâ€. À partida éramos um grupo de quarenta almas.
Levamos cinco dias e cinco noites. No primeiro dia caminhamos por uma zona com árvores. Só parámos para comer. Quando anoiteceu dormimos numas casas abandonadas. No segundo dia, entrámos numa parte mais inclinada. Ãamos por um caminho muito estreito. Caia um chuva miudinha. O piso estava muito escorregadio. As botas com pregos ajudaram-me. O passador avisou,  â€œtenham muito cuidado, se alguém escorregar, nunca mais se vêâ€. Houve um moço à minha frente que começou a deslizar. Consegui agarrá-lo com perigo para mim. Arranjei um amigo para sempre. No terceiro dia, o mais ruim, passamos pelos cimos mais altos, o nevoeiro cerrado era como se andássemos no escuro. O cansaço começou a sentir-se. O passador dizia: “ninguém paraâ€. Na parte de trás alguém começou a atrasar-se “esperem por mimâ€. Ninguém paraâ€. Ao anoitecer paramos junto a uma cabana, onde dormiam ovelhas. O passador enxotou-as para fora, para nos proteger-nos. O frio quase nos paralisava  Fez-se a contagem. Já faltavam dois. Os pés de gente muito mais nova estavam em sangue. No quarto dia escasseava a comida. Recebíamos chocolates para nos aguentarmos. No quinto dia chegámos junto a uma estrada, onde estava um camião. Dizia: Camião – Porcos. Entramos. Havia um bidon para fazer as necessidades.
O camião deixou-nos junto a uma pequena aldeia. Houve quem apanhasse um carro de praça, porque já levava morada de conhecidos. Eu fui encaminhado para uma "ferme", ou seja fazenda, que cultivava beterraba. O patrão fez-me os papéis “carta de trabalho†que tenho que levar ao consulado para me legalizar
.

O meu pai havia, mais tarde, deixar esse trabalho, ingressando na fábrica onde se fazia o açúcar.

O cheiro do cozinhado de Rosalinda, era cada vez mais intenso. JCorreia, respirou fundo.
- Vamos lá provar essa delícia. Recordar esta história fez-me fome.
A refeição foi feita em quase silêncio, acompanhada de um branco de Borba. JCorreia não se cansou de elogiar a cozinheira, mas faltava uma surpresa. Rosalinda tirou do forno um bolo de maçã. Correia ficou sem palavras, e pensou de si para si. Com uma mulher assim talvez tivesse hipotecado a sua vocação de solitário. Voltou a elogiar a cozinheira.

- Estou rendido Rosalinda. Não há dúvida, pela boca morre o peixe, mas diz-me: como correu a tua diligência na empresa de import/export.

- Correu muito bem. Meti o gerente, um tal Brilhante, num chinelo. Não sei se é mérito meu, se é ele que é choninhas. Tenho-o na palma da mão. Acreditou na patranha que somos empresários de brinquedos e produtores de pornografia. E deu a entender que fazem esse negócio, com outras repercussões. Agora tenho de descalçar outra bota. Está convencido que estou presa aos seus encantos. Se pensa que vai sentir a macieza da minha pele, ou pôr as pernas em cima ou em baixo das minhas, pode tirar o cavalinho da chuva. Não sou nenhuma santa, e tenho os meus desejos, mas não era com um gajo com cheiro a brilhantina, que trairia o ainda meu marido.
- Muito bem, disse Joaquim, continuas  a surpreender-me. Mas não quero que te ponhas em risco. Hoje estive a falar com o Ernesto. Disse cobras e lagartos da Idalina, mulher ou suposta mulher. Acusou-a de ser amante do tal Brilhante, e de a ter abandonado. Essa empresa e a casa rosa, parecem-me ser duas faces da mesma moeda. Coisa feia. Também tenho de te informar que o Damião, não aceitou os serviços da Drª Laura, e ainda te descompôs. Vais ter de te reunir com ela, para resolver a tua relação com o Damião.
- Amanhã, se nos receber, falaremos com ela, disse Rosalinda.

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« Última modificação: Dezembro 03, 2020, 14:08:15 por Nação Valente » Registado
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« Responder #66 em: Dezembro 03, 2020, 20:02:24 »

De vento em popa! O romance e a Rosalinda!
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outono


« Responder #67 em: Dezembro 09, 2020, 21:54:19 »

XXIII
Também tenho de te informar que o Damião, não aceitou os serviços da Drª Laura, e ainda te descompôs. Vais ter de te reunir com ela, para resolver a tua relação com o Damião.
- Amanhã, se nos receber, falaremos com ela
…

JCorreia e Rosalinda chegaram ao escritório da advogada Laura Castro à hora combinada. Tinham-se levantado cedo para tomar o pequeno-almoço numa pastelaria que servia umas apetecíveis barrigas de freira. O detective que tivera de prescindir das bebidas alcoólicas e do tabaco, em relação aos quais, apenas cometia uns deslizes, desforrava-se na boa doçaria. A sua secretária, promovida a assistente com sucesso, sacrificava o sabor da doçaria á manutenção de um corpo sem adiposidades. Acompanhou Joaquim no pequeno almoço, mas conteve-se na ingestão de hidratos de carbono. O apetite teve de se satisfazer com um chá verde e uma torrada sem manteiga. Como tinham tempo, pouparam energia ao elevador, e subiram a pé as escadas até ao andar onde estava o escritório da drª Laura. Esta , abriu-lhes a porta, pedindo que esperassem um pouco numa pequena sala, até acabar uma reunião que estava a decorrer. Era uma sala com várias cadeiras, e com uma pequena estante com  livros.
JCorreia não conseguiu que o seu olhar se afastasse daquela estante,  onde se embrenhou nos títulos de livros que ali repousavam. Ao contrário do que a sua mente esperava, não havia livros dedicados a assuntos jurídicos, mas romances, ensaios, poesia, com predominância de autores portugueses. Um dos títulos que o impressionou foi “O Labirinto da Saudade†de Eduardo Lourenço, um pensador que admirava. O detective, que sempre teve como amante fiel a literatura, não pode deixar de se admirar com os gostos de Laura, e com quem continuava a identificar-se. Se tivesse sido sua filha, não esperava melhor.
Laura saiu do escritório com uma jovem, talvez da sua idade, que acompanhou até à saída. Pediu desculpa pelo atraso e mandou-os entrar para o seu gabinete. Sentou-se num sofá e pediu-lhes que se sentassem num outro, procurando criar um ambiente de proximidade.
- Estejam à vontade. Recebo-os com muito gosto. Para Aida não são apenas clientes mas amigos. Vou tirar um café. Querem acompanhar-me?
- Obrigado disse JCorreia, sondando com o olhar Rosalinda. Acabámos de tomar o pequeno-almoço. Não faltarão ocasiões para esse tipo de partilhas. Antes de entrarmos no assunto que aqui nos traz, quero felicitá-la pela rica biblioteca que tem na sala. Sempre pensei os advogados como pessoas fixadas nas leis, mas pelo que vi, concluo que os seus gostos se alargam à boa literatura e até à Filosofia. Refiro-me ao livro do grande pensador, Eduardo Lourenço.
 - O acaso e a necessidade levou-me para Direito, mas talvez não seja essa a minha principal vocação. Eduardo Lourenço é um autor que me ajuda a pensar e a perceber o mundo, com simplicidade e sem qualquer pretensiosismo, como são os grandes homens.
-Penso da mesma maneira - disse Joaquim Correia, afastando-se do papel de detective que assumira na peça da vida – e será assunto para falarmos, mas noutro contexto. Agora vamos ao que nos trouxe cá. Já sabemos que o Damião a rejeitou como advogada. Nada a fazer. A Rosalinda vai continuar a precisar dos seus serviços .
- Já falamos do caso Damião. Mas antes quero informar quem era a senhora que  eu estava a atender quando chegaram. Até porque o assunto que estávamos a tratar, também vos interessa. Trata-se da filha da prostituta que foi morta em 1993, por um assassino que nunca foi descoberto pela polícia. A Otília Meireles, é assim que se chama, veio dar-me algumas informações que recolheu sobre o eventual criminoso, considerado um Serial Killer. Quando mãe de Otília , Clotilde Barros, foi assassinada, ela era muito pequena, e as suas memórias são muito difusas. Apenas anos mais tarde, tomou consciência desse facto pelo pai e pelos avós. Teve uma infância muito complicada.
Uns anos depois da morte da mãe foi dada para adopção, mas como a sua natureza er rebelde e pouco disciplinada, fugiu dos adotantes: Andou um pouco ao “deus-daráâ€. Na idade adulta constituiu uma família. Manteve e mantem, uma relação próxima com a empresária Aida, amiga da sua mãe. É sua madrinha, e  sempre a acompanhou. Hoje está empenhada em encontrar quem a privou da presença da sua mãe. Está a fazer um dossiê, onde constam os suspeitos desse crime, e está convicta que entre eles está o estripador. Esperamos entregar-vos esse material. Contamos convosco para ajudar. Quanto ao Damião, aguardo a posição da Rosalinda.
- A minha posição é simples drª Laura. O acaso afastou-me desse homem. Vivi com ele durante cerca de duas décadas, um inferno do qual acabo de sair. Não pretendo voltar a esse tempo. Avance com o processo de divórcio.
- Assim farei – disse Laura – mas prevejo que Damião não aceitará. Teremos de avançar para um divórcio litigioso. Que motivo vai apresentar?
- Os motivos assentam em maus tratos. Pressão psicológica e violência física.
- E tem testemunhas, algumas provas, Rosalinda?
- Testemunhas, não sei – disse Rosalinda – fazendo um esforço de memória. Estas coisas passaram-se paredes adentro. É possível que alguns vizinhos se tenham apercebido, mas não sei se quererão testemunhar. Os hematomas desaparecem com o tempo. O que penso ter de concreto, são gravações, que a partir de determinada altura resolvi fazer.
-Entregue-me esse material quando puder. Irá ajudar.
- Irei procurar advogada, mas seja como for, a bem ou a mal, o Damião está fora da minha vida. Sobre este assunto, confio na sua competência. E agora, porque sei que o Joaquim quando vem para estes lados não prescinde de um almoço na Flor do Minho, onde se comem os melhores grelhados, tomo a iniciativa de a convidar para nos acompanhar nessa refeição.
- Teria muito gosto – respondeu Laura, levantando-se para se despedir – mas hoje tenho dia muito ocupado, e já combinei almoçar com a Aida, a nossa gata dos telhados. Certamente haverá mais oportunidades.

Na Flor do Minho, pediram bifes com molho secreto, acompanhados de verde tinto, de produtor independente. Enquanto esperavam e degustavam uma orelha de porco em vinagreta, Rosalinda notou em Joaquim o semblante carregado: Percebeu que a insistência no caso do estripador, que já escondera num recanto obscuro da memória, o perturbava. Procurou trazê-lo para o que sempre o entusiasmava quando estava naquele lugar. As memórias da juventude. Começou por lhe dar uma canelada, que fez Joaquim reagir.
- Porra Rosalinda – disse, subindo o tom de voz, a ponto de chamar a atenção de outros clientes, - tens a pata grande!
- Desculpa Joaquim, mas queria tirar-te  desse cisma. Já te conheço. Afinal, que memórias recuperas hoje, ligadas a este sítio?
- Ligadas a este restaurante tenho um manancial recordações, que nas mãos de um escritor prolixo dava para escrever, no mínimo, uma trilogia. Imagino Irene sentada numa destas mesas, discreta, espalhando charme. E lembro-me da cena que fez certo dia quando almoçávamos, com o Carlão, o meu companheiro de quarto. Ele disse que tínhamos estado no hotel Roma, a catrapiscar moças, com o perfume das ex-colónias, e que estavam instaladas nesse hotel. Chamavam-se então retornadas. Com essa provocação, pensei que o Carlão me queria roubar a moça. Mas tudo se compôs, naquele dia.

O que estava difícil de compor era a vida dessa multidão de gente que veio das nossas colónias, de um dia para o outro, após uma descolonização descontrolada. Os nossos militares, cansados de treze anos de guerra, não queriam meter-se mais nesse assunto. Os políticos que o resolvessem. Um processo longo, pacífico e controlado, que salvaguardasse todos os interesses, teria sido possível nos anos sessenta (e já era tarde), mas era impossível na situação em que as coisas estavam. O poder político do Estado Novo, orgulhosamente só, não percebeu, ou não quis perceber que a solução era política, e quanto mais se adiasse, mais dolorosa seria.
Quem não percebia isso, eram os ditos retornados, expressão algo desajustada, porque muitos tinham nascido e vivido apenas nas colónias. De um momento para o outro, perderam tudo. Vieram com uma mão à frente e outra atrás. Foram arrumados em hotéis e pensões pagas pelo Estado. No hotel Roma e noutros locais, eram um mundo. Lembro-me da praça do Rossio onde ocupavam várias pensões. Em Angola, MPLA e UNITA disputavam o poder com armas. Savimbi dizia que se ganhasse a guerra, todos os colonos voltariam. Aqueles cidadãos portugueses acreditavam nisso, agarravam-se a essa esperança como um náufrago a uma frágil tábua. O que podiam fazer? Fora disso, os seus horizontes, não tinham horizonte. Foi um dos lados escuros da revolução, mas ao ponto em que as coisas tinham chegado, o que havia a fazer? Minimizar prejuízos e integrá-los. No hotel Roma, ouvi uma dessas moças dizer que ia para Inglaterra. É a sina de um país pequeno, que perdeu de supetão grande parte do território que administrava. A pouco e pouco a situação foi-se resolvendo e diluindo. É assim o português, com grande capacidade de adaptação. Vi nessa gente muita determinação. E se a bela moça que apreciei me tivesse levado consigo, não teria de me sujeitar aos caprichos de Irene, concluiu Joaquim, recuperando a boa disposição.
- Grande lição – disse Rosalinda, satisfeita por ter de volta o velho Joaquim.- Agora vamos ao bife com molho secreto.

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« Responder #68 em: Dezembro 13, 2020, 18:22:22 »

Temas ainda bem presentes na nossa memória. Conheci alguns "retornados". Tempos difíceis!
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outono


« Responder #69 em: Dezembro 17, 2020, 20:13:11 »

XXIV
- Grande lição me deste  â€“ disse Rosalinda, satisfeita por ter de volta o velho Joaquim. Agora vamos ao bife com molho secreto.

- Ora Rosalinda a descolonização das colónias, foi sentida por quem a sentiu na pele, mas todos nós a vivemos, com mais ou menos, atenção –disse Joaquim enquanto degustava a sobremesa de arroz doce -Refugio-me  no passado, para fugir aos bloqueios que me paralisam a mente. Nessa altura, para esquecer desilusões amorosas empenhei-me na política. Aderi a um pequeno partido de esquerda, que era dirigido, por um revolucionário romântico, de nome Serra, que estivera ligado à resistência clandestina. Participara no falhado golpe do quartel de Beja que seria o início de uma revolução que  levaria o general Humberto Delgado ao poder, que lhe fora esbulhado por Salazar nas eleições de 1958, de acordo com a oposição. Depois Serra integrou-se no PS, com o intuito de o tomar por dentro. Foi derrotado no Congresso, e desapareceu de cena. Começou e terminou aí a minha incursão na política activa, porque não se encaixava a minha maneira de ser e estar.

-E então o que te bloqueia agora a mente? Outro desgosto amoroso? Perguntou Rosalinda
- Desse tipo de desgostos já me reformei. Até posso dizer que não me sinto um velho, pelo menos em pensamento. A verdade é que envelhecemos, mas talvez por um mecanismo de autodefesa, não nos focamos nessa eventualidade. Olhamos para o espelho e vemos mudanças que assumimos com naturalidade. E sentimos, pelo menos eu sinto, que somos o que vemos, esquecendo o que já fomos. A porra é que por mais novo que esteja o espírito, o corpo começa a não o acompanhar. Ainda me encanto com a beleza feminina, mas não passa de apreciação estética. Não dá para mais. Agora o que me bloqueia é o caso da “gata dos telhadosâ€.
- Percebi na conversa com a drª Laura, que ficaste embaraçado com a investigação para que te querem arrastar. Para mim é fácil resolver. Compreendes onde quero chegar?
- Diz-se no senso comum, Rosalinda, que os ratos são os primeiros a abandonar o barco. Como embarquei nisto, talvez por ingenuidade, não vou saltar fora. Vou entrar no jogo da “gata dos telhadosâ€, e vou ainda mais além. Paralelamente quero descobrir quem é essa gata , para além das aparências. Sinto que há qualquer coisa que me atrai para essa tarefa, e que não consigo racionalizar. Mas para já vamos concentrar-nos no caso do marido desaparecido. Tentei contactar a Idalina para lhe entregar o relatório. Não me atendeu. Telefonei para empresa Laranjeira e Figueira, onde trabalha, e informaram-me que lá não trabalha nenhuma Idalina. Tudo se conjuga, cada vez mais, para estarmos perante um assunto de contornos sexuais.
- Foi o que me pareceu na conversa com o Januário Brilhante, confirmou Rosalinda. A propósito tenho amanhã um almoço com o sujeito. Já temos material preparado?.
- Pedi a um amigo ligado à produção de vídeos, para me fazer um pequeno filme para apresentarmos. No entanto, a estratégia passa por tentar que nos cedam uma amostra do material que possuem. Vais ter de ser convincente.

O dia amanheceu preguiçoso. Nuvens escuras e pesadas de água concentrada, que ameaçavam romper-se, esconderam os raios de sol, o grande candeeiro que iluminava os campos e as cidades. Rosalinda, tinha o encontro marcado com Januário Brilhante, num restaurante da zona do Chiado. A missão que levava a cabo começava a preocupá-la. E se correra bem no primeiro encontro, não podia cometer qualquer deslize. Sabia que encantara o gerente  Brilhante, com os seus dotes de sedução, mas que tinha que o refrear. Vestiu-se de forma mais discreta, com calças e uma camisola de gola alta. Este esperava-a no hall de entrada. Um empregado  conduziu-os a uma mesa num local discreto da sala. Enquanto tomavam um aperitivo, Januário, com o cabelo ainda mais brilhante, iniciou a conversa.

- A senhorita não para de me surpreender. Consegue ainda estar mais bela que quando a conheci.
- Ora, Januário, - disse Rosalinda forçando-se a mostrar alguma intimidade – já não sou uma jovem, mas procuro manter-me apresentável. Quando me olho ao espelho gosto de gostar da minha imagem. Penso que somos todos um pouco assim. Pelo menos desde que na Grécia um cidadão chamado Dionísio, se apaixonou pela sua imagem reflectida na água.

Januário mexeu-se na cadeira, com algum incómodo, surpreso com aquela Rosalinda, algo distante da do primeiro encontro.

- Deixa-me um pouco engasgado. Não a imaginava nessa faceta de senhora tão culta.  Isso contribui para aumentar a admiração que tenho por si. Vejo-a a olhar para a ementa. Já escolheu? Se me permite dou-lhe uma sugestão: aqui a açorda de marisco é uma especialidade.
- Aceito a sua sugestão. Se vamos ser parceiros de negócios, temos de ter confiança. Quanto ao elogio que me fez deixe-me dizer-lhe que sou uma pessoa simples. Mas por detrás das aparências todos somos uma caixinha de surpresas. Sei como me comportar, em cada situação. Noutra contexto haverá outra Rosalinda, - afirmou gastando algum charme para activar a chama.-  Passemos à frente, este é um almoço de trabalho e temos de continuar. Hoje trago um vídeo para lhe entregar com uma amostra do que produzimos. Pretendemos que o vejam e depois digam se estão interessados. Também nos interessa  adquirir material, do mesmo tipo, que vocês importem.
O cheiro da acorda de mariscos já tinha chegada à mesa antes de ser servida a Rosalinda e Januário, por esta ordem. A sua degustação interrompeu a conversa entre os dois comensais.

Um pouco mais tarde JCorreia entrou na empresa de confecções de Aida, a autodenominada “gata dos telhadosâ€, e apresentou-se com detective JCorreia. Disse que precisava de falar com a directora. O funcionário da portaria perguntou se tinha marcação. Perante a negativa e a sua insistência que era urgente falar com Aida, este, depois de fazer um telefonema, informou o detective que ia ser conduzido ao gabinete da direcção.
Aida levantou-se para o receber, cumprimentando-o com um aperto de mão. O gabinete era pequeno e simples. Além da secretária de trabalho, havia dois sofás. Nas paredes como decoração estavam umas fotos antigas. Joaquim reparou no olhar calmo, no ar sereno, e no porte discreto de Aida. Continuava a sentir que havia algo que o intrigava.
- Que surpresa detective JCorreia, ou cidadão Joaquim Correia, como preferir - disse Aida, mostrando alguma satisfação, pelo aparecimento do detective. – A que se deve esta visita inesperada?
- As minhas desculpas por aparecer sem marcação, senhora Aida.
- Esteja à vontade , -interrompeu Aida – e deixe-se de formalismos. Trate-me por Aida. Vamos fazer uma caminhada juntos.
-Como quiser –respondeu JCorreia.-  Vim sem avisar por causa de informações que ontem recebi da advogada Laura de Castro, sobre o caso dos assassinatos de prostitutas, no início dos anos noventa. Achei oportuno falarmos. Embora fosse um assunto, para mim ultrapassado, estou disponível para ajudar.
- Fico satisfeita, Joaquim, por se envolver. Não esperava outra coisa. De facto, desde que o caso foi oficialmente encerrado que pesquisamos por conta própria. Temos uma lista de suspeitos, que foram sendo descartados por falta de provas. Como o Joaquim participou nessa investigação, penso que terá memórias que serão uma mais-valia para a nossa investigação. Iremos entregar um relatório, com todos os dados.
- Ficarei à espera. Antes disso tinha algumas questões para lhe colocar, relacionadas com esse tempo, se não se importar. Gostaria de saber em que ano entrou para a prostituição, como conheceu a mãe da  Otília e se saiu dessa vida antes ou depois da  morte de Clotilde.
- Comecei a prostituir-me depois do meu marido me ter expulso de casa, por ter descoberto que me envolvera com outro homem. Foi uma relação passageira mas muito intensa. Nem sempre controlamos os nossos sentimentos. Podia ter tido continuidade, mas não teve. Apesar das consequências, não me arrependo. Entrei para essa vida  em 1976. Quando se deram os assassinatos, já me tinha afastado. Comecei na rua, onde conheci a Otília, e mais tarde mudei para acompanhante de luxo. Tudo fiz para deixar esse mundo e consegui.
- E desse homem? Voltou a ter notícias?
- Sim. Por mero acaso.
- E sabe se ele acompanhou a sua vida, depois do fim da relação?
- Perdemos o contacto, - referiu Aida, começando a mostrar algum nervosismo, - mas não percebo que importância isso tem para o que estamos a tratar?
- Se houve norma que sempre segui foi a de que não se deve menosprezar nenhuma pista. Estou aposentado da PJ, por limite de idade, mas ainda estou lúcido. Confie em mim. Já a desiludi?

Silencio

- Bem…adiante. Confio no seu trabalho e por isso o contratei. E estou a empenhar-me neste assunto para ajudar a minha afilhada, filha da Clotilde, que também é vítima indirecta. Como disse, quando esses assassínios aconteceram, já tinha me tinha conseguido afastar, mas mantive os contactos com pessoas que conheci nesse meio, e que procurei ajudar. E tenho um conhecimento desse mundo e do que lhe está associado. Convivi até com uma prostituta que teve a sua iniciação na “escola†forçada  dos “ballet roseâ€. Decerto que sabe do que se trata?
-  Soube mais tarde, confirmou Joaquim. Quando isso veio a público estava na Guiné a cumprir serviço militar. Na altura o Presidente do Conselho, Salazar abafou o caso, que implicava altas figuras da política. Depois da queda do regime, circulou informação sobre o assunto, e passou na RTP uma série, do escritor/argumentista Moita Flores. Estou a fazer uma investigação que aponta para práticas idênticas. Essas coisas estão sempre a acontecer.de uma ou de outra forma.

Das nuvens que obscureciam o dia começaram a cair grossos fios de água. Era como se o céu se desfizesse em lágrimas, num choro pelos desmandos da humanidade. Aida retomou a conversa.

Acredito Joaquim. A luxúria sexual não tem limites, e é transversal a classes sociais profissões, religiões…
- Se a Aida não esgotou a sua paciência comigo, fazia-lhe só mais uma pergunta,  de mera curiosidade.
- Responderei se souber…
- Porque se autodenomina “gata dos telhados�
Um sorriso misterioso aflorou no rosto de Aida.
- É uma longa história: Um dia talvez lha conte. Apenas digo que quando era muito jovem tive um namorado  que  me tratava, com carinho, dessa maneira. O telhado veio depois.

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« Última modificação: Dezembro 19, 2020, 23:49:23 por Nação Valente » Registado
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« Responder #70 em: Dezembro 19, 2020, 20:39:37 »

"Creio para essa vida  "
"começaram cair grossos fios de água"

Falta ali alguma coisa. Percebe-se perfeitamente, mas pode editar.
Vamos continuar sem saber porque se chama assim...


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« Responder #71 em: Dezembro 23, 2020, 19:07:46 »

XXV
- É uma longa história: Um dia talvez lha conte. Apenas digo que quando era muito jovem tive um namorado que me tratava, com carinho, dessa maneira. O telhado veio depois."

- Pois Aida continua a manter o mistério, e continuamos sem saber.
- A seu tempo saberá, Joaquim. O mistério é uma forma de aguçar a curiosidade. Já viu o que era o autor de um romance policial, desvendar o nome do assassino a meio da história?
- Tem razão, faz parte da estrutura da escrita ficcionada, em qualquer género, manter o leitor preso até ao fim, se, em primeiro lugar, o agarrar desde o início. Será o que chamo de clássico, mas também há variantes. Estou a lembrar-me da Crónica de Uma Morte Anunciada, Garcia Marquez. Os assassinos e o assassinado são conhecidos desde a primeira página. Mas mantém o leitor interessado, com a sua maestria narrativa.

A luz de um relâmpago entrou, sem convite, no gabinete de Aida. A chuva, primeiro tímida, como dois amantes que procuram conhecer-se, foi aumentando de volume e de intensidade, tornando-se atrevida, forte, como uma paixão sem barreiras. Aida levantou-se e dirigiu-se até junto da janela, de onde se avistava a entrada da empresa. Joaquim seguiu-a e colocou-se a seu lado. Sentiu uma sensação ao mesmo tempo estranha e agradável, acompanhada de um odor feminino que lhe parecia familiar. Mantiveram-se se em silêncio a observar a chuva que continuava a cair, transmutada em bocados de água congelada, que cobria o chão de um manto branco. Joaquim lembrou-se da primeira vez que assistira a um “dilúvio†parecido, e que lhe provocou um ataque de pânico. Agora esses fenómenos não o assustavam tanto. Para mais, desta vez, estava acompanhado, por alguém que lhe transmitia serenidade.

Devia ter seis ou sete anos. Saiu de casa do seu avô Baltazar, para a casa dos seus pais. Nuvens escuras, vindas do litoral começavam a cobrir o céu. A meio do seu percurso chegaram fortes pingos que depressa se transformaram numa bátega de chuva constante. Teve a sensação que lhe despejavam, na cabeça, um balde de água  Na casa para onde ia, não havia ninguém. Encharcado dirigiu.se para a morada da sua avó materna. Deparou-se com a mesma situação. Acolheu-se num alpendre que dava entrada para os palheiros e esperou. Foi aí que se apercebeu que aquela não era uma chuva habitual. Saberia depois que era chuva de pedra, como era ali conhecida. Naquele momento assustou-se e relacionou o facto com o apocalipse, com que o assustavam nas aulas de catequese.
Quando o esgarrão parou, quase tão repentinamente como tinha chegado, deslocou-se para a casa dos seus pais. A roupa tinha aumentado de peso. O seu pai chegara da lavoura, protegido por uma capa de oleado. Era por natureza reservado e indiferente. Limitou-se a dizer: “por onde raio andaste Quim? Estás molhado que nem um pintoâ€. O granizo que Joaquim via da janela com Aida, já não o perturbava, mas nunca deixara de estar presente, como um trauma, na sua vida. Aida quebrou o silêncio.

-Joaquim, vou pedir ao meu motorista que o leve a casa. Está um grande temporal.
Joaquim acordou de uma espécie de encantamento, e lembrou-se de Rosalinda, que podia estar no almoço com o gerente da empresa de import/export, ou quem sabe, no meio daquele vendaval. Como teria corrido o encontro? Rosalinda estaria bem?


.- Obrigado Aida. Não é necessário. Estava a lembrar-me de uma tempestade parecida que me assustou quando era muito pequeno. Estava sozinho. Parecia que naquele local toda a gente tinha desaparecido. Hoje, pelo contrário estou bem acompanhado. Não se preocupe. Apanho um táxi e de caminho vou buscar a Rosalinda ao Chiado.
- Ainda bem que aprecia a minha companhia, e não o apresso, mas faço questão de lhe fornecer transporte.

O almoço que juntara Rosalinda e Januário, chegara à sobremesa. A conversa sobre negócios fora interrompida. Januário parecia mais interessado em Rosalinda, enquanto parceira de refeição, do que em parceira de negócios. Pediu a conta, pegou na mão de Rosalinda e disse:
- Espero que tenha gostado do almoço. Eu gostei como sempre, mas este ainda foi mais saboroso, pela agradável companhia.
- Agradeço o almoço, - respondeu Rosalinda, libertando a mão – e congratulo-me também pelo avanço na nossa parceria, nos negócios. Será útil para as duas empresas.
- Não duvido,- disse Januário – mas a brevidade da existência, deve levar-nos a pensar que devemos tirar partido das coisas boas da vida, e não pensarmos apenas no trabalho.
- Com certeza, - concordou Rosalinda – Penso da mesma maneira. Mas há um tempo para tudo, e este é de trabalho. Outros poderão vir. Vou-lhe fazer uma confidência: tive uma má experiência sentimental, e estou numa espécie de ressaca.
- Confidência por confidência também lhe faço a minha. Posso parecer um sedutor barato. Pelo contrário. Sou um homem muito só. A minha companhia é um gato. Habituei-me a viver assim, mas desde que a conheci, que não me sai do pensamento.
Compreendo, e ninguém sabe o dia de amanhã.- disse Rosalinda fazendo um esforço para inverter o assunto.- Ainda estou mais só, pois nem gato tenho, ou melhor tenho um de louça. Represento uma empresa e é nessa condição que aqui estou. Não posso misturar as coisas. Peço que analise o nosso vídeo, e nos mostre o que tem. Acrescento que as meninas que estão no filme também se disponibilizam para outras tarefas. Voltaremos a falar. Agora tenho de ir. Ainda vou para outra reunião.

Rosalinda saiu para apanhar um táxi. A chuva forte tinha parado Os táxis passavam todos ocupados. Ao fim de meia hora, parou um carro com motorista. Joaquim abriu o vidro e disse:
- Rosalinda, aceitas uma boleia?
- Que se passa Joaquim. Recebeste uma herança? Tens carro com motorista?
- Foi uma oferta do Pai Natal. Entra depressa. Quem apanha chuva molha-se

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« Responder #72 em: Dezembro 30, 2020, 23:21:36 »

Vamos lá para a frente com isto. Boas festas...
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outono


« Responder #73 em: Dezembro 31, 2020, 19:45:25 »

- Que se passa Joaquim. Recebeste uma herança? Tens carro com motorista?
- Foi uma oferta do Pai Natal. Entra depressa. Quem apanha chuva molha-se


Rosalinda dirigiu-se para o carro que a esperava. O motorista saiu, atrapalhando o trânsito, e abriu-lhe a porta. Depois de se instalar, e agradecer, Rosalinda olhou para Joaquim e disse:
- Parece que estou a subir na vida. Saio de um almoço com o gerente de uma empresa, que quase me propõe casamento, quando ainda nem descasei., e sou recebida por um carro com motorista. Vamos lá para a frente com isto. Até parece que adivinhaste que eu precisava de apoio.
- Se estás a subir ou a descer, não sei – disse Joaquim, não escondendo uma boa disposição.- O que sei é que tu mereces ser feliz. Hoje também tive um bom dia, na presença da Aida, uma verdadeira gata dos telhados. E cedeu-me este transporte. Mostra que se preocupa comigo. Quem não gosta de ser mimado? Pelo que ouvi da tua boca, depreendo que a reunião com Januário, voltou a correr bem. Ou estou enganado?

-Só o tempo dirá. Januário pareceu-me mais interessado na minha pessoa, do que no eventual negócio. Hoje ao contrário do que tinha acontecido no primeiro encontro, mostrei-me mais recatada, e talvez o tenha baralhado. Quanto ao negócio pouco se avançou. Acho que ficou um pouco desiludido, e não sei se desconfiado.
- Não te preocupes Rosalinda. O caso do marido desaparecido, que tínhamos para resolver, está encerrado. O que está para além disso não nos diz respeito. Apenas tenho continuado, por curiosidade policial. Será, quando muito, assunto para a PJ e não para a investigação privada. Mas vamos continuar atentos, pois ainda não percebi, e quero perceber, porque me foi pedido que resolvesse um falso desaparecimento. É uma motivação para continuar. O que me entusiasma é a investigação. Sou um pouco como os escritores que escrevem por prazer. Gostam que os leiam e até que o livro se venda bastante, mas não é esse o principal objectivo num país que padece de iliteracia. Leitores em número reduzido e muito focados nos escritores com imagem mediática. Se a literatura fosse um modo de vida, estaria condenada. Ainda bem que há quem escreva, e bem, por amor à escrita. É como uma vício, uma espécie de cocaína que não se pode dispensar. É esse espírito que me move. Portanto, a estratégia, neste caso,  Ã©: fazer-nos de peixe morto, e deixar assentar a poeira. E continuo a contar contigo e com a tua perspicácia, para levar a tarefa a bom porto. Ainda hoje a Aida me lembrou o escândalo conhecido com “Ballet Roseâ€, nos finais dos anos sessenta. Estes casos com contornos diversos, são recorrentes, e transversais a todos os regimes, mas agora aproveitemos o momento para admirarmos esta cidade única.

O carro, com mordomia. deslizava por um cidade quase deserta. A chuva torrencial tinha afastado muitos transeuntes das ruas, transformadas em pequenos riachos. O veículo deslocava-se com mil cuidados. A paisagem envolvia-se numa marcha lenta, que permitia apreciá-la. Passara pelo largo Camões e aproximava-se do Chiado. Joaquim despido das vestes de JCorreia, começou a falar da cidade que o recebera de braços abertos, e o encantara para sempre.

Esta cidade, por mais que a veja, não deixa de me espantar. Sendo a mesma, descubro sempre coisas diferentes. Todas as capitais europeias que conheço, têm a sua beleza, e a sua história. Paris, Londres, Berlim, Madrid, Roma, para citar algumas, merecem relevo. Mas não troco Lisboa, por todas elas. Tem uma história impar, tem uma vivência especial, uma luz inspiradora.
Segundo a lenda, terá sido fundada por Ulisses, esse grande viajante no regresso das suas deambulações marítimas para o seio da sua Penélope. Mas para além da lenda, os vestígios históricos, mostram uma cidade que se foi construindo com uma mescla de povos, com diferentes culturas e religiões. Vieram do Mediterrâneo, do mar do Norte, do norte de Ãfrica, das "américas", das "índias". Umas vezes de forma pacífica, outras mais violentas, formaram um caldo, um ADN, uma miscigenação singular. Lisboa foi romana, foi cristã, foi muçulmana. Foi o primeiro grande “supermercado do mundoâ€. Uma babel onde se cruzavam desvairadas gentes, no dizer do cronista Fernão Lopes. Que outro lugar tem esta riqueza? Passa um ano, passa outro, e Lisboa é sempre nova. Um poeta desconhecido escreveu um poema que a retrata de forma simples. Chamou-lhe, “Lisboa éâ€.

Lisboa é barco, é batel,
cidade de sombra e luz;
é água, Babel,
 adaga,
Lisboa é espada e cruz

Lisboa é guerra ,
é vingança,
amor, ódio e traição;
é justiça e é esperança,
é 1383,
 mudança e revolução

Lisboa é sol,
e pimenta,
caravela sem idade
é vela, mar
e tormenta,
 Ã© sonho e realidade

Lisboa é ouro
é Brasil
passarola intemporal;

é açúcar e anil,
cheiro, pregão,
 luz e cal

Lisboa é grito,
tristeza,
fado menor e vadio;
é realidade e mito,
donzela,
 amor e cio

Lisboa é desejo,
e saudade,
Lisboa é canela fina;
é mentira e é verdade
menina,
 moça e menina.

- Agora que passamos no Chiado renovado de acordo com as novas tendências, não consigo esquecer o incêndio de 1988, (lembras-te Rosalinda?) que destruiu a memória de um tempo. Como noutras catástrofes renasceu das cinzas, modernizada e mantendo as pontes com esse passado.

- Lembro-me muito bem Joaquim. Era uma jovem, alfacinha de gema, criada na rua da Oliveira. Vendi flores no Rossio, vesti-me no Grandela, namorei nas margens do Tejo. O Damião pescava no cais das colunas, e eu acompanhava-o. Quando acordei com o fogo a devorar uma rua próxima, a minha reacção foi do espanto, a uma grande tristeza.

- Mas como se vê, Rosalinda, o Chiado levantou-se do chão, com uma nova pujança, tal como toda a "baixa", por onde passamos, depois de destruída por um terramoto em 1755. Ãgua e fogo à solta, invadindo ruas, ruínas, num galopar desenfreado. Pessoas presas, afogadas queimadas. Um castigo divino nos sermões do padre Malagrida. Uma catástrofe que levou património e vidas. "Enterrar os mortos e cuidar dos vivos", foi a decisão do lúcido governante Sebastião José de Melo e do rei D.José.
Dos escombros de uma cidade medieval, ergueu-se uma cidade moderna, a apontar para um futuro imaginado. Este país, teve nessa altura, homens capazes de um difícil desafio. Políticos, arquitectos, engenheiros, com visão acima da média. Quando passo no Terreiro do Paço, não vejo apenas uma estátua de bronze , mas a alma de um rei, inteligente, sensato, equilibrado, cuja marca perdurará.
 
- Eu sou mais terra a terra Joaquim, adoro esta cidade, não me vejo a viver noutro sitio. À parte da grande história, vejo a dureza da vida que vivi, as alegrias breves das pessoas que conheci, as dificuldades do dia a dia, os dramas pessoais. As vivências que assumem com toda a simplicidade. Enfim, as ditas coisas comezinhas da vida.

- Tens razão Rosalinda, e tens a virtude de me acordar dos meus devaneios. Não se desse o acaso de termos descoberto laços familiares, acho que terias mais um pretendente.
-E olha que não seria um pretendente desprezível. E ainda, com um aspecto que não corresponde à idade. Tens-te cuidado...
 
O motorista conduziu o automóvel até a casa de JCorreia,  percorrendo as ruas de Alfama com o desembaraço de quem parecia conhecer de olhos fechados aquele itinerário. Enquanto agradecia e se despedia do motorista, o detective reparou num vulto discreto junto à entrada do prédio. Quando saiu da semiobscuridade Joaquim reconheceu-o. Ernesto abordou-o.
- Ainda se recorda de mim, detective?  Sou o Ernesto, falamos no Estoril. Peço desculpa por o incomodar, mas preciso de ajuda urgente. A minha mulher deixou de me contactar. Não sei o que aconteceu, e estou muito preocupado.
-  A- sua mulher desapareceu? Qual delas? Se percebi bem, durante a nossa conversa tinha duas.
- A minha mulher é a Idalina. Nessa conversa menti-lhe para o afastar da casa rosa. Não vivo lá como disse, nem tenho outra companheira. Acontece que colaboramos com gente que não brinca em serviço. Viram-me falar consigo, e perceberam que o detective está a ir longe de mais, e encarregaram-me de lhe dar sumiço. Cometo ilegalidades para ganhar mais dinheiro, mas daí a ser um criminoso …Preciso de desaparecer mesmo a sério.
- Não sei se deva confiar em quem me quis aldrabar, mas venha comigo. Está encharcado. Não tenho condições para o proteger. Veremos o que se pode fazer.

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« Responder #74 em: Janeiro 09, 2021, 18:28:34 »

E vamos continuar. Eu já me perdi um bocado. Depois venho inteirar-me de seguida.
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Últimas 30 mensagens:
Novembro 30, 2023, 09:31:54
Bom dia. Para todos um FigasAbraço
Agosto 14, 2023, 16:53:06
Sejam bem vindos às escritas!
Agosto 14, 2023, 16:52:48
Boa tarde!
Janeiro 01, 2023, 20:15:54
Bom Ano! Obrigada pela companhia!
Dezembro 30, 2022, 19:42:00
Entrei para desejar um novo ano carregado de inflação de coisas boas para todos
Novembro 10, 2022, 20:31:07
Partilhar é bom! Partilhem leituras, comentários e amizades. Faz bem à alma.
Novembro 10, 2022, 20:30:23
E, se não for pedir muito, deixem um incentivo aos autores!
Novembro 10, 2022, 20:29:22
Boas leituras!
Novembro 10, 2022, 20:29:08
Boa noite!
Setembro 05, 2022, 13:39:27
Brevemente, novidades por aqui!
Setembro 05, 2022, 13:38:48
Boa tarde
Outubro 14, 2021, 00:43:39
Obrigado, Administração, por avisar!
Setembro 14, 2021, 10:50:24
Bom dia. O site vai migrar para outra plataforma no dia 23 deste mês de setembro. Aconselha-se as pessoas a fazerem cópias de algum material que não tenham guardado em meios pessoais. Não está previsto perder-se nada, mas poderá acontecer. Obrigada.

Maio 10, 2021, 20:44:46
Boa noite feliz para todos
Maio 07, 2021, 15:30:47
Olá! Boas leituras e boas escritas!
Abril 12, 2021, 19:05:45
Boa noite a todos.
Abril 04, 2021, 17:43:19
Bom domingo para todos.
Março 29, 2021, 18:06:30
Boa semana para todos.
Março 27, 2021, 16:58:55
Boa tarde a todos.
Março 25, 2021, 20:24:17
Boia noite para todos.
Março 22, 2021, 20:50:10
Boa noite feliz para todos.
Março 17, 2021, 15:04:15
Boa tarde a todos.
Março 16, 2021, 12:35:25
Olá para todos!
Março 13, 2021, 17:52:36
Olá para todos!
Março 10, 2021, 20:33:13
Boa feliz noite para todos.
Março 05, 2021, 20:17:07
Bom fim de semana para todos
Março 04, 2021, 20:58:41
Boa quinta para todos.
Março 03, 2021, 19:28:19
Boa noite para todos.
Março 02, 2021, 20:10:50
Boa noite feliz para todos.
Fevereiro 28, 2021, 17:12:44
Bom domingo para todos.
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