Descendo o vale

[Figas de Saint Pierre de]

DESCENDO AO VALE
Hoje, seduzido pela virgindade do branco da página de papel, aqui, à minha frente, esparramada, esperando ser maculada por qualquer registo de que existo e que não lhe resisto, a que minha pena, qual meio de transporte, lhe dê dá boleia ao que agora sinto. O que sinto?
Ui! Tanta coisa para sentir! Sentir do ontem? Sentir do hoje? Sentir a mentir? Sentir de verdade ou a fingir? Oh! Tanta coisa para sentir; do já sentido, que sentido já foi, mas que agora não faz sentido nenhum, assim como minha vida, a que acho piada ao que me tem acontecido, os sonhos, por exemplo, por que sonhamos? Com sonhos nos levantamos, com sonhos nos deitamos, uns sim, outros não realizamos. A vida não é como um guião de filme, de que realizamos e projetamos cenas, não.
Não controlamos sua edição nem tempo de exibição, apenas cenas soltas, com que se monta um puzzle duma noiva, com véu de tule ou, simplesmente, sem nada, só com sua nua beleza oferecida.
É assim a vida; como rio que não escolhe a foz de sua nascente, como quem nasceu numa montanha e nunca desceu ao vale, nunca viu o mar, porém, com límpido céu, com suas estrelas a brilhar, ovelhas a dormir e o pastor a sonhar, enquanto que na cidade, um vida acorda, estremunhada, levanta-se e corre, apressada, para ao trabalho não chegar atrasada, enquanto não desempregada, sem ser pastora, sem viver na montanha, sem ovelhas, sem nada, sentindo-se ovelha tosquiada.
Estou a chegar ao fim da página, ao espaço que tinha para preencher, que já preenchi, porque antes vazia estava, mas, agora, nela registada fica a puta da vida que agora se leva, pela pandemia levada, ficando só montanhas, céus estrelados, quase sem pastores e ovelhas tosquiadas! Quem as tem? Pastores de Belém ou de São Bento? Donde sopra o vento? Do Sul ou do Norte? Que notícias traz da morte?
É só para aqui ficar registada tanta ovelha tosquiada!
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Silvino Figueiredo