Antonio
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« em: Maio 28, 2008, 11:58:39 » |
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Dei comigo a fazer um varrimento sobre os sete anos que passei no que era designado na época como ensino liceal, dos meus dez aos dezassete anos, e a tentar determinar qual o melhor professor que tive nessa fase da minha vida passada no Liceu de Alexandre Herculano, do Porto. A resposta não foi difÃcil de encontrar: Eurico. Eurico Telmo Campos. Meu professor de Matemática nos quarto, quinto e sexto anos. Alto, mais magro que gordo, cabelo liso penteado para trás e bem colado à cabeça, olhar matreiro, sorriso malandro, solteiro mas namorando com uma bela filha de refugiados austrÃacos. Teria uns...trinta e poucos anos. Como dava boleia na sua velha carripana à professora de Geografia, a Maria Lúcia Santos, a rapaziada inventou uma ligação quente entre os dois. Pura má-lÃngua (penso...). Passava as aulas a caminhar entre as carteiras individuais onde nos sentávamos nós, alunos, com as passagens necessárias pelo quadro a fim de escrever o que entendia necessário. Não queria que usássemos o livro que mais não fosse para resolver problemas, pois neste seu deambular Ãa-nos ditando um conjunto de apontamentos que nós tÃnhamos de escrever integralmente no Caderno Diário e que constituÃam um verdadeiro manual. Ainda hoje guardo essas notáveis lições em que tudo o que dizia respeito a números reais, ou sucessões, ou derivadas, ou geometria no espaço, ou trigonometria ou o mais que fizesse parte dos programas obrigatórios ficava registado de forma sistematizada e clara, além de ilustrada com inúmeros problemas de aplicação. O mestre não gostava mesmo nada que alguém anotasse esse saber sem ser no Caderno. - Nada de escrever em folhas soltas, meus senhores! Já sei que depois nunca mais passam a matéria para o Caderno e um dia a folha leva-a o vento – repetia inúmeras vezes. O Zé Manel Lluvet, e estou a falar agora da turma do sexto ano, era useiro e vezeiro em esquecer-se desse fundamental elemento didáctico. O Eurico Ãa-lhe chamando a atenção mas o rapaz não atinava: volta e meia lá estava o moço a escrever numa folhinha. - Eu depois copio, senhor doutor. Juro! – garantia o Lluvet. (Nota do autor: era senhor doutor e não setôr) Mas o Eurico Ãa verificar na aula seguinte e ele não tinha copiado nada. Até que um dia lhe disse o professor: - Ó pá! Da próxima vez que te veja a escrever numa folha solta faço-ta engolir. Não passaram muito dias e, durante uma aula, todos levantaram a cabeça quando o professor se silenciou, repentinamente. E deparámos com ele muito quieto, parado junto à carteira do Zé Manel. De repente, num gesto mais rápido que um raio, pegou na folha em que escrevia o esquecido moço, amarrotou-a e meteu-a na boca do Lluvet que entretanto a tinha semiaberta de expectativa. Claro que o rapaz não gostou da brincadeira, mas a gargalhada na sala foi geral. - Eu avisei-te, não avisei? – perguntou o Eurico enquanto se afastava com aquele ar de gozo que o caracterizava. O certo é que nunca mais ninguém se esqueceu do fundamental Caderno. Uma outra vez, estava a ensinar polinómios, se bem me lembro, e foi ao quadro para escrever: k1...k2...k3... Ao mesmo tempo dizia em voz alta: Capa um...capa dois...capa três... Parou a oralização, voltou a cabeça para a plateia e com um sorriso absolutamente irónico disse: - Que razia! E a gargalhada solta por todos nós foi-o em unÃssono. Tinha o Eurico o hábito de nos marcar, em cada perÃodo trimestral, dois dos chamados “exercÃcios escritos de apuramento†e de chamar cada aluno pelo menos uma vez ao quadro para uma avaliação oral dos conhecimentos. Na última aula de cada perÃodo era publicamente atribuÃda a nota a cada um de nós. - Número 10. Fulano de tal. Teve doze no primeiro exercÃcio, catorze no segundo, portanto a média é treze. Como teve uma chamada “suficiente†acho que deve levar um treze na pauta. Concorda? E o aluno dizia de sua justiça. E o que ficava combinado era sagrado. No sexto ano, apareceram alguns novos alunos que tinham feito o exame do quinto ano mas vindos de colégios particulares. Eram todos eles alunos mais velhos e muito fracos. Um deles, o Azevedo, tipo muito dado à música mas pouco aos estudos, era calado e reservado. - Número 27. Qualquer coisa Azevedo – chamou o Eurico. Olhou para a caderneta, mirou o aluno, fez um sorriso irónico e disse: - Zero no primeiro exercÃcio. Zero no segundo. Média zero. Uma chamada em que não abriu a boca (está aqui escrito!), o que equivale a zero. Portanto, vai levar um zero na pauta. Acha justo? O rapaz balbuciou um “simâ€. Apesar de ser o primeiro perÃodo e, segundo consta, ter havido grande polémica na reunião de atribuição de notas, e de o próprio reitor (Martinho Vaz Pires), deputado da nação e pessoa muito temida, ter tentado que não fosse atribuÃda nenhuma nota inferior a sete, o Azevedo levou mesmo com o zero. E outros apanharam notas inferiores a quatro o que representava a reprovação imediata a Matemática. O Eurico era implacável com o que ele chamava de nulidades. No ano seguinte, e como consequência destes acontecimentos, o Dr. Campos foi colocado em Bragança e assim perdi um professor excepcional, pois o Albérico Costa que o veio substituir no sétimo ano não lhe chegava aos calcanhares. Ainda me recordo de outra cena no terceiro perÃodo do sexto ano. O Miguel Braga, que depois se viria a formar em engenharia mas nunca exerceu a profissão pois dedicou-se inteiramente à música tinha, segundo o método de avaliação do Eurico, um nove. Mas precisava de onze para passar de ano. Pediu, lacrimejante, ao professor que lhe desse a nota de que precisava invocando que o pai não o deixaria tocar mais (guitarra) se ele reprovasse. E dizia o Eurico com ar de gozo: - Ai tu tocas? Ai tu tocas? E olhando para o resto da rapaziada: - Ele toca! Ele toca! Finalmente, condescendeu em fazer uma chamada especial ao Miguel para ver se ele merecia o onze. A coisa correu mal e o músico reprovou mesmo. Anos mais tarde, vim a saber que esse grande mas polémico professor, amado por uns mas odiado por outros, tinha sido eleito, pelo Partido Socialista, membro da Assembleia que elaborou a Constituição de 1976. Não sei se esteve depois como deputado na Assembleia da República. Julgo que faleceu relativamente novo. Para mim foi, sem dúvida, um professor excepcional que não só me ensinou muito de Matemática como me ensinou a gostar dessa hoje tão odiada ciência.
(escrito em 24 de Setembro de 2006)
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