Maria Gabriela de Sá
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« Responder #45 em: Julho 18, 2022, 10:36:29 » |
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Coitados, mesmo
∩ César
Vê-se mesmo que estas duas, a Clara e a Lilicas, não gostam de fazer nada! Preferem o jogo do empurra. São estúpidas como as galinhas! Pelo que estou a ver, ainda vou ter de ser eu a relembrar pecados velhos, quando a doce Clarinha queria morrer em mim e por mim. Mas, afinal de contas, ela não queria senão enviar-me para o maligno a toda a pressa. Mesmo antes de eu ter tempo de arranjar um confessor para lavar os meus pecados. Por vontade dela, eu não teria podido providenciar uma casa condigna para deixar sequer os meus Cristos a alguém de confiança. Nem mesmo o do interior oco, que um dia foi o meu veículo para transportar uma boa pitada de droga numa das minhas viagens ao mundo do ópio. Já nem sei se às minhas custas se a expensas da fundação, que me pagava todas as despesas sem quaisquer problemas. Eu era o director…O desejo da Clara e da autora, depois de a maldita hérnia discal me ter poupado a coluna e a vida, era que deveria ser a estúpida hepatite, (ou era sida?!) a mandar-me para o além, sem eu ter encetado negociações com o pároco da capela de S. Salvador do Mundo para colocar lá, em imagens quintuplicadas, Cristo meu protetor. Ele que viveu todo o tempo no meu quarto, quando o meu corpo se unia ao de todas as mulheres, conduzidas por Deus à minha cama, cada uma como mais uma ovelha destinada ao sacrifício para salvação do mundo. Gabriel está à porta, quase a entrar, e a Lilicas, mais o milenar tio-avô, já estão dentro, com a rapariga a preparar um grande golpe de teatro para enganar a Sarita, fingindo que ninguém se conhece. Mas, como toda a gente sabe, algumas das personagens femininas, incluindo Sarita, já estiveram até na minha cama. Já nos lambemos de cima a baixo como gatos remelosos acabados de nascer para a vida. E não tardará nada até que os outros homenzinhos e mulherzinhas, com papéis mais modestos na trama, com receio de certos gangues, se vão esconder no meu colchão. Devem estar carregados de medo de serem descobertos e atirados para o inferno por uma bala que, à partida, traga logo a sentença de morte de cada um já transitada em julgado. Mas, para já, não vou levantar mais véus. Vou apenas pedir ao mano Gabriel que aguarde mais um pouco fora de casa, até eu revelar como é que uma Clara apaixonada por mim, como se eu fora o próprio Jesus, de repente, começa a dizer-me, chorosa e no maior embuste do século, que tinha ido fazer exames à Sida e que o resultado fora positivo, aconselhando-me depois, com o maior descaramento, a fazer também os testes. A malévola estava a transformar-me, em faz de conta, num transmissor do vírus, por causa do catálogo de mulheres com que, ao longo da vida, tinha coitado sem me preocupar sequer com o assunto. Na verdade, eu, como sempre fora tratado como um deus, variasse embora de nome esse deus ao sabor da fantasia das minhas musas, nunca pus a hipótese de algo tão ruim ter escolhido os meus humores íntimos para se reproduzir. Nunca me julguei prato para vírus idiotas, e, muito menos, para minhocas de sepultura, onde, à fina força, no embuste mais do que provado da minha primeira vida de personagem, a doida da Clara lançou um fato Príncipe de Gales. Era para os bichos o roerem, juntamente com a minha carne, para onde uma renovada peste negra, vinda diretamente do século XIV, convergira em tropel, a fim de encher o meu corpo de bubões, que só postumamente ficariam satisfeitos. Não dei grande crédito à advertência. Eu, que fora concebido no coro de uma igreja, com os santos todos a protegerem-me, e alguns a serem meus padrinhos espirituais, não devia temer nada disso. Vi logo que toda aquela telefónica conversa não passava de maldade de uma mulher inconformada com o fora que estava a levar, juntamente com um eufemístico pontapé. Só uma verdadeira burra não entenderia isso. E, como de jerica ela não tinha nada, vi logo que aquela algaraviada não passava de vingança pura, bem como de uma tentativa frustrada de me pregar um grande susto. Mesmo assim telefonei-lhe. Tudo não devia passar de um engano, garantira-me ela, e iria repetir os exames. Entretanto, já Clara se transformara numa velhaca, a mesma que, numa versão mais atenuada de Lilicas paninhos quentes, anda agora derretida, quer comigo quer com o Gabriel. Como toda a gente já sabe, é-lhe indiferente ser coitada por mim ou pelo mano. Dada a sua natureza perversa, e com especialização em Cambridge, na disciplina sexual de sadomasoquismo, para ela seria um pormenor irrelevante coitar até mesmo com um sapo como se o animal fosse um verdadeiro príncipe. Entretanto, anda agora cheia de pruridos a discutir com a mamã, negando-se a espetar-me o punhal envenenado nas costas. Contudo, sendo ela mulher, demoníaca ainda por cima, vai acabar por fazê-lo, mais tarde ou mais cedo. A menos que me antecipe e lhe retire o gozo perverso da delação. Depois, ou antes de mais, quando eu estava a cortar as rédeas à Clara, já Gabriel, de casamento marcado com a Sarinha e com a quinta dimensão, a rapariga, meia Clara do original, meia Lilicas do romance do meio, andou por todo lado a tentar saber coisas sobre mim. Por entre muitas verdades, trouxe no alforge das investigações um monte de mentiras sem nexo, depois aproveitadas para modelo e inspiração para alguém fazer um brilharete à nossa custa. A mamã escrevera no primeiro livro que, devido ao meu gosto exacerbado por sexo, talvez tivesse sido abusado na infância por um tio. E como a Clara era psicóloga, um dia comentou o assunto com o colega lá no Gabinete de Psicologia onde ambos trabalhavam. Então, no romance do meio, para limparem a infância de Gabriel, fizeram uma analogia parva com a meninice de Jesus, dizendo que era preciso reescrever a história, desta vez bem melhor do que a mamã o tinha feito com César... A seguir, numa narrativa relativamente bem engendrada, sem omitir os atos mais banais da vida de um ser especial ─ sei lá, apanhar o sarampo ou a varicela ─ tudo passaria a fazer sentido na vida de Jesus e de toda a gente, tapando-se, definitivamente, a boca aos especuladores. Sobretudo aos internacionais, que jamais haviam aprofundado a vida do Mestre pegando-lhe pela infância. A meninice condiciona sempre a vida de um homem. Mesmo que esse homem faça parte de uma trindade divina e tenha, eventualmente, em noites de sono muito pesado e quando rapazote, feito chichi na cama. E as coisas passaram-se então assim, depois de um professor maluco, com ligações ao livro do meio e com fortes sintomas de Alzheimer, avivada pela ingestão de uma poção de erva semelhante à Jurema brasileira, ter alucinado e visto uma chupeta bíblica. A chupeta, segundo este doido varrido, seria o objecto sobre que haveria de incidir a pesquisa, para se desvendarem todos os mistérios relacionados com O Filho de Deus. E os três pergaminhos onde a temática estaria à espera de ser descodificada, de acordo com os últimos boatos, andariam dispersos pelas bibliotecas e adelos de uma terra pequena, à beira de um rio. Esses manuscritos, segundo uns, remontariam, com o fulgor da minha gargalhada irónica, à Idade da Pedra Lascada. Já para outros, os papéis seriam do tempo de Maria Madalena, e o mais certo é ambas as teorias estarem redondamente enganadas. Ainda relativamente aos manuscritos, houve também uma tese que os dava como do tempo de Colombo. Mas rapidamente foi colocada de parte por causa das batatas. Julgo que já alguém disse isso aqui, quando Noé apareceu como mais uma figura de estilo para colorir A Sátira do Livro Roubado. Finalmente, ainda quanto aos benditos manuscritos da minha perdição, a última opinião era de que se tratava dos meus, quando eu, a título póstumo, por causa da minha morte com Hepatite B, estive quase a ser escritor. Quase, digo eu, e a concretizar-se tudo isto, ficaria a dever tal sorte de coisas à Clara, quando ela, em pleno cemitério, foi à minha ex levar os rabiscos que eu arrazoei na cama de um hospital, onde o número da besta e o seu espírito maligno influenciaram toda a minha escrita. A propósito, às vezes também se dizia que a minha mãe era uma espécie de Maria Madalena, e não sei se estão a ver bem a coisa…Já agora, para tudo ficar mais claro, lembro aqui um poema. Acho que foi a minha criadora quem o escreveu, a propósito da minha mãe biológica. Os versos acabaram por ser o mote para a poesia do livro do meio e chamam-se “Pedras”. No meio de tudo, era com umas grandes pedras que nos apetecia atirar a toda a gente, por nos terem metido à força em três romances, cada um pior do que o outro. Ocorrendo-me mais uma vez o nome de Noé, aproveito para dizer o seguinte: é um homem que deveria figurar naquela espécie de concursos de televisão. Se exceptuarmos Jesus, que não é comparável senão a Ele próprio, Noé deveria ser o número um da Humanidade. Como o leitor deve estar lembrado, foi o grelo da batata, no templo do célebre barqueiro, a prova pleníssima de que o tubérculo já existia na Judeia e na Palestina muito antes de Colombo regressar da América com a novidade Agora, digo aqui, nesta retratação, não fui eu a escrever tanto horror. E se não foi a mamã a engendrar aquela trama maligna para o livro do César, foi de certeza o Diabo, que, através de mim, fez psicografia, como fez certamente uma ecografia ao sistema neurológico do professor “aramaiquez”, acabando por ditar o veredito de que ele e todas as outras personagens do livro do meio não passavam de megalómanas, e de quem ele se poderia aproveitar para levar muitas almas para o inferno. Quanto a Clara, com grande descaramento, foi ela quem começou por levantar a minha ficha junto da Carolina woman in red, a primeira a fazer cair por terra a minha ascendência aristocrática francesa e o meu castelo na Normandia. Como estão fartos de saber, foi a woman in red quem primeiro revelou a verdadeira idade das minhas irmãs, colocando-me, por causa disso, na posição de morgado de uma família, que, no mínimo, tinha na terra uma casa, outrora pertencera a gente rica e agora devidamente restaurada, onde eu podia levar todas as mulheres da minha vida. Digo, com orgulho, que passaram por lá umas poucas… incluindo a Sarita, transformada entretanto na esposa amantíssima de Gabriel. E isso deve ela agradecê-lo a Clara, pois, já na versão Lilicas, Clara chegou inclusivamente a ver o álbum do meu enlace com a Patrícia, quando eu tinha vinte e oito anos. Foi o mote para a idade do mano no livro do meio, os meus vinte e oito anos do retrato. Nessa altura já eu pensava nas instalações fotográficas para captar as auras. Todavia, só consegui isso muito mais tarde, quando me chamava Gabriel. E foi, afinal, Gabriel quem mais beneficiou do estúdio. Sobretudo quando fotografava o rosto da Sara e o brilho de santidade que dela emana em todas as circunstâncias da vida, esteja ela, como a mais comum dos mortais, ajoelhada aos pés do Espírito Santo, ou simplesmente na sanita a braços com uma pungência inadiável. Depois, o relatório da Clara sobre mim ficou completo com os acrescentos das minhas ex, incluindo a ex sogra, todas elas a acusarem-me de ladrão e de proxeneta. Além de ter ficado também no ar a ideia de que, depois das mulheres, os homens também não me seriam indiferentes, vindo então à baila um amigo que, um dia, nos meus tempos de merda, me deu abrigo lá em casa, no quarto e na cama. Isto dos gays é a mais pura das mentiras, não tenham dúvidas. A mamã acaba de me dar autorização para me defender como puder. Já que terceiros desfizeram da obra dela - e de mim - como quem malha em mortos, passa a valer tudo. Olho por olho, e dente por dente, como diria Mister Talião se ainda cá andasse. Mas, como já partiu há muito para o reino dos espíritos, aqui fica a ideia para todos disporem dela à vontade passando à ação defensiva. Não foram só os chegados que me desdenharam a torto e a direito, quando a Clara/Lilicas enveredou pela devassa sobre o meu passado de menino de coro e, a seguir, da minha vida de homem que experimentou muitas das perversidades deste mundo, quando dizia com os seus botões: “é para não morrer estúpido”…- Os vizinhos e conhecidos faziam a mesma coisa: malhavam em mim como quem malha no esqueleto de uma oliveira para deitar as azeitonas abaixo. Em suma, fui tratado como um homem sem alma. Até polícia meteu, quando alguém descobriu as minhas incursões no mundo da droga e umas pequenas burlas sem importância. Não percebo a razão por que os feios têm sempre tanta inveja dos bonitos. Nunca podemos vestir um trapo lavado sem nos roerem na pele. Nem sequer nos é permitido usar fatos com pequenos bolsos para os lencinhos dobrados deitarem a cabeça de fora, tal como os peixinhos amigos de Santo António estarão agora a fazer sobre o coração de Gabriel. As criaturinhas ainda devem estar no bolsinho da camisa às riscas do meu irmão, em que a Lilicas se fartou de dar beijos. Deve ter sido isso que atraiu os “jaquinzinhos”. Todas as criaturas gostam de ser acarinhadas… O bicho homem nunca mais aprende que não vale a pena andarmos zangados uns com os outros. Muito menos a roubar o que alguém conquistou à custa do seu suor. Mais vale a regra dos beijos. Mesmo lambuzados e a deixaram no beijado aquela sensação de quer ir lavar a cara com a máxima urgência para remover o muco. E não há meio de encarreirar na trilha da “Claralílica”, obviamente já maligna!
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