EscritArtes
Abril 19, 2024, 09:33:49 *
Olá, Visitante. Por favor Entre ou Registe-se se ainda não for membro.

Entrar com nome de utilizador, password e duração da sessão
Notícias: Regulamento do site
http://www.escritartes.com/forum/index.php/topic,9145.0.html
 
  Início   Fórum   Ajuda Entrar Registe-se   *
Páginas: [1]   Ir para o fundo
  Imprimir  
Autor Tópico: A Cláudia  (Lida 1270 vezes)
0 Membros e 1 Visitante estão a ver este tópico.
Maria Gabriela de Sá
Contribuinte Activo
*****
Offline Offline

Sexo: Feminino
Mensagens: 1244
Convidados: 0



« em: Janeiro 26, 2021, 21:14:54 »

          â€œEntão como estás, minha querida?â€
          â€œNa mesma, tiaâ€, na mesmaâ€
          Desde que a Covid lhe bateu à porta, nunca mais falámos ao telefone sem este assunto ser aflorado logo de início, antes mesmo de lhe perguntar pelo marido e pelo filho, bem como dos sucessos deste na escola. Sobretudo das teimosias que tanto a aborrecem. A primeira é o Tiago, um miúdo com doze anos, não gostar da língua portuguesa e muito menos de ler. Diz que os livros que lhe são impingidos são todos demasiado infantis. Harry Potter incluído. Ele que, antes dos quatro anos, já lia os preços dos bens no supermercado e aos seis, ou por volta disso, falava dos cogumelos tratando-os pela designação latina.
          A mãe, a Cláudia, foi logo infectada na primeira vaga, Março, antes do uso obrigatório da máscara. Ela bem lavava as mãos e desinfectava sobretudo o volante do carro em que ensina os candidatos a conduzir, os puxadores das portas e o tablier, mas não lhe valeu de nada. Um dia, a uma hora em que não era suposto dar-se aquela aula, apareceu-lhe lá uma jovem que nem sequer era sua aluna. Pretendia aproveitar a estadia no Porto para aprender mais um bocado da condução, a fim de  um dia poder vir em transporte próprio e sem precisar de esperar pelos  horários da camioneta. A Cláudia, tendo disponibilidade horária, foi indigitada pela escola para fazer o gancho. A rapariga vinha de Castro Daire, trazia uma tosse esquisita e disse que, lá pela terra, a Gripe A andava desenfreada a fazer vítimas.
          Passados uns dias, foi a Cláudia a sentir-se esquisita, quase desmaiou, e, embora sem tosse nem febre, tinha perdido o olfacto e o paladar.
          A seguir, ficou duplamente em casa: por via do confinamento e da doença. Não lhe fizeram o teste atempadamente, e quando, por fim, se lembraram de lho fazer, o resultado foi negativo. Duas vezes.
          Depois, o surto no lar de idosos em Castro Daire fê-la pensar:
          â€œDeus me perdoe, tia se com isto peco, mas eu tenho quase a certeza de que foi a rapariga que mo transmitiuâ€.
          â€œÃ‰ bem provávelâ€.
          â€œEu não sei se foi o destino ou o raio que o parta, mas tinha de sobrar para mim. Os meus colegas bem me disseram depois, “devias ter recusadoâ€. Mas a rapariga também não teve culpaâ€.
          Hoje, mais de dez meses passados, a Cláudia continua sem paladar e sem olfacto. Já foi ao médico, pelo menos uma vez, e este diz que tanto um como outro podem nunca voltar.
          A Cláudia tem vindo a habituar-se à nova condição. Mas, diz que tem saudades de cheiros como a maresia, terra molhada e até dos da cozinha, que tantas vezes invadem a casa antecipando uma refeição apetitosa à mesa com todos. Come broa com azeitonas de memória, e lembra-se de quanto aquilo lhe sabia bem. Com resignação, faz o mesmo com todas as coisas, umas tripas à moda do Porto, ou um arroz de favas tenrinhas com uma costeleta de porco, mas, diz ela, está viva graças a Deus e pode continuar a tratar do filho, sentir o amor da família e o afecto dos amigos.
          Conseguiu, entretanto, a proeza de distinguir o doce do salgado. E, como pode, lá vai cozinhando para os três quando não tem de ser o marido a fazê-lo por ela estar a trabalhar.
           Agora, na maioria das vezes, é ele a rectificar, ou ratificar, o sal que ela coloca na comida como colocava antes por ter a mão mais ou menos calhada para a função. Mas corre o risco de um dia, sem querer, fazer uma salmoura intragável, se por acaso a panela tiver de aumentar ou diminuir conforme o número de pessoas que tenha sentado à mesa.
          Um dia destes fez um tachão de Feijoada à Transmontana. Distribui-a depois por uns amigos e pelos pais. Toda a gente elogiou a feijoada, mas a Cláudia só a pode comer como, de resto, come todas as coisas, com a memória. Não sabe se algum dia voltará a comer com o prazer de outrora, quando azeitonas com broa eram azeitonas com broa e não uma coisa que, para a sua língua e papilas gustativas, é igual a todas as outras, apenas diferente na textura, no toque e sobretudo ao olhar.  
          Ã€s vezes o Tiago brinca com a mãe por causa do cheiro, quando este é desagradável. Há tempos, era ainda verão, ela foi buscar o filho à escola e tiveram o azar de seguir atrás de um camião do lixo que destilava um cheiro nauseabundo.
          â€œUi mãe, que fedor! Não sentes?â€
          â€œNão filho, nem uma pontinhaâ€.
          â€œNão sabes a sorte que tens!â€
          â€œAchas, filho?
          â€œEstou a brincar, mãeâ€.
          â€œQuem me dera poder sentir todos os cheiros, Até este, que sei que não é nada agradávelâ€.
          Na escola de condução em que a Cláudia é instrutora, o seu contágio por uma doença tão terrível é quase tabu. Não que ela seja olhada como uma tuberculosa e segregada, como, sessenta anos atrás, eram tratados os tuberculosos. Mas para os colegas e até alunos, como para muita gente, é quase um castigo alguém ser apanhado nas garras de um vírus tão terrível. E se, por acaso, quando ela está a tomar um café ou a beber um sumo, alguém aborda o assunto, fá-lo em segredo como se a doença pertencesse ao domínio do paranormal em que é sempre tão difícil acreditar.  
          A Cláudia lá vai vivendo a sua realidade. De novo confinada, de cinco sentidos antes da maldita pandemia, ficou apenas com três. E talvez ela passe agora a ver e a ouvir o mundo com outros olhos e outros ouvidos, porque o tacto para abraçar e beijar os que lhe são queridos tê-los-á certamente intactos quando todos e cada um de nós deixarmos de ser a ilha em que que a maldita Covid 19 nos transformou.
« Última modificação: Janeiro 31, 2021, 19:23:46 por Maria Gabriela de Sá » Registado

Dizem de mim que talvez valha a pena conhecer-me.
Páginas: [1]   Ir para o topo
  Imprimir  
 
Ir para:  

Recentemente
[Abril 03, 2024, 19:27:07 ]

[Março 30, 2024, 19:58:02 ]

[Março 30, 2024, 19:40:23 ]

[Março 20, 2024, 16:42:39 ]

[Março 19, 2024, 20:20:16 ]

[Março 17, 2024, 22:17:37 ]

[Março 17, 2024, 22:16:43 ]

[Março 12, 2024, 00:13:37 ]

[Março 11, 2024, 23:55:47 ]

[Março 05, 2024, 18:49:49 ]
Membros
Total de Membros: 792
Ultimo: Leonardrox
Estatísticas
Total de Mensagens: 130132
Total de Tópicos: 26760
Online hoje: 608
Máximo Online: 964
(Março 18, 2024, 08:06:43 )
Utilizadores Online
Users: 0
Convidados: 599
Total: 599
Últimas 30 mensagens:
Novembro 30, 2023, 09:31:54
Bom dia. Para todos um FigasAbraço
Agosto 14, 2023, 16:53:06
Sejam bem vindos às escritas!
Agosto 14, 2023, 16:52:48
Boa tarde!
Janeiro 01, 2023, 20:15:54
Bom Ano! Obrigada pela companhia!
Dezembro 30, 2022, 19:42:00
Entrei para desejar um novo ano carregado de inflação de coisas boas para todos
Novembro 10, 2022, 20:31:07
Partilhar é bom! Partilhem leituras, comentários e amizades. Faz bem à alma.
Novembro 10, 2022, 20:30:23
E, se não for pedir muito, deixem um incentivo aos autores!
Novembro 10, 2022, 20:29:22
Boas leituras!
Novembro 10, 2022, 20:29:08
Boa noite!
Setembro 05, 2022, 13:39:27
Brevemente, novidades por aqui!
Setembro 05, 2022, 13:38:48
Boa tarde
Outubro 14, 2021, 00:43:39
Obrigado, Administração, por avisar!
Setembro 14, 2021, 10:50:24
Bom dia. O site vai migrar para outra plataforma no dia 23 deste mês de setembro. Aconselha-se as pessoas a fazerem cópias de algum material que não tenham guardado em meios pessoais. Não está previsto perder-se nada, mas poderá acontecer. Obrigada.

Maio 10, 2021, 20:44:46
Boa noite feliz para todos
Maio 07, 2021, 15:30:47
Olá! Boas leituras e boas escritas!
Abril 12, 2021, 19:05:45
Boa noite a todos.
Abril 04, 2021, 17:43:19
Bom domingo para todos.
Março 29, 2021, 18:06:30
Boa semana para todos.
Março 27, 2021, 16:58:55
Boa tarde a todos.
Março 25, 2021, 20:24:17
Boia noite para todos.
Março 22, 2021, 20:50:10
Boa noite feliz para todos.
Março 17, 2021, 15:04:15
Boa tarde a todos.
Março 16, 2021, 12:35:25
Olá para todos!
Março 13, 2021, 17:52:36
Olá para todos!
Março 10, 2021, 20:33:13
Boa feliz noite para todos.
Março 05, 2021, 20:17:07
Bom fim de semana para todos
Março 04, 2021, 20:58:41
Boa quinta para todos.
Março 03, 2021, 19:28:19
Boa noite para todos.
Março 02, 2021, 20:10:50
Boa noite feliz para todos.
Fevereiro 28, 2021, 17:12:44
Bom domingo para todos.
Powered by MySQL 5 Powered by PHP 5 CSS Valid
Powered by SMF 1.1.20 | SMF © 2006-2007, Simple Machines
TinyPortal v0.9.8 © Bloc
Página criada em 0.098 segundos com 28 procedimentos.