Maria Gabriela de Sá
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« em: Novembro 18, 2020, 21:13:20 » |
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Olá, face, boa tarde. Está um dia de cortar à faca. Cinzento e chuvoso. Assim devem ser os dias no inferno. E, depois de nos imporem mais um confinamento concelhio, os shoppings, o passeio dos tristes, fechados e lá dentro tudo escuro como breu, a Terra parece o outro mundo. Nem um carro a zumbrir no alcatrão da Estrada da Formiga, nem um passarinho a pipiar numa árvore amarelecida deste estranho outono. Este silêncio dói como a morte. Parece que tudo se transformou no prenúncio do apocalipse. Mais de mil dias de trevas, na segunda onda do Noé dos novos tempos, agora numa vertente pandémica. Por coincidência, vê lá tu, face, na pouca televisão que agora vejo, para me preservar um pouco dos fumos do mal que bufam por todo o lado, vi um daqueles programas americanos a que chamam " Acumuladores." Uma das histórias era a de uma mulher temente a Deus, que, ao longo dos minutos de toda a sua vida, sobretudo dos últimos vinte anos, se fizera leitora compulsiva da bÃblia, sem excluir nenhuma das suas divisões: 46 livros do Antigo Testamento e 27 do Novo, desde o Génesis até ao Apocalipse, passando pelos salmos, provérbios, evangelhos, epÃstolas, etc.. Mas era sobretudo no Apocalipse que a senhora centrava as suas leituras, enquanto atulhava a casa de lixo sem pensar na eventualidade de Jesus, um dia, quando lhe batesse a porta, poder ficar nauseado e tonto com semelhante pocilga, onde nem uma cadeira livre e desimpedida tinha para Ele se sentar. De tanto rezar e ler o livro sagrado, a criatura ficara com a certeza de que, no final dos tempos, e merecedora dessa graça, o Senhor a levaria para o Seu reino. Todavia, vivia preocupada com os filhos e netos, que, com toda a certeza, ficariam para trás sem um corno de pão duro para meteram à boca em dias de fome. Então, ao longo dos anos, viera a atulhar a casa de tudo e mais alguma coisa, para os pecadores mais chegados da famÃlia que ela fizera vir ao mundo sobreviverem nos dias da grande privação. Do chão ao tecto, não havia um centÃmetro disponÃvel para ela pôr a unha de um pé no meio de tanta tralha. De tudo e mais alguma coisa: desde rouparia e outros trastes, aos mil e um enlatados de comida com séculos de vida e prontos há milénios para enfrentarem a morte numa lixeira de resÃduos tóxicos. Mas por que fui eu reter esta história? Na verdade, inspirada pelo Apocalipse e pelos seus criptogramas, que talvez ela tenha conseguido descodificar, achei curiosa a ideia da senhora há três anos, quando ainda não se sonhava com a presente pandemia, e lembrei-me do mais recente açambarcamento mundial de papel higiénico nos supermercados. No fundo, os dois casos assemelham-se: estamos perante tempos de merda.... Ao menos, Senhor, manda o sol, que o amarelo das minhas paredes é por demais insuficiente para a minha felicidade.
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