Nação Valente
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outono
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« em: Janeiro 21, 2021, 19:54:48 » |
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A aldeia era pobre como a maioria das aldeias. Mas o sÃtio onde nascemos tem um encanto especial. A sua beleza amenizava a pobreza de quem ali vivia e labutava. Aquela pobreza remediada, num paÃs pobre, aceitava-se como um destino natural. Os ritmos do quotidiano mantinham-se fiéis a uma estabilidade secular. O enclausuramento assumido interrompia-se na ida à vila mais próxima, pontualmente. A feira anual que se realizava na vila, era um momento em que os aldeãos saiam da sua rotina diária. Magotes de serrenhos juntavam-se na paragem da camioneta, que passava impreterivelmente à s dez horas. Tão pouco autocarro para tantos passageiros. Faziam-se desdobramentos, que a empresa Rodoviária não queria deixar ninguém para trás. Mas primeiro transportavam os que estavam mais longe. E nós a vê-los passar vazios e a voltar cheios. Quando a paciência se perdia a si própria, os serrenhos iam ao limite e faziam um muro humano na estrada. Por ironia do destino, sempre tarde. O autocarro que queriam barrar era o que os vinha buscar.. Era a minha primeira ida à feira. Devia ter cerca de cinco anos. Mergulhei num mundo estranho. Ao longo da margem do rio, instalavam-se barracas de venda dos mais exóticos produtos, para um serrenho de horizontes limitados. Uma multidão acotovelava-se ao longo daquela grande rua. Marujos e serrenhos, velhos e novos. Havia carrosséis prenhes de música e movimento. E no fim os circos, sempre cheios nas duas sessões nocturnas. Entrei, pela primeira vez, na grande tenda circular. No interior, numa pista circular. actuavam os artistas iluminados por luzes de muitas cores, que só via no arco iris, e por música tocada por uma orquestra, vestida a preceito. Trapezistas, ciclistas, contorcionistas, equilibristas, ilusionistas. O mestre de cerimónias marcava o ritmo. Mas o que me encantou foram os palhaços, e uns tipos vestidos com roupas larga, chamados “faz tudoâ€. Mais tarde percebi porquê. Tiravam os adereços da pista, entre dois números, e divertiam os espectadores com as suas pantominas. Comemos uns carapaus de escabeche na taberna do senhor Gomes, e fomos descansar o corpo para casa de uma senhora conhecida. Éramos nós três e mais sete, deitados em cima de mantas num chão de ladrilhos. Fiquei entre os meus avós e uma moça casadoira, a quem me arrimei para ficar mais quentinho. E fiquei. Quem a levasse não ia mal servido.Dormi que nem um anjo. Era Outono. No dia seguinte, depois do avô, vestir vaidoso a sua samarra nova, fomos até à estação das camionetas procurar transporte para o regresso. A mesma dificuldade da vinda. Os autocarros não davam “mãos a medirâ€. Anoitecia. Desesperávamos e ela não aparecia, a camioneta. Faziam-se esconjuros. Rezava-se aos santos preferidos. Transporte, nem vê-lo. Um iluminado disse: simples, vamos à empresa Pilar, e alugamos um autocarro. Palavras não eram ditas, alguém deu corda aos sapatos. Ainda a comissão não tinha aquecido as solas quando aparece das brumas o autocarro da rodoviária. Milagre de tanta fé?. (parte 2) Esta história voltou a repetir-se. Fui crescendo, e passei de criança, a moço grande. Saà da aldeia para procurar ganhar a vida noutras latitudes, e frequentar outras feiras. Mas não cortei o cordão umbilical com as origens. Numa desses regressos para matar saudades, aconteceu aparecer na aldeia, um circo, muito diferente do que me deliciava na feira da vila. Era um circo pequeno, com meia dúzia de artistas e sem tenda. Montaram o seu espectáculo no salão de baile do senhor Amândio, que também costumava receber o cinema ambulante. Lembro-me como se fosse hoje. A entrada custava três escudos, e a sala estava bem composta. Ainda assim, houve pessoas que não compareceram. Recordo-me do senhor Martins ter estado presente, e na hora de entrar se começar a afastar-se. Alguém lhe perguntou: “então não entra?†Não, o bilhete é muito caroâ€. “Venha cá, voltou a dizer alguém, nós pagamos-lhe o bilhete.â€. O senhor Martins abanou a cabeça e continuou a afastar-se. Preferiu contentar-se com o circo da vida. A pista improvisada foi marcada por cÃrculo de giz no chão de ladrilhos. Os espectadores sentaram-se nas suas próprias cadeiras, em redor da improvisada pista, como se fizessem também parte do espectáculo. Curiosos e entusiasmados por ir assistir a um acontecimento raro. Preso num barrote de madeira, que segurava o telhado de canas, estava um trapézio onde o artista do circo pobre, para pobres, iria actuar. Seria o número rei do espectáculo plebeu. Mas houve outros números. E como não havia circo digno desse nome, sem palhaços, lá apareceram eles, dignamente vestidos, para sacar gargalhadas aos espectadores, esquecidos por algum tempo de um quotidiano com muitas tristezas. A certa altura, interromperam-se os números artÃsticos, em que um artista fazia mais que um número, para dar “palco†a uma espécie de “faz-tudo†que acompanhava a trupe. Deitou-se no chão e colocaram-lhe uma grande laje sobre o peito. A seguir, pediram a um espectador que a partisse com uma marreta. Fez-se silêncio. Eu que tinha um fraco pelo circo, e que me imaginava a actuar numa pista, não tive coragem de entrar naquele número. Finalmente, apareceu alguém para o fazer. Levantou a marreta e bateu com cuidado na laje que comprimia o peito do homem. A laje resistiu. O apresentador, disse numa voz firme: bata com força. O “marreteiro†ganhou coragem e voltou a bater com mais energia. A laje partiu-se em duas metades simétricas. Bom trabalho .O homem levantou-se ileso, debaixo de aplausos. O apresentador disse: este homem corajoso não faz parte do elenco. Viaja connosco e ajuda. Hoje ainda não comeu. Ajudem-no com algumas moedas. Dos bolsos rotos da assistência saiu uma chuva de metal O homem apanhou as moedas, agradeceu e foi comer a primeira e última refeição do dia, “um pão e uma lata de conserva de peixeâ€, disse o apresentador. Voltou ao circo da vida. O espectáculo prosseguiu. No dia seguinte a trupe partiu para outra aldeia. Nunca mais voltou. Se percorresse todo o paÃs levaria anos. Veio a televisão e o circo foi perdendo importância. Sobreviveu, sobretudo, como um espectáculo para crianças. Quando já era homem de meia-idade fui convidado, por um amigo, para ir assistir a uma sessão de circo, na extinta feira popular, Em Lisboa, na época do Natal. Tinha recebido bilhetes da sua empresa para a famÃlia, e ofereceu-me os excedentes. Fui para acompanhar um filho meu. A meio do actuação, num número de palhaços, vieram à assistência procurar um espectador para participar no seu número. O palhaço de circo subiu as escadas do sector onde eu estava, olhou à direita, olhou à esquerda, e olhou para mim. Procurei tornar-me invisÃvel. Aproximou-se e puxou-me sem dizer água vai. Porra. Já me bastava ser palhaço no circo da vida. Destino: pista de circo. Fiz direitinho o que me pediram. Aplausos. Noutra altura, noutras circunstâncias, teria sido um prazer, e teria cumprido um desejo de infância. Ali foi mais uma obrigação. Já não dava para esse peditório. Mas não posso queixar-me. Entrei numa pista circo como os saudosos “faz tudoâ€. E não foi preciso bater em quem precisava de comer. Que se lixe. No circo da vida, todos somos, equilibristas, trapezistas, e palhaços pobres. E quem não for que atire a primeira pedra.
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