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Autor Tópico: António Simplesmente  (Lida 1211 vezes)
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Nação Valente
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outono


« em: Julho 15, 2022, 19:02:41 »

Literatura de Cordel

António Simplesmente

Fascículo I-Noite de terror e alegria
 
Anoite em que ia nascer António Simplesmente, ficará na memória do povo de Oliveira do Dãocomo o princípio do apocalipse. Ao cair da tarde, daquele dia de Abril de 1889 pesadas nuvens de chumbo começaram a levantar-se para os lados de Montemuro. Com grande rapidez e empurradas por um vento uivante e gélido pararam ameaçadoras sobre a pequena e laboriosa aldeia beirã de Oliveira do Dão. Ao cair da noite, a tempestade anunciada começou o seu espetáculo de luz e som. Feixes faiscantes cruzaram o horizonte, ribombaram assustadores trovões, do céu caiu uma chuva que rapidamente transformou ruas em rios caudalosos. Parecia que os elementos mais trágicos da natureza se tinham reunido para se vangloriarem pelo menino tão esperado por aquela família humilde.
 
O pai do esperado nasciturno, Zé da Avó, feitor das terras dos fidalgotes da aldeia, apercebeu-se da borrasca e mandou os criados de manjedoura recolher o gado, guardar em lugar seguro as alfaias agrícolas e dispensou-os a tempo de serem atingidos pelo temporal que pesava nas suas cabeças.
-Metam o gado nas arramadas e recolham-se em sitio seguro, pois isto está a ficar feio.

Zé assim que acabou de tomar as providências, saiu apressado da umbria dos soitos ainda a noite não se levantara. Ao chegar ao povoado começou a cair uma chuva que martelava o tosco empedrado das ruas sem piedade. O feitor era um homem simples que fora enjeitado pela mãe, depois de esta ter sido escorraçada como cão sarnento pelo pai, por ter parido sem se lhe conhecer qualquer conversado. Foi criado pela avó, que o ensinou a ser um homem às direitas. Da mãe, sumida no mundo, nunca mais houve notícias e nem sequer se podia pronunciar o seu nome.
Quando chegou às portas da aldeia o céu caiu-lhe em cima. Um rio vertical de água, fogo e sons estereofónicos quase o arrastavam para as profundezas do inferno. Lutador habituado a fintar as agruras da vida, estugou o passo mas sentia as pernas prisioneiras de forças telúricas que queriam absorver o seu corpo alto e esguio. Encharcado da cabeça aos pés, arrastou-se com dificuldade envolvido por raios que quase o trespassavam. Quando puxou a taramela da porta de pinho do casebre onde pernoitava, já as quatro filhas, cujas silhuetas fantasmagóricas se projetavam na parede caiada e obscurecidas pelo fumo, estavam prostradas em frente da lareira e invocavam numa lamúria sem fim, os préstimos de Santa Bárbara.

O filho que ia nascer, esperava tranquilo na barriga da mãe, Maria Simplesmente. Indiferente, ou talvez não, ao desconcerto da natureza, continuava tranquilo e sem pressa de entrar no mundo que o reclamava. As águas que o envolveram espraiavam-se pelos lençóis de linho duro, onde a sua mãe se contorcia com dores a cada convulsão, ansiosa pelo desenlace. D. Sebastianina que assistira a tantos parimentos como cabelos tinha na cabeça, preparava um alguidar com água quente, enquanto animava a parturiente:-está quase Maria, só mais um esforcinho.
Maria Simplesmente era feita de outra massa. Tinha na sua ascendência gente de estatuto. Falava-se de um capitão e até de um médico de província. A família entrou em caminho descendente, mas a fina linhagem expressa nos genes continuou presente. Deram-lhe uma educação esmerada e chegou a ser regente escolar. O casamento com Zé da Avó foi uma paixão assolapada, tipo camiliano. Na modéstia e na pobreza, o casal era feliz e para a felicidade ser completa, apenas lhe faltava um filho.
 
Zé d´Avó, mal entrou no aconchego do casebre ,escarrapachou-se na panela trempe, que aquecida a mato, cozia o caldo de couves do jantar, procurando secar as roupas empapadas que escorriam água para o lajedo do chão, e lhe enregelavam o corpo.Ainda não se tinha recomposto do susto, nem encontrado lucidez para perguntar pela mulher em vias de parir, quando D. Sebastianina saiu do quarto com um recém-nascido nos braços. Da toalha escura onde vinha embrulhado escorregavam uns alvos pezinhos. Zé aproximou-se emocionado...que diabo, afinal era o varão da família que acabara de chegar. Uma alegria breve invadiu Zé d`Avó porque, de repente, rodopiou nos tacões cardados das botas e escondeu a cara entre as mãos. As filhas, com licença de Santa Bárbara, aproximaram-se do pai. Duas grossas lágrimas como rios incontroláveis corriam-lhe pelas rugas e serpenteavam entre os pelos da barba mal semeada. Cerrou os punhos e disse: -Maldição! o moço tem um pé de cabra. Sebastianina serena e confiante procurou acalmar Zé, -não se amofine com esse pormenor. Tem aqui um rapagão que vai dar muito que falar e até muito que calar, digo-lhe eu sem medo de errar, pois só os predestinados é que falam na barriga da mãe. E este, ouviu-o eu, com estes dois que da terra são. Quem viver verá. Será António um infeliz aleijado ou um génio salvador?
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Maria Gabriela de Sá
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« Responder #1 em: Julho 15, 2022, 19:29:44 »

Vai ser um salvador, certamente.

Abraço
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Dizem de mim que talvez valha a pena conhecer-me.
Nação Valente
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outono


« Responder #2 em: Julho 19, 2022, 21:11:43 »

Veremos.

Fascículo 2

Quando António viu pela primeira vez a escuridão da noite, uma tempestade diluviana quase destruiu a laboriosa aldeia de Oliveira do Dão. O seu nascimento, tão desejado, foi para aquela família humilde  como a luz redentora de uma casa sem herdeiro varão. Alegria e perplexidade invadiram como um turbilhão devastador a mente dos pais e irmãs de António. O seu pé defeituoso, foi visto, à luz da religiosidade popular, como uma maldição e um castigo divino. O pai, Zé d`Avó, arrasado com a fúria do dilúvio, ficou de rastos com aquela machadada do destino e não conseguia pregar olho. As irmãs, rezaram novenas até altas horas, para acalmar os maus espíritos. Apenas Maria, a mãe cansada pela canseira da parição, manteve a serenidade e procurou animar as hostes pensando “amanhã penso nisso" .E depois de alimentar o filho, dormiu a sono solto.
 
Entretanto, na mansão do morgado de terras do Dão, João Gonçalves Zarco, todas as criadas de fora e de dentro, foram reunidas na capela, para rogar pelo bom regresso do patriarca que fora a cavalo visitar uma herdade distante. Já a noite ia alta e do fidalgote nem sinal. Dona Efigénia Zarco, acolhida à cama por imperativos de gravidez, mandou um criado chamar o feitor Zé d`Avó com urgência, para pedir conselho sobre a demora do marido.O braço direito do morgado, apesar da angústia familiar que estava a enfrentar, não se fez rogado e deslocou-se de imediato à casa do patrão onde se inteirou da situação. Procurou acalmar dona Efigénia e prontificou-se de imediato a agir. Constituiu um grupo de serviçais para começar as buscas, apesar de não se enxergar um palmo à frente do nariz.
 
João Gonçalves Zarco aproximava-se com seu cavalo Alão, o mais seguro, fiel e inteligente da sua manada, quando foi atingido pela borrasca que se fez sentir em todo o vale do Dão. Apressou o Alão como que a tentar antecipar-se à fúria dos elementos e à cheia eminente do rio, mas um golpe de água repentino atirou-os ao chão. João e Alão, sentiram-se arrasta dos por uma corrente de água e lama, que descia apressada da encosta. O seu corpo, chagado e dorido, rebolou desamparado até ser travado por uma sebe de canas, que ladeava as margens do rio. A força da torrente, indiferente aos seus apelos de ajuda, submergi-o e quase o abafava, mas o morgado não era homem de desistir e recorrendo a todas as forças presentes, passadas e futuras que possuía, agarrou-se ao canavial que o protegia e com uma fúria mais ciclópica que a do vendaval, conseguiu pôr-se de pé. De vez em quando, a escuridão era alumiada por grandes clarões de luz, seguidos de estrondos que silenciavam a voz das águas revoltas. Um homem da sua estirpe, com antepassados que tinham enfrentado a dureza das ondas oceânicas e vencido todos os Adamastores, não podia deixar-se vencer por um regato de água ocasional. Era um homem na flor da idade, alto como um choupo e duro como o aço das suas alfaias. A esposa, D. Efigénia, ainda não lhe dera o primeiro descendente e portanto o futuro da sua família não estava garantida. Três vezes se levantou e três vezes a irreverência da ribeira improvisada o deitou ao chão. Ao fim do que lhe pareceu uma eternidade o caudal desenfreado diminuiu de volume. Foi quando sentiu as pernas fraquejar, a cabeça rodopiar, o corpo amolecer e ao mesmo tempo ser invadido por uma sensação de não estar.

Zé d´Avó chegou com os seus homens às margens do rio já os pássaros sobreviventes anunciavam o nascer do dia com tristes trinados matinais. O espetáculo dantesco que observaram fê-los pensar no pior. O rio engordara para além do leitoe apanhara coisas e animais desprevenidos que navegavam como náufragos sem sentido. O moinho das Quebradas, local onde se passava a vau de uma para outra margem estava em parte submerso. Uma coluna de fumo espesso saía da chaminéda casa do moleiro. Zé bateu na grossa porta aferrolhada. O moleiro abriu a porta:
-Entrem já estava à vossa espera, disse aliviado.
Num canto da sala de pedra solta e negra de fuligem, ardia uma generosa fogueira junto da qual estava um vulto embrulhado num grosso cobertor. Aproximaram-se e os seus corações exultaram de alegria. Era o senhor de Oliveira do Dão.
-Quando o temporal amainou saí para ver os estragos, que foram muitos, pelo menos um rodete e duas mós foram levados, disse um homem atarracado e com uns olhos  pequeninos e piscos. Foi então que vi preso no açude o Alão, o cavalo preferido do senhor Joãozinho. Não o fazia por aqui, mas fiquei preocupado e peguei no petromax e caminhei pela margem. Em boa hora o fiz, porque uns metros adiante, na curva, vi o morgado preso no canavial. Estava enregelado...vim buscar um cobertor e uma bebida quente e consegui despertá-lo e trazê-lo para dentro do moinho. É um homem forte como um boi, senão...
 
O disco solar despontava no horizonte quando João Zarco entrou na sua casa, de pé, mas muito combalido. D. Efigénia passou a noite numa dupla aflição, entre a ausência do marido e as dores de parto que não paravam de aumentar. Era uma mulher de aspeto frágil mas muito corajosa. Suportou estoicamente aquela longa noite, mas ao raiar do dia as dores não abrandavam e mandou um criado chamar o doutor João Oliveira, que apesar de carregado de anos a dar saúde às gentes da terra, não demorou a estar ao seu lado. O primeiro som que o proprietário João ouviu ao entrar na sala de fora, foi um choro de criança. Refeito da surpresa, sentiu-se invadido pela mesma sensação que horas antes o atingiu no canavial, ao mesmo tempo que indo buscar ainda forças, onde já não as havia, se arrastou para o quarto conjugal, enquanto balbuciava: obrigado Senhor, tenho um herdeiro. Nos braços de D. Efigénia, feliz no grande sorriso, estava uma fidalguinha.
Terá  Gonçalves Zarco ficado satisfeito?
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Bom dia. Para todos um FigasAbraço
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Sejam bem vindos às escritas!
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Boa tarde!
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Bom Ano! Obrigada pela companhia!
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Entrei para desejar um novo ano carregado de inflação de coisas boas para todos
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Partilhar é bom! Partilhem leituras, comentários e amizades. Faz bem à alma.
Novembro 10, 2022, 20:30:23
E, se não for pedir muito, deixem um incentivo aos autores!
Novembro 10, 2022, 20:29:22
Boas leituras!
Novembro 10, 2022, 20:29:08
Boa noite!
Setembro 05, 2022, 13:39:27
Brevemente, novidades por aqui!
Setembro 05, 2022, 13:38:48
Boa tarde
Outubro 14, 2021, 00:43:39
Obrigado, Administração, por avisar!
Setembro 14, 2021, 10:50:24
Bom dia. O site vai migrar para outra plataforma no dia 23 deste mês de setembro. Aconselha-se as pessoas a fazerem cópias de algum material que não tenham guardado em meios pessoais. Não está previsto perder-se nada, mas poderá acontecer. Obrigada.

Maio 10, 2021, 20:44:46
Boa noite feliz para todos
Maio 07, 2021, 15:30:47
Olá! Boas leituras e boas escritas!
Abril 12, 2021, 19:05:45
Boa noite a todos.
Abril 04, 2021, 17:43:19
Bom domingo para todos.
Março 29, 2021, 18:06:30
Boa semana para todos.
Março 27, 2021, 16:58:55
Boa tarde a todos.
Março 25, 2021, 20:24:17
Boia noite para todos.
Março 22, 2021, 20:50:10
Boa noite feliz para todos.
Março 17, 2021, 15:04:15
Boa tarde a todos.
Março 16, 2021, 12:35:25
Olá para todos!
Março 13, 2021, 17:52:36
Olá para todos!
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Boa feliz noite para todos.
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Bom fim de semana para todos
Março 04, 2021, 20:58:41
Boa quinta para todos.
Março 03, 2021, 19:28:19
Boa noite para todos.
Março 02, 2021, 20:10:50
Boa noite feliz para todos.
Fevereiro 28, 2021, 17:12:44
Bom domingo para todos.
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