Nação Valente
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outono
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« em: Julho 12, 2020, 20:31:26 » |
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O meu avô era um trabalhador manual. As suas mãos, dirigidas pela cabeça, eram o seu ganha-pão. Artífices da madeira as suas mãos faziam o que os seus olhos viam. Mas com a dureza da madeira, as suas mãos foram sendo prendadas com calos. Um destes adornos infectou-se o que lhe causava muitas dores e limitava a sua capacidade de trabalho. Naquele tempo, numa aldeia serrana, não havia médicos. As maleitas eram tratadas com métodos locais, que nem sempre resultavam. Certo dia enquanto carregava um móvel com ajuda do primeiro filho, um rapazote que já o ajudava, este bateu-lhe inadvertidamente no calo infectado, o que lhe causou dores tão fortes que disse, “se tivesse aqui uma espingarda dava-te um tiro”. O filho respondeu, “compreendo, mas não resolvia nada. Porque não procura o pai ajuda de um médico?”. Palavras não eram ditas, já o avô tinha decidido deslocar-se a Alcoutim, onde num pequeno hospital concelhio, trabalhava o doutor João Dias, médico, cirurgião, director, e não sei se enfermeiro. Este médico, clínico geral mas também cirurgião, anestesista, ao contrário dos actuais que se especializam num determinado centímetro do nosso corpo, tratava desde a ponta dos cabelos, à ponta das unhas dos pés. Lá foi a minha avó tirar um sinal da cara, um vizinho operar uma hérnia, e o meu avô tratar do calo infectado. Durante o tratamento, o doutor João Dias teve de fazer uma pequena intervenção para o extrair, o que fez, à moda antiga, sem anestesia, nem como aquela dos “westerns” que vinha numa garrafa. A dor foi tão forte que o avô não segurou o grito, ao mesmo tempo que exclamava “me cago no deus da Espanha”. O médico, com toda a sua bonomia, respondeu, pois cague-se lá nesse da Espanha, mas esteja quieto”. O avô ,passado o aperto, voltou para casa com o problema resolvido, mas ficou um pouco traumatizado, e de vez em quando, talvez como catarse, recordava o acontecimento. Foi assim que tomei conhecimento. O doutor João continuou a fazer as suas intervenções cirúrgicas, tendo ganhado fama que ultrapassou a pequena terra onde trabalhava e até as fronteiras do concelho. Chegou até a ser notícia de jornal. Mas este médico perdido numa terreola da raia algarvia, continuou sempre a ser um homem simples e generoso. E não deixava ninguém por tratar, fosse qual fosse a sua condição económica. Quando eu era menino e moço, e o doutor João era um homem de meia idade, circulou desde a serra até ao litoral a notícia menos esperada. O médico do povo tinha morrido repentinamente, a seguir ao almoço, enquanto descascava uma laranja. Logo correram os mais variados boatos, chegando a dizer-se que teria sido envenenado, quem sabe pelo seu colega do outro lado da fronteira, a quem “roubaria” muitos doentes. Essa hipótese não foi admitida e não passou de especulação popular. Mas não deixou de entristecer toda a população daquela zona que tinha pelo doutor grande “adoração”, que ficou expressa na deslocação em massa para o seu funeral. A serra entristeceu. As aldeias despovoaram-se. Alcoutim prenhe de gente despediu-se do médico do povo. E o avô também foi com o seu calo sarado e sem necessidade de proferir impropérios.Outro médico veio para o seu lugar. Mas aquele pequeno hospital nunca mais foi o mesmo: o sítio onde o povo curava as suas maleitas desde uma simples constipação até uma cirurgia. Diz-se que não há insubstituíveis, mas como o médico do povo, não apareceu mais nenhum.
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