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Autor Tópico: "... as novidades são dois dias"  (Lida 3385 vezes)
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Mel de Carvalho
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"abraça o conteúdo e não a forma" Saint-Exupery


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« em: Junho 20, 2008, 13:17:15 »

Tinha-o deixado lá muito atrás, umas décadas atrás, direi. Tinha-o deixado “arrumado†nas memórias de um 5º Ano de Liceu (9º agora) deveras atribulado.

Corria o ano de 1976. A revolução dos cravos estava no seu auge. Eram adolescentes, ávidos de saber, de viver, de ser. Ela, a delegada de turma, para além de ser membro da associação de estudantes. Ele fazia parte daqueles colegas de quem se guarda um sorriso - que o tinha sempre nos lábios -, uma voz marcante e uma delicadeza de trato e no trato autênticas, tão escassas em jovens daquela idade e, demais a mais, num período de pós-revolução em que os direitos adquiridos pareciam querer por em perigo a polidez e a cortesia, assentando na boca de rapazes e raparigas, até ai comedidos no vernáculo e no deselegante da verve, palavras menos airosas. Não nele, correctíssimo, para além de deter uma imagem de príncipe loiro. Não necessariamente um príncipe consorte, que tais sentimentos não cabiam na conjuntura…

Provinham de classes sociais diferentes, ele e ela. Ele, de uma burguesia campesina, ligada às tradições tauromáquicas, às Lezírias. Ela, ligada igualmente à terra, por via de seus avós maternos, pequenos lavradores. Ele tinha as herdades (se bem que à época, mercê do 25 de Abril, as mesmas estivessem ocupadas e transformadas em cooperativas agrícolas de produção), ela apenas uns pedaços de terra que tios e primos não cultivavam mas pelos quais se digladiavam. Ele criado com criadas, ela habituada desde tenra idade a ter de “comer o pão que o diabo amassouâ€, a ter de executar uma a uma todas as tarefas da casa, a ter de acompanhar os pais nas idas nocturnas a mercados (tinham-se dedicado ao comércio, entretanto).

Em comum, pouco ou nada teriam, em boa verdade, a não ser o olhar edílico e sonhador sobre o mundo, fortes convicções, e posicionamentos políticos diferentes, se bem que na essência das coisas, muito próximos. Humanitários.

Fossem quais fossem as razões, sempre foram amigos. Não de se visitarem ou trocarem telefones, não de andarem a trocar beijos por dá cá aquela palha, mas de se abraçarem sinceramente quando se cruzavam. Sem mais. De desejarem no fundo de si mesmos que cada um encontrasse o seu caminho e fosse o mais possível, feliz, sem que o tivessem publicamente anunciado.

Cedo se separaram e se perderam. Moravam a 10 Km de distância mas os seus mundos não se cruzavam. Até aquela tarde.

Mariana, vamos chamar-lhe assim, saiu do seu trabalho e, à semelhança de tantos outros dias, dirigiu-se a uma grande superfície próxima. Daquelas em que, para além do supermercado, e em seu redor, “n†lojas de “n†coisas se localizam e onde se vende da roupa ao calçado, passando por lavandarias e farmácias. Era-lhe confortável poder, num só acto, efectuar todas as tarefas rotineiras de sua casa. De família alargada, casada e mãe de três filhos, nada parecia chegar nunca. Saturava-se com aquelas “ninhariasâ€, a busca de lugares onde os bens fossem mais acessíveis, a procura diária dos melhores produtos… a sua mente andava sempre a mil e, não raras vezes, se despistava e se perdia no emaranhado dos corredores, ou abandonava o carrinho de compras num local, ia buscar os bens e, ao invés do seu, agarrava outro qualquer … era, em boa verdade, despistada. Não via nada nem ninguém, se bem que os seus olhos parecerem sempre querer abarcar o mundo (talvez quisessem, mas a dimensão era outra …).

Entrou numa loja de modas, duma marca “brancaâ€. Tinha um vale para rebater, um bónus duma compra anterior. Não pretendia gastar mais dinheiro. Pesquisou o equilíbrio entre a utilidade e o valor do mesmo. Seleccionou. Levaria aquela camisa para o filho mais velho. Estava decidido.

De repente, a seu lado, uma voz. Falava com uma criança, fazia-se acompanhar com uma senhora de cerca de sessenta anos. Olhou, magnetizada. Olhou de novo. O conjunto formado pelos seus “vizinhos de compras†era heterogéneo. Familiar, mas “estranhoâ€. Não se consubstanciava como pai/avó/neta … De todo não.

Mas o que na verdade a prendera era a voz. Conhecia-a. Mas não conhecia ou reconhecia o seu dono. De barba comprida e quase branca, alto, bastante alto, vestido de forma muito simples, com alguns quilos a mais que o devido … Não conhecia, definitivamente não conhecia. Afastou-se, tentando não olhar mais. Mas não conseguia. Mecanicamente colocou-os de novo na sua linha de visão … Continuavam a falar. Percebeu que, tal como havia intuído, a senhora não era familiar, mas sim criada, governante ou algo similar.

De repente tudo ficou claro. Era o António (chamemos-lhe assim). O António Albuquerque, da Quinta das Orquídeas. Como por magia, como se sentada num cinema antigo, via claramente o filme da sua juventude.
Olhou-o descaradamente e esperou que ele sentisse o peso do seu olhar. António virou-se, encontrou os seus olhos, o seu sorriso…
Sentindo-se observado, esboçou timidamente um sorriso. O tamanho da figura e a timidez do sorriso, confirmaram a sua convicção. Era o António, seu colega e amigo.

- Olá António, tu és o António…
- Sim… mas não a conheço…
- Conheces sim. Olha bem para mim…

António olhava-a agora, céptico. Na sua frente uma mulher meio grisalha, com uma jeans usadas, uma camisola de malha roxa, igualmente usada. Sem pinturas, excepção as unhas… para o “cheioâ€, sem ser gorda …

- Mariana, tu és a Mariana … rapariga, só te restam os olhos… eras loura, onde deixaste o cabelo?...
Sorrindo, acrescentou: - E o resto?.. Bem!!! ... Desculpa, desculpa…

Riam-se ambos, abraçados, perante o olhar estupefacto dos vendedores e dos demais. Perante o olhar incrédulo da criança e da criada. António apresou-se a apresentá-la:

- Menina, esta senhora foi colega do papá, no Liceu; Rosália, a D. Mariana é uma amiga de longa data … minha colega de Liceu, a Rosália não a conhecia, não costumava ir lá a casa…

O diálogo retomado como se não houvesse entre eles a distância de mais de trinta anos. A urgência de saber do outro… da vida do outro. Do bem-estar do outro. Alheios a tudo o resto.
António falou de si, do seu casamento, do seu divórcio. Das suas irmãs, das suas primas. Dos seus projectos, dos sucessos e dos insucessos de uma vida inteira. Formado em Direito. De como havia ganho e perdido várias batalhas.
Mariana de si, de coisas iguais. Formada em Psicologia…. De como fazia a gestão das crises… das suas próprias crises, das crises dos seus pacientes… existenciais e outras.
Riram como riam quando se contradiziam politicamente e no fim concluíam que afinal em quadrantes diferentes eram tão iguais.
No fim de tudo, e em jeito de conclusão, António foi dizendo:

- Sabes Mariana, a questão é que hoje em dia se perdeu o hábito de cerzir, remendar, passajar. Aproveitar. Reaproveitar. E se é assim na economia doméstica, como melhor do que eu sabes, é assim nas relações humanas… é a política do usa e deita fora. A começar pelas ligações afectivas. E, minha querida Mariana… na verdade, tu que como eu és da terra, sabes que “as novidades são dois dias…â€

Neste registo a conversa fluía. António estava ali para ajudar uma das suas filhas a comprar, tal como foi dizendo, “uns trapos†para ir a um casamento no dia seguinte. Ali, numa loja de linha “brancaâ€â€¦.

Havia que economizar, habituara-se a fazê-lo desde sempre, em especial quando toda a família se viu sem recursos com as terras ocupadas. Era avesso a desperdícios de qualquer espécie. Reajustar, reutilizar. Minimizar os gastos…

- Ela está a crescer, Mariana… não vale a pena gastar muito.
- Claro que não...

Mariana sorria. António continuava tão igual a si, mas tão igual.
Dirigiram-se ambos para a caixa com as suas compras. António pagou, Mariana entregou o vale…

- Não tem nada a pagar, minha senhora.
- Obrigada, boa tarde.
- Não tens nada a pagar? Bem, ainda consegues ser pior que eu, rapariga….

Riram de novo. Riram novamente...

Já fora da loja, abraçaram-se francamente emocionados por aquele encontro. Mariana avançou para as restantes compras, António igualmente. Separaram-se.
Talvez um dia, num qualquer supermercado, a vida lhes cruze os corredores. Enquanto não, perdurará por certo em cada um o prazer genuíno de um reencontro, maior que todas as novidades, que essas “são dois diasâ€â€¦
« Última modificação: Junho 24, 2008, 09:07:04 por Mel de Carvalho » Registado

Mel de Carvalho
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« Responder #1 em: Junho 23, 2008, 17:06:04 »

Que bom voltar a ler um conto teu! São, escorreito como a terra de onde as personagens tinham nascido!
Contos destes dão esperança à vida e aos sentimentos. Afinal, há pessoas capazes de se reconhecerem e abraçarem passados tantos anos!
Um abraço para ti!
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Goretidias

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« Responder #2 em: Junho 24, 2008, 08:01:43 »

Os seus contos são maravilhosos.
Deixe-me destacar "é assim nas relações humanas... é a política do usa e deita fora".

Abraço
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marcopintoc
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« Responder #3 em: Junho 24, 2008, 11:47:05 »

Olá Mel,

Um bom conto onde numa narrativa escorreita se relata este reencontro de duas vidas tão similares a tantas que por essas grandes superfícies palmilham.

Abraço
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Mel de Carvalho
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"abraça o conteúdo e não a forma" Saint-Exupery


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« Responder #4 em: Junho 24, 2008, 18:23:22 »

Que bom voltar a ler um conto teu! São, escorreito como a terra de onde as personagens tinham nascido!
Contos destes dão esperança à vida e aos sentimentos. Afinal, há pessoas capazes de se reconhecerem e abraçarem passados tantos anos!
Um abraço para ti!

Goreti, como já te disse, dá-me imenso prazer escrever contos. Faço-o menos que a poesia pela questão tempo (dado que um poema me ocupa cinco ou dez minutos ... rsrs).

Fico mt contente por gostares.
Beijo da Mel
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Mel de Carvalho
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« Responder #5 em: Junho 24, 2008, 18:27:02 »

Um texto leve. Um encontro, inesperado, de dois amigos num supermercado...
A realçar, num dos diálogos:
 "- Sabes Mariana, a questão é que hoje em dia se perdeu o hábito de cerzir, remendar, passajar. Aproveitar. Reaproveitar. E se é assim na economia doméstica, como melhor do que eu sabes, é assim nas relações humanas…"


Gostei! Smiley
Abraços



Dite, a personagem que me contou esta história reforçou a ideia de que essa é a sua política de vida: tentar a todo o custo cerzir pontas e reciclar.

Beijos gratos
Mel
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Mel de Carvalho
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"abraça o conteúdo e não a forma" Saint-Exupery


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« Responder #6 em: Junho 26, 2008, 20:23:06 »

Os seus contos são maravilhosos.
Deixe-me destacar "é assim nas relações humanas... é a política do usa e deita fora".

Abraço

Caro Brito,
adoro escrever contos, dão-me sempre imenso prazer. Não o faço de forma recorrente pelas razões que já aqui neste fórum inumerei: é que um poema leva-me cinco minutos ... um conto cinquenta... mas que gosto, gosto.

Bom saber que os lê. Muito grata.
Abraço
Mel
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Boa noite feliz para todos
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Olá! Boas leituras e boas escritas!
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Boa noite a todos.
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Bom domingo para todos.
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